O debate em torno da agenda das cidades inteligentes apresenta enorme quantidade de desafios conceituais e práticos. Enfrentá-los, ponto a ponto, é papel da universidade e da comunidade de especialistas que a compõe. E também de todos os destinatários das inovações relacionadas a esse tema.
A inexistência de um conceito unívoco do que são cidades inteligentes, por exemplo, é um desafio importante e, a nosso ver, essencial para a modelagem de um programa de investigação acadêmica sobre o tema. A despeito do desenho que o tema evoca no imaginário popular, parece pouco crível reduzir a ideia de cidades inteligentes a um catálogo de aplicativos tecnológicos que forma a cena de uma cidade conectada, com letreiros luminosos e informações pipocando em telas enquanto pessoas mergulhadas em smartphones correm apressadas para um destino incerto.
Essa visão edulcorada de cidade inteligente, mais próxima da ideia de um vitrinismo comercial, não se sustenta para além desse propósito. Na perspectiva de uma análise mais consistente, a abordagem sobre o assunto passa, primeiro, por compreender a ideia de “inteligência” como elemento diferenciador. Tal conceito, nos parece, é chave para iniciar o debate dessa agenda. Nele estão ocultos significados que podem evidenciar o alcance social das smart cities e, com isso, reposicioná-la na discussão do urbanismo e da política urbana.
Neste artigo, a ideia é evidenciar que a ideia de inteligência aplicada ao território guarda relação estreita com a política democrática nas cidades, etapa anterior ao processo de regulação do espaço urbano. E que essa política democrática transcende, pela natureza típica das relações sociais que se operam nas cidades, o enquadramento clássico dos arranjos representativos, baseados na discussão do sufrágio e suas consequências estruturais, ou dos espaços institucionais criados para a participação social.
Para tanto, partimos da premissa de que a inteligência é, antes de tudo, uma característica tipicamente humana, criativa, capaz de se expandir e de adquirir precisão quanto maior for a quantidade, a qualidade e a diversidade de interações sociais em que se envolverem os indivíduos. É ela quem determina o alcance da tecnologia tal como a conhecemos e, também, a sua utilidade e complexidade. A particularidade do gênero humano de ser dotado de racionalidade é decisiva neste ponto: é essa racionalidade que se transforma em inteligência no âmbito do processo interativo e cooperativo.
Trata-sede um conceito ainda em construção. De qualquer maneira, convém explorar especificamente a dimensão da interação sobre o viés político da democracia, não sem antes entender que as cidades, além de serem talvez a maior invenção da inteligência humana, não se afiguram como mero palco no qual as relações sociais acontecem, sendo, também, responsáveis por modelar a própria interação social.
Nesse âmbito, ganha relevância a ideia da democracia como cooperação reflexiva. Afinal, esse é o amálgama social e político que melhor favorece a realização de interações livres, disruptivas, questionadoras e complexas. Espera-se com isso dar um passo adiante no desenvolvimento da ideia de inteligência por trás desse conceito (de cidades inteligentes). Para tanto, começaremos abordando o tema das interações sociais. Depois, do elemento pré-político da democracia, na forma da cooperação. Por último, da democracia como cooperação reflexiva.
A cidade e suas interações
Comecemos falando sobre as interações sociais na cidade – e por um motivo simples: elas estão na base do processo cooperativo – que nada mais é do que sua manifestação acrescida de uma ação dirigida – e reservam um importante potencial analítico. Especialmente quando se focaliza o aprendizado que a interação pode proporcionar aos seus participantes.
Para compreender as interações sociais na cidade, é preciso resgatar a obra do sociólogo alemão Max Weber e pinçar dois conceitos fundamentais: ação social e interação social. Para Weber, a ação social é fruto de uma orientação subjetiva pautada pela ação de terceiros, individual e coletivamente entendidos. Ela não tem uma determinação temporal específica, podendo referir-se a ações passadas, presentes ou a expectativas de ações. E transborda o contexto das relações próximas, estendendo-se, também, à pluralidade de sujeitos indeterminados que não estão inseridos no rol de pessoas desconhecidas para o seu protagonista.
Uma peculiaridade da ação social é a intersubjetividade. Ela não se constitui em relação a objetos. Tampouco em relação a comportamentos íntimos, como, por exemplo, a relação com a transcendência na religião, ou à contemplação individual, que prescinde de um terceiro numa determinada relação. E mesmo quando há o envolvimento de outro sujeito, a ação social só se materializa através da interação eficaz. Do contrário se resume a mera casualidade, pertencente aos fenômenos naturais. Weber exemplifica esse ponto através do choque entre dois ciclistas. Esse evento só será uma ação social na medida em que houver externalidades: uma composição amigável, uma discussão, ou mesmo uma briga.
