Preâmbulo
Tenho acompanhando com preocupação o crescimento das atitudes do Estado contra o patrimônio público de interesse cultural cuja administração e gestão deveria ser de sua responsabilidade, enquanto assisto à aceleração de processos que têm seguido um roteiro, no mínimo incompatível com estas responsabilidades: abandono e consequente sucateamento do patrimônio público, seguido de declarações de falência e incompetência da administração pública para “justificar” o início de processos de terceirização de responsabilidades próprias do Estado, através da privatização ou concessão destes bens. Na privatização, o patrimônio público é vendido e a exploração da atividade econômica da estatal ou do bem privatizado é transferida para o capital privado. A diferença da concessão, é que ela prevê que os bens a serem explorados serão devolvidos à administração pública no final do contrato, o que não deixa de ser preocupante se observarmos o estado de sucateamento do patrimônio ferroviário de responsabilidade das empresas concessionárias no Estado de São Paulo, para dar só um exemplo.
A inciativa privada interessada nestes processos, como é evidente, obedece a lógicas próprias de investimento e rentabilização. Não faz parte dos pacotes arrematados promover políticas de democratização do acesso à cultura, ao lazer e ao esporte, muito menos de preservação de valores coletivos da cultura, reponsabilidade do Estado. E é assim que lá se vão, nesta enxurrada de desatinos, o Cais Estelita em Recife, o Estádio do Pacaembu, o Parque e agora o Ginásio do Ibirapuera em São Paulo, e mais recentemente o Museu do Meio Ambiente no Rio de Janeiro, entre tantos outros bens, Brasil afora.
Paralelamente, com o crescimento do número de tombamentos, que impõem restrições estendidas às respectivas áreas envoltórias, os Conselhos dos órgãos públicos de preservação passaram a ter um papel cada vez mais determinante na gestão das cidades. Mais determinante ainda é este papel quando se trata de cidades pequenas e médias, onde passam mesmo a competir e até a se sobrepor às determinações municipais, interferindo nas políticas e nos interesses locais. A consequência vem sendo a paulatina substituição de profissionais e especialistas em preservação que tradicionalmente ocupavam os cargos técnicos de confiança e os assentos de conselheiros destes órgãos, por profissionais e políticos comprometidos com interesses privados e/ou das políticas partidárias das respectivas gestões. Esta “politização” dos órgãos de preservação vem contaminando e comprometendo a isenção da atuação dos seus Conselhos e decisões, chegando a colocar os órgãos de preservação no banco dos réus junto com empreendedores e políticos, em processos que defendem os direitos culturais das cidades e de seus cidadãos.
Poderia repetir aqui os argumentos de sempre, como aqueles constantes do parecer que elaborei há mais de vinte anos para o Mistério Púbico Estadual por ocasião da primeira investida de privatização contra o Estádio do Pacaembu, e citar mais uma vez o texto da Constituição de 1988 que determina no seu artigo 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”. Ou citar as Cartas Internacionais de compromisso, que normatizam procedimentos em relação à preservação, como as Normas de Quito (OEA – 1967), quando estipula que: “todo monumento nacional está implicitamente destinado a cumprir uma função social. Cabe ao Estado fazer com que ela prevaleça e determinar, nos diferentes casos, a medida em que a referida função social é compatível com a propriedade privada e com o interesse dos particulares”.
Poderia também repetir, mais uma vez, e quantas vezes for necessário que, mesmo concordando que “é insusceptível de tombamento, o uso específico de determinado bem”, é preciso esclarecer que a utilização do bem tombado não deve lhe causar danos, colocá-lo em risco e muito mesmo impor mudanças no significado cultural que provocou ou está a provocar seu acautelamento. Até porque, no fundo, o mais importante todos nós sabemos, e mesmo assim parece que estamos sempre precisando nos lembrar e lembrar aos políticos e gestores das nossas cidades: temos direitos como cidadãos, inclusive direitos culturais, e existe uma responsabilidade efetiva do Estado em relação à manutenção e defesa desses direitos que tem que ser respeitada, não pode ser simplesmente repassada a terceiros. Cabe ao Estado cumprir seu papel e, assim como os cidadãos, respeitar e proteger o patrimônio brasileiro de interesse e valor cultural: Tombe Estelita, patrimônio de valor cultural! Tombe o ginásio do Ibirapuera, patrimônio público de valor cultural! Respeite Estádio do Pacaembu, patrimônio público tombado e concessionado!
[Preâmbulo de Cecilia Rodrigues dos Santos]
Ocupe Estelita
Em 2014, após uma tentativa de demolição dos galpões ferroviários no Cais José Estelita, em Recife, por parte da incorporadora Consórcio Novo Recife, foi promovida a ocupação pacífica da área pelo movimento Ocupe Estelita, em protesto contra um projeto imobiliário já então questionado também judicialmente pelo Ministério Público Federal. A área em questão, localizada entre os bairros de Boa Viagem, já bastante verticalizado, e o Recife Antigo, o centro histórico da capital pernambucana, foi arrematada pelo Consórcio Novo Recife em um leilão público realizado em 2008, em circunstâncias ainda a serem esclarecidas.