Nesse mesmo sentido, é relevante notar o papel da interação. Ela representa um divisor de águas, na medida em que “ação social não é idêntica a) nem a uma ação homogênea de muitos, b) nem a toda ação de alguém influenciada pelo comportamento dos outros” (1).
Por fim, a ação social é descrita pelo autor como possível de ser enquadrada em quatro modelos: racional com relação a fins, racional com relação a valores, afetiva e tradicional (no sentido de ser determinada por costumes reiterados historicamente). Esta é uma característica importante para os estudos urbanos, porque as interações no meio social do território urbanizado repetem, em graus variados, os quatro padrões identificados pelo sociólogo alemão. Elas podem ser racionais, afetivas, costumeiras ou orientadas por um conjunto intangível de valores.
Nada obstante, alguma base empírica tais “tipos conceituais puros” possuem. Não são conceitos desprovidos de conteúdo, ou exercícios hipotéticos, ou mesmo projeções reflexivas irreais, fruto da mente do pensador alemão. Interessante notar que, uma vez trazidos para a realidade do território urbanizado, possibilitam um ponto de partida no mínimo curioso para os estudos urbanos.
Questões sobre o impacto de padrões de urbanização sobre os modelos de ação social – a provocar a preponderância de uns em relação a outros – e as consequências para a (re)produção não só do tecido social mas também do território da cidade aparecem como caminhos que podem ser percorridos a partir de uma análise específica da cidade segundo a sociologia de Max Weber.
Isso interessa também a dimensões paralelas, mas ainda assim constitutivas da vida nas cidades, como o exercício da democracia, que traz a necessidade de argumentação, tematização, tensão do tecido social, produção de consensos e influência nas tomadas de decisão, são afetados pela distribuição nem sempre equitativa desses tipos de ação social, simultaneamente. Uma questão que poderia surgir nesse ínterim é: haveria previsibilidade da ação social no exercício da democracia?
Antes de avançar sobre essas questões é necessário descrever o último conceito-chave do pensamento de Max Weber, qual seja, o conceito de relação social. Para o autor,
“Por ‘relação social’ deve-se entender um comportamento de vários – referido reciprocamente conforme o seu conteúdo significativo e orientando-se por essa reciprocidade. A relação social consiste, pois, plena e exclusivamente, na probabilidade de que se agirá socialmente numa forma indicável (com sentido), sendo indiferente, por ora, aquilo em que a probabilidade repousa” (2).
A palavra-chave na esfera da relação social é “reciprocidade”, que independe de um conteúdo particular. Ela pode aparecer na forma de conflito, inimizade, amor sexual, piedade, adesão (ou não) a regras, comunidade – nas suas mais variadas matizes – desde que o conteúdo significativo empírico da interação entre os sujeitos venha marcado por esse signo constitutivo.
O seu conteúdo significativo pode ser permanente, mas pode se apresentar também com a marca da transitoriedade, ainda que o tipo de relação social permaneça o mesmo (ou identicamente denominado). Essa é uma assertiva de enorme importância para os estudos de sociologia das cidades.
Afinal, se as relações sociais no âmbito das cidades são, antes de tudo, relações sociais, é importante definir que elas podem se modificar sem que o elemento permanente se desnature enquanto tal. A transitoriedade é um caractere fundamental. Através dele, é possível acoplar o movimento próprio da definição de uma estratégia que extraia das ciências parcelares o conteúdo substantivo da orientação para a emancipação.
Se o conteúdo da relação social pode ser modificado, ele pode, então, ser repactuado reciprocamente.
Feitas essas conceituações, cumpre avançar sobre a visão específica de Weber sobre o tema das cidades. Desde a coletânea de textos intitulada “Economia e Sociedade”, sabe-se que a cidade induz um determinado padrão de interação social que é distinto de todas as outras formas de relação preexistentes à sua conformação territorial. Embora a afirmação seja singela, as consequências que se extraem delas são fantásticas. Ao assumir que o espaço urbano provoca determinado padrão de interação, podemos afirmar que ele não é apenas um palco em que tais relações se reproduzem. É, ao contrário, protagonista.
Ao analisar a cidade à luz dos estudos sobre a legitimidade do poder, Weber lembra que as guildas – associações que agrupavam indivíduos com interesses comuns – não surgem na cidade, mas sim por causa da cidade. A relação de causa-efeito, aqui, tem enorme significado. Ela desloca para a urbanização um papel ativo nos eventos que levaram a grandes mudanças nas sociedades ocidentais, como é o caso das grandes revoluções que chacoalharam o mundo no século 20.
Nesse sentido, ao proporcionar um padrão absolutamente novo de interação social, aproximando as pessoas e viabilizando o encontro com a diferença, a cidade se apresenta como um constante estímulo à racionalidade, colocando, aos cidadãos, novos e constantes desafios.
É o que aponta o sociólogo alemão Georg Simmel (3) que define as diferenças entre as pequenas e as grandes cidades. Em contraste com o ritmo pacato da cidade pequena e da vida no campo, pautado por relações baseadas nos sentimentos, a cidade grande descortina uma natureza “intelectualista da vida anímica”, em que o entendimento e o consciente assumem um protagonismo frente à dimensão sensível da existência.
Trata-se de um mecanismo adaptativo, necessário à proteção frente a fatos da vida urbana das metrópoles: o desenraizamento, a dinâmica acelerada de modificações individuais e coletivas, os processos de troca na economia monetária. Alheio ao universo sensível, o habitante da metrópole incorpora os caracteres constitutivos da racionalidade. Perde-se, de acordo com o autor, o colorido das relações intersubjetivas autênticas, que não prescindem de uma afetação mínima. Mas ganha-se em termos de complexidade e de visão de mundo.
O resultado concreto desse arranjo é a indiferença, porque a interface relacional reduz-se a uma objetividade que separa por completo o produtor do consumidor. Mais intelectualizada, também, a cidade grande é igualmente mais blasé. Aqui o autor incorpora uma leitura orgânica sobre o cidadão: nela, os estímulos nervosos, excitados pelo ritmo frenético da cidade grande, são corresponsáveis pela anestesia dos sentidos.
A cidade grande é mais intelectualizada, embora seja também mais blasé. Nesse arranjo, pode-se concluir que as cidades oprimem, mas são elas a mais fabulosa invenção da humanidade, capazes de viabilizar relações sociais cada vez mais autônomas e livres.
Note-se que a descrição de Simmel não é insensível aos problemas típicos da metrópole: a indiferença, o desinteresse, o desapego, a mercantilização da vida, a solidão no sentido negativo da palavra. Mas ela revela que, se a cidade é a expressão concreta de novos arranjos sociais, eles também podem ser enxergados à luz de suas positividades. Ao expor essa situação, Simmel, indiretamente, coloca em evidência que, se o “ar da cidade liberta”, como diz um provérbio alemão, ele ao mesmo tempo produz contradições e é preciso, de algum modo, lidar com elas.
Explorar os potenciais de individuação bem-sucedida, de autonomia, de autorrealização e de liberdade individual e, principalmente, de aprendizado, são próprios da cidade. Territorializam a dimensão racional do indivíduo. E conferem um novo significado à inteligência.
Isso é especialmente relevante quando olhamos para o ponto seguinte, que presente apresentar a interação como elemento qualificado pela cooperação.
A interação como cooperação: a democracia como cooperação reflexiva em John Dewey e Axel Honneth
Toda essa reflexão deságua numa conclusão importante: a interação conduz a um amálgama social pré-político e esse amálgama, por sua natureza, é suficientemente forte para explorar as potencialidades da inteligência humana e promover transformações positivas no território urbano. Pré-político significaria, nesses termos, a etapa anterior ao momento em que os indivíduos se lançam em discussões públicas de acordo com seus interesses e pretensões políticas.
Trata-se da crença de que, mesmo em cenários nos quais os indivíduos não possuam horizontes de objetivos iguais, a cooperação pode assumir a forma de uma colaboração amigável como um acréscimo imprescindível aos projetos de vida dos envolvidos. Nesse contexto, as disputas podem ser solucionadas na forma de um aprendizado – outro elemento que integra a ideia de inteligência – dentro de um padrão cooperativo, em que cada envolvido confere ao outro a chance de se expressar ao invés de ver prevalecer uma dada opinião com base na força e na coerção, ou, nas palavras de Dewey, nas formas de supressão à força através da violência, em que são empregados meios psicológicos de ridicularização, abuso, intimidação.
A grande contribuição do autor, então, está na adição dos conceitos de associação e comunidade como pré-requisitos à democracia e interligados aos conceitos de ação e interação social de Max Weber. Associação, aqui, tem o sentido de um deslocamento do lugar da democracia, que sai da esfera estritamente estatal – ideia que, como visto, é partilhada por Axel Honneth (4) – para o seio das relações sociais, consideradas desde a relação entre vizinhos até as grandes comunidades, e o sentido também de um modo de vida pautado no viver junto.
Comunidade, por sua vez, deixa de ser uma metáfora contratualista para passar por um processo de resignificação dinâmica, que nasce da pura associação humana na presença da liberdade para então representar uma nova forma de organização humana. Fecha-se, assim, o dualismo Estado-Sociedade civil, ao “se constituir simultaneamente como os dois sem, todavia, ser nenhum deles”.Em comum, ambas as categorias desembocam na formação de um projeto democrático radical, já que a democracia passa a ser um modo de vida cooperativo, autogovernado e autodeterminado.
Os estudos de Dewey apresentam uma abordagem bastante peculiar em torno da questão democrática, sobretudo porque esta difere, substancialmente, de boa parte da teoria contemporânea predominante da democracia.
A partir dessa leitura, Axel Honneth trabalha a etapa seguinte – que é política – e que se relaciona com a prática democrática.
De acordo com o filósofo alemão, a discussão recente sobre a democracia radical é marcada por uma polarização entre republicanismo e procedimentalismo. Em linhas gerais, tais modelos se propõem a lidar com os défices de participação do liberalismo clássico, em especial a partir de fórmulas que garantam maior participação dos indivíduos nas deliberações políticas, embora a partir de perspectivas sensivelmente distintas: no republicanismo, a tônica se concentra na negociação intersubjetiva de questões públicas como um atributo da vida nas cidades, enquanto no procedimentalismo o foco está na adoção de procedimentos moralmente justificados.
Para Honneth, contudo, esse predomínio, ainda que represente um acréscimo, trouxe consigo um efeito negativo, que se concentra no fato de que, a rigor, parece não haver outra alternativa normativa na tarefa de atualização permanente da democracia. Nesse sentido, ele sugere a adoção da teoria democrática de John Dewey como uma terceira via; à primeira vista, não há qualquer impossibilidade no sentido de harmonização das hipóteses em jogo, já que, para o filósofo alemão, a contribuição de Dewey (5) pode ser vista como um antecedente teórico das duas abordagens.
Segundo Honneth, as correntes atuais da democracia radical conferem interpretação negativa à liberdade individual. Tal posição é tributária tanto da tradição marxista quanto daquela que remonta a Alexis de Tocqueville, que entendiam que a perspectiva liberal de política reduzia-se à legitimação periódica da ação estatal através do voto e à visão de que o Estado cingia-se à proteção das liberdades individuais. Nesse quadro, pouco importava o processo de integração social, mas apenas um debate livre mínimo sobre aquilo que demandava alguma decisão.
As alternativas a esse quadro têm apostado na dimensão comunicativa, na qual a autonomia do cidadão, antes de se fundar num pressuposto de liberdade individual, estava umbilicalmente vinculada à sua associação com outros cidadãos. A democracia emergiria, assim, como um modelo calcado em situações comunicativas de interação livre de dominação.
Embora concorde com a importância desempenhada pela intersubjetividade discursiva, Dewey – aqui partilhando da tradição que remonta a Marx – entende que a liberdade comunicativa associa-se mais ao emprego comum de forças individuais para compreender e superar um problema. Por conseguinte, o autor entende que a democracia não pode ser vista como tradicionalmente e instrumentalmente o é, ou seja, como mera forma de organização do Estado em que há uma regra aritmética (a regra da maioria) para organizar a massa disforme de indivíduos isolados e com fins divergentes.
Então, se a origem da democracia como cooperação reflexiva está na liberdade (enquanto expressão de autorrealização positiva e ilimitada com fins de colaboração) e na interação orgânica dos indivíduos, o Estado é compreendido como a instituição política responsável pela execução da vontade que surge desse tecido de relações sociais.
Inverte-se, assim, a lógica aristocrática clássica da centralidade de um grupo de indivíduos talentosos poder atingir o ideal ético, pois todos os cidadãos podem, com base em sua vontade livre, aperfeiçoar-se na busca do bem, mantendo com seus pares uma relação de confiança recíproca na qual cada um é sabedor de sua função social. Para Honneth, essa noção clarifica a posição de Dewey a respeito do entrelaçamento entre cooperação, liberdade e democracia.
A democracia como cooperação reflexiva
Ao lançar essa assertiva, Honneth se propõe a explorar em que medida os argumentos das outras abordagens teóricas a respeito de seus próprios fundamentos estão equivocadas. Para realizar esse esforço argumentativo, ele procurou apontar como a adoção de um ponto de vista parcial das ideias de Dewey, por parte das duas correntes contemporâneas da democracia, se dá de forma equivocada.
Surge aí mais um indício de que, para Honneth, o direito tenha um papel importante mas limitado na coordenação da vida social, na medida em que a sociedade não pode ser vista, em sua complexidade, pela visão contratual que remonta a Rousseau e Hobbes.
Ao mesmo tempo, fica clara a presença do pensamento de Hegel, pois a noção de “organismo social” abastece o sistema da “totalidade” como expressão de uma sociabilidade que só surge como fruto da cooperação. Então, se a origem da democracia como cooperação reflexiva está na liberdade (enquanto expressão de autorrealização positiva e ilimitada com fins de colaboração) e na interação orgânica dos indivíduos, o Estado é compreendido como a instituição política responsável pela execução da vontade que surge desse tecido de relações sociais.
Inverte-se, assim, a lógica aristocrática clássica da centralidade de um grupo de indivíduos talentosos poder atingir o ideal ético, pois todos os cidadãos podem, com base em sua vontade livre, aperfeiçoar-se na busca do bem, mantendo com seus pares uma relação de confiança recíproca na qual cada um é sabedor de sua função social. Para Honneth, essa noção clarifica a posição de Dewey a respeito do entrelaçamento entre cooperação, liberdade e democracia.
Dewey reconhece a influência exercida por Hegel em suas teses sobre a democracia, nas quais a centralidade está na autorrealização humana fundada na ausência de constrangimentos externos ou influências no percurso até a aceitação voluntária de obrigações sociais. Contudo, se antes havia uma teleologia insustentável da natureza humana a impedir o direcionamento indicado no parágrafo anterior, agora entra em cena a explicitação dos mecanismos sociais que ajudam a compreender, sem influências metafísicas, a compatibilidade social da autorrealização.
Tal discussão se dá no interior de uma compreensão acerca da dependência mútua de autorrealização feita com base em estudos sobre o desenvolvimento da personalidade humana. Esses estudos se deram da forma pragmatista, indicada no item anterior, com que Dewey enxerga a função do saber científico, ou seja, como saber orientado à resolução de problemas que causam perturbação. Essa função só pode se concretizar de modo satisfatório se os cientistas cooperam, sem constrangimento, no desenvolvimento de suas hipóteses, o que, ampliado para o espectro social, significa uma valorização dos processos de aprendizagem social, na qual a democracia, ressignificada, é a forma política de organização na qual a inteligência humana, orientada para a solução de problemas emergentes sem constrangimentos para os envolvidos, atinge seu desenvolvimento pleno.
Essa conclusão apresenta grande impacto para este ponto. Afinal, é com ela que Dewey começa a enxergar a importância do conteúdo racional dos procedimentos democráticos. Isso, porém, não dá conta, por enquanto, de reconciliar esse pressuposto com a asserção de que a autorrealização individual só é possível em uma comunidade de cooperação. Para responder a essa dúvida, Dewey apresentará seu conceito de “público”, assim delineada por Axel Honneth:
“A articulação da demanda por resoluções conjuntas de problemas comuns constitui para Dewey aquilo que ele chamará de ‘público’. O termo ‘público’ é atribuído à esfera de ação social na qual um grupo pode provar que necessita de regulamentação geral porque consequências não antecipadas estão sendo geradas e adequadamente, um ‘público’ consiste do círculo de cidadãos que, em razão da preocupação conjuntamente experimentada, compartilham a convicção de que eles se devem voltar para o resto da sociedade em busca do propósito de controlar administrativamente uma interação pertinente” (6).
Esse conceito, porém, não se afigura isento de eventuais críticas. Com efeito, há uma certa vagueza conceitual acerca do que se entende por “consequências indiretas das transações”, e sobre o grau de afetação daqueles que não se encontram no círculo dos envolvidos diretamente com uma dada questão. De acordo com Honneth, Dewey talvez resolvesse a querela apostando numa proposta de assumir uma diferenciação processual entre “público” e “privado”, na qual a diferenciação entre ambos se vinculasse à extensão e escopo das consequências das ações que demandam o controle público. O Estado, assim, representaria, por decorrência lógica, uma instância de associação secundária na qual inúmeros públicos, irmanados no objetivo de articulação de uma sociedade cooperativa, tentassem solucionar problemas imprevistos no contexto da ação social.
O ambiente democrático é, assim, o melhor espaço para produzir esse efeito desejado, pois no processo de aprendizagem social, no contexto da cooperação, há maior potencial para propiciar a emergência de uma esfera pública de proponentes que podem introduzir suas hipóteses, convicções e intuições, sem constrangimentos e com direitos iguais.
Guardadas as proporções temporais, pode-se afirmar que esse diagnóstico possui grandes semelhanças com o momento presente, o que faz do quadro esboçado por Dewey um elemento de grande valor para compreender os dilemas das sociedades democráticas contemporâneas. A solução apontada por ele, então, também pode ser aproveitada na medida em que os integrantes de uma sociedade têm oportunidade de compreender o sentido da democracia ao observarem a convergência de suas ações cooperativas em direção a uma meta comum, uma consciência comum que vai em direção ao elemento pré-político.
Isso significa dizer que, embora desejável, o procedimentalismo pautado pela intersubjetividade de uma esfera pública discursiva livre deve ter como pressuposto o amálgama social cooperativo e uma orientação individual para o bem compartilhado, sem o quê, diante da complexidade do mundo contemporâneo, pautado sobretudo pela falta de tempo (falta de tempo para participar da vida social, falta de tempo para discutir orçamento participativo, falta de tempo para refletir sobre as plataformas políticas em período eleitoral), não há que se falar em democracia participativa. A própria noção de procedimento democrático ressurge aqui com uma função de resolução cooperativa de problemas.
Dessa forma, é possível discutir o conceito de liberdade comunicativa de Dewey e, com isso, diferenciá-lo dos autores mencionados neste ponto. Ela não derivaria de um discurso intersubjetivo, mas de uma cooperação comunal. Ora, isso é fulcral para compreender a diferenciação do modelo democrático proposto por Honneth como um contraponto às teorias democráticas modernas. Afinal, a tradição republicanista foi pródiga em esperar dos cidadãos o desenvolvimento, por eles, de virtudes políticas, e mais, que essas virtudes fossem o cartão de acesso deles para a prática intersubjetiva de formação da vontade e da opinião pública.
Assim, ao invés de apostar num fundamento discursivo, o que importa, para Dewey, é exatamente o processo experimental no qual a sociedade processa e resolve seus problemas, de um ponto de vista racional. Se isso, de um lado, o aproxima de Habermas, de outro o afasta, pois, se Habermas (7) considera que a esfera pública é o espaço privilegiado para que mesmo os excluídos tenham a chance de, por garantia normativa, tentar superar sua condição de marginalizados, o elemento social, para ele, torna-se um problema.
Trata-se, por fim, de uma proposta concatenada com a produção democrática baseada na experiência individual de relações cooperativas, que atende tanto a sociedades em desenvolvimento quanto às que experimentam o crepúsculo do modelo industrial. Isso faz da teoria da democracia enquanto cooperação reflexiva mais do que uma reestruturação normativamente inspirada do capitalismo; torna-a parte de um projeto de redefinição de longo alcance e, por isso, radical, de reprodução social.
Governança cooperativa e inteligência territorial na construção da agenda urbana inclusiva
Num momento em o mundo se assusta com a explosão do processo de urbanização e os processos democráticos operam nas sociedades urbanas de modo cada vez mais complexo – as maiores cidades do século 21 serão as do Sul Global -, deve-se lembrar que na América Latina, este processo ocorreu muito antes do que em outros países do Sul Global. Os dados alarmantes sobre a velocidade da urbanização atualmente ocorrendo na África e na China são semelhantes aos que ocorreram no México, Brasil e Argentina no século 20.
Ao mesmo tempo, as várias formas da desigualdade social se acentuam dramaticamente não apenas nestas cidades, mas também nos grandes centros urbanos globalizados, impondo à sociedade contemporânea uma nova crise mundial urbana, onde a demanda central é a promoção de novas formas de urbanismo em maior equidade social (8).
Richard Florida (9), o "guru" da emergência das cidades criativas, agora faz uma dura autocrítica ao seu otimismo com as democracias urbanas e potência das cidades do final do século 20. Conforme Barbara Lipietz (10), ao demandar o "direito à vida", a população urbana deve dobrar até 2050, devido em parte por conflitos e processos de migração induzidos por mudanças climáticas; a pobreza continua alarmante; a desigualdade socioeconômica e espacial aumenta; as mudanças climáticas são pauta urgente.
Ora, os urbanistas espanhóis Montaner e Muxí (11), nos lembram que a ciência do urbanismo nasceu para ordenar o território para seu uso adequado pela comunidade visando o bem comum, o coletivo sobrepondo-se ao individual, e sempre demonstrou sua vocação fundamental de transformação social e promover a redução das desigualdades nas cidades.
Um dos maiores desafios para o enfrentamento desta crise urbana mundial está na formulação de novas formas de governança urbana, cooperativa, para além das instâncias da regulação formal das cidades e mais criativas e inclusivas, cidades justas ("the just city"), onde o objetivo não é o ideal de uma "cidade justa", mas o motor da transformação incremental.
Saskia Sassen refere as cidades como sistemas complexos, mas incompletos e que tal dimensão propicia a capacidade delas sobreviverem a sistemas rígidos e se transformarem: "a possibilidade de fazer – tornar o urbano, o político, o cívico, uma história…como um espaço complexo, a cidade pode reunir várias lutas muito diversas e gerar um impulso maior e mais abrangente por uma nova ordem normativa. Ele permite que pessoas com paixões e obsessões diferentes trabalhem juntas – mais precisamente, hackear o poder juntas" (12). Sassen define esta potência das cidades e, especificamente os espaços urbanos, como capacidades urbanas, elementos híbridos para atuação política.
O desafio parece residir na superação do formal x informal de nossas democracias urbanas, na dicotomia entre ações "top down" x "bottom up". Como aponta Richard Sennet (13), não há solução justa para esse debate. Trata-se de uma contradição na vida urbana contemporânea, especialmente nas cidades emergentes, onde o recente processo de urbanização explosiva apresenta várias cidades no mesmo território, variando entre os estágios formal e informal.
O desafio pode estar na formulação de novas formas de governa e cooperação da vida urbana, com base nos contextos locais e em toda a sua riqueza de complexidades, estratégias urbanas novas e inovadoras que combinem ambos, visão estrutural da cidade e iniciativas locais de baixo para cima. O necessário processo de urbanismo social nas cidades do no Sul Global deve operar em um sistema aberto e flexível, admitindo uma cidade aberta e incompleta; há a solução de problemas, mas também a descoberta de problemas, em vez de apenas clareza e certezas, a boca pelos processos de cooperação, fonte essencial da evolução das cidades, conforme Sennett (14).
Nos últimos anos, várias entidades internacionais reivindicam um mundo melhor, mais justo e sustentável, reforçando o papel decisivo das cidades e elaborando uma agenda urbana no século 21 – o século das cidades. Em essência, a agenda resgata e amplia as questões que, pelo menos desde os anos 1960, estão fortemente presentes no planejamento urbano: o direito à cidade, o direito à moradia, o dever social de propriedade e o dever social da cidade. Os avanços nas declarações recentes baseiam-se nas questões de como promover a transformação desejada nas cidades, que estrutura e instrumentos regulatórios urbanos podem atender às aspirações sociais e inclusivas e, acima de tudo, como financiá-las. Em 2018, no final do 9º Fórum Urbano Mundial, a Declaração de Kuala Lumpur "Cidades 2030, Cidades para Todos" surgiu como uma ação conjunta da Nova Agenda Urbana com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS que reforçam e avançam a demanda por governos nacionais nos países em desenvolvimento para a implementação dos instrumentos urbanos que compõem o que denominamos aqui como urbanismo social (15).
O histórico brasileiro reforça a tese de que a existência de marcos internacionais como estes e nacional como o Estatuto das Cidades (16) são fundamentais para avanços consistentes na construção de um vida urbana socialmente mais justa e equilibrada. Mas, por outro lado, a experiência mostra que isso não é suficiente, pois a cidade é o agente que concretiza essas iniciativas e a ebulição da crise urban global demanda novas agendas urbanas cooperativas, com avanços incrementais, através de novos processos de governança cooperativos que avancem na implementação de uma gestão territorializada e integrada das políticas públicas.
Os avanços tecnológicos na vida urbana podem ampliar os processos participativos e gerar processos sociais inovadores, ampliando novas formas de governança urbana cooperativa com foco em inclusão socio-territorial, como oportunidade de construção de inteligência territorial e, neste sentido, interação/cooperação social urbana.
Neste sentido, poderia-se falar em uma cidade inteligente socialmente inovadora, que fomenta um ecosssistema inovador e propicia processos colaborativos. A partir da conectividade de diversidades, as barreiras formal-informal devem se romper gradativa e continuamente e os bolsões de exclusão social superados a partir de políticas públicas progressistas que viabilizem o chamado urbanismo social de modo incremental.
Feitas essas considerações, sigamos com algumas amarrações para a chegarmos à síntese deste ensaio.
À guisa de conclusão
Ao apresentar o arranjo descrito nos itens anteriores, a proposta é trabalhar a ideia de inteligência, integrante do conceito de cidades inteligentes de forma mais ampla e complexa. Ela não exclui o uso da tecnologia, mas desloca a equiparação equivocada e simplista entre as duas expressões para um outro patamar de análise. Nele, estão presentes alguns pressupostos, que alinharemos de forma sumária para um futuro desenvolvimento.
O primeiro é que a cidade, enquanto criação humana – e portanto manifestação de sua inventividade – proporciona um padrão específico de interação social, potencialmente complexo e rico em termos de diversidade. O segundo é que esse padrão guarda uma relação intrínseca com um processo de aprendizagem dos indivíduos que vivem em comunidade – exatamente o padrão de interação que a cidade proporciona –posto que a evolução da interação, em todos os seus aspectos, traz desafios que precisam ser enfrentados cotidianamente por seus habitantes. Acrescenta, portanto, inteligência e aprendizado. O terceiro é que essa interação forma um amálgama social pré-político e que esse amálgama se pauta pelo aprendizado e, portanto, pela inteligência capaz de resolver questões práticas da vida social. Que, por sua vez, pode ser trabalhado na forma de uma cooperação entre cidadãos que se estimam e se reconhecem como socialmente úteis. E que, por fim, conduz a uma estrutura democrática cooperativa, igualmente dotada de potencial transformador, para além das estruturas formais e institucionais de representação e participação democrática.
Trata-se de um plus importante à dimensão da regulação, na medida em que a legitimidade da lei se fortalece no momento em que os principais atingidos por seus efeitos podem participar de sua formulação e assentir com seu conteúdo. Nesse sentido, a regulação na cidade inteligente, antes de definir parâmetros de ocupação do território concatenados com um planejamento urbano mais inclusivo e capaz de ser responsivo às demandas de seus habitantes, objetivando o seu bem-estar, deve estar assentada numa linha harmônica com a inteligência que a vida nas cidades proporciona, conforme indicado no parágrafo anterior.
A tecnologia, nesse aspecto, é o produto dessa inteligência, seja por meio da criação, seja por meio do fornecimento de inputs para as esferas de tomada de decisão mencionadas no parágrafo anterior. Quanto mais denso for o projeto democrático obtido a partir desse processo, mais socialmente relevante será a tecnologia produzida. Então, a equiparação apresentada nas análises simplistas sobre as smart cities guarda, na verdade, uma relação de dependência: tecnologia só faz sentido com inteligência e, na cidade, isso faz toda a diferença. Essa a chave para começar a desvendar conceitualmente a ideia de inteligência aplicada ao território.
notas
NE – Artigo apresentado como produto da pesquisa desenvolvida em estágio de pós-doutoramento realizado junto ao programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, entre dezembro/2017 e dezembro/2019.
1
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. 5ª edição. São Paulo/Campinas, Cortez/Editora da Unicamp, 2016, p. 634.
2
Idem, ibidem, p. 639.
3
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. In BOTELHO, André. Essencial Sociologia. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.
4
HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. In SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje – novos desafios para a teoria democrática hoje. Brasília, Editora UnB, 2001.
5
DEWEY, J.
6
HONNETH, Axel. Op. cit., p. 81.
7
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8
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9
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Montaner, Josep Maria; Muxí, Zaida. Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativos [e-book]. Barcelona, Gustavo Gili, 2014.
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14
Idem, ibidem.
15
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16
República Federativa do Brasil. Estatuto da Cidade, lei 10.257 de 10 de julho de 2001. Brasília, 10 de julho de 2001.
sobre os autores
Wilson Levy é advogado (PUC SP), mestre (FD USP) e doutor em Direito Urbanístico pela PUC SP, com estágio de pós-doutoramento junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diretor do PPG em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove.
Carlos Leite é arquiteto e urbanista com mestrado e doutorado pela FAU USP e pós-doutorado pela Universidade Politécnica da California. É professor adjunto na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor colaborador do Programa em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove e pesquisador convidado no Instituto de Estudos Avançados da USP.