Novo Apocalipse Recife, videoclipe musical produzido pelo Movimento Ocupe Estelita
O movimento que se organizou em função dos golpes à integridade da cidade de Recife – a ocupação do Cais José Estelita por um empreendimento imobiliário contando com 13 torres de 40 andares – foi promovido pela ONG Direitos Urbanos e pelo grupo Ocupe Estelita, contando com diversas ocupações político-culturais com repercussão nacional e internacional (1).
Apresentamos aqui os argumentos que fundamentaram o nosso trabalho de assessoria técnica especializada para acompanhamento e avalição de possíveis danos e riscos ao patrimônio cultural decorrentes do projeto do empreendimento Novo Recife para o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, localizado no Cais Estelita. Argumentos conclusivos que justificaram e fundamentaram o pedido de abertura do processo de tombamento da área do Cais Estelita por seu legítimo e reconhecido valor cultural, assinalados valores de patrimônio industrial ferroviário e valores de paisagem histórica, que foi indeferido pelo Iphan (2). Passados seis anos, acreditamos que este trabalho mantém sua atualidade, e a publicação não apenas se justifica, como se faz urgente para reiterar valores, procedimentos técnicos e legais e decisões relacionados à preservação do patrimônio cultural no Brasil, hoje ameaçado seriamente na sua integridade (3).
Torres gêmeas e outras torres: inútil paisagem
É possível fazer uma avaliação prévia do impacto direto das torres projetadas para a área do Cais Estelita, especialmente do impacto sobre o vizinho Forte das Cinco Pontas tombado pelo Iphan, a partir da avaliação do dano causado à ambiência de bens tombados na mesma vizinhança por outro empreendimento lançado em 2004. Trata-se da construção, pela mesma empresa Moura Dubeux que faz parte do consórcio Novo Recife, de duas torres residenciais de 42 andares e 135 metros de altura, em terreno situado no chamado Cais de Santa Rita, centro histórico da Cidade do Recife. Ironicamente batizadas pelos empreendedores com nomes que fazem alusão à sua situação privilegiada em relação ao centro histórico de Recife – edifício Pier Duarte Coelho e edifício Pier Maurício de Nassau – as torres são mais conhecidas pelo apelido carinhoso de “torres gêmeas”.
Exemplo emblemático do rompimento com o tecido histórico e com a ambiência de bens tombados, as torres gêmeas de Recife foram aprovadas pela Superintendência do Iphan em Pernambucocom a justificativa de que se encontravam fora da poligonal de entorno do bem tombado Forte das Cinco Pontas. Com a mesma justificativa, a Superintendência do Iphan em Salvador aprovou a controvertida torre residencial La Vue. Neste caso, as obras foram interrompidas pela então presidência do próprio Iphan, com apoio do então Ministro da Cultura, contrariando parecer da então Superintendência Regional do Iphan na Bahia, fato que acabou se desdobrando em grave crise política nacional (4). A diferença entre a torre de Salvador e as torres gêmeas de Recife, é que estas últimas foram aprovadas e construídas com o aval do Iphan em todas as instâncias, e à revelia de ações judiciais e de movimentos da sociedade civil organizada, criando assim um oportuno precedente para o empreendimento no vizinho Cais Estelita. Uma disputa judicial cercou todo o processo de aprovação e de construção das duas torres (5).
O Projeto Novo Recife é um empreendimento imobiliário empresarial de uso misto – habitação, empresas, hotelaria – previsto para ocupar uma área 66 144,54 m2com 13 torres com alturas variando de 42m a 138m, totalizando 354 989,58 m2de área construída. O empreendimento do Consórcio Novo Recife é composto pelas empresas Ara Empreendimentos, Moura Dubeux Engenharia e Queiroz Galvão, e está previsto para ocupar terreno de interesse de preservação, com área total de 158 210,31 m2, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, no Cais José Estelita, bairro de São José, zona central da cidade de Recife. A criação de uma “parede edificada” constituída pelas torres que fazem parte do empreendimento, alteraria radicalmente a ocupação do território e o gabarito que prevalece na área, criando uma ruptura em relação à margem aquática, aos sistemas de transporte naval e ferroviário, à espacialidade e à morfologia urbana de Recife. Além de gerar um impacto negativo de grandes proporções tanto na paisagem como na vizinhança imediata de dezesseis bens tombados pelo Iphan, em especial do Forte das Cinco Pontas.
A área histórica do Recife se desenvolveu linearmente e em escala homogênea, tendo a margem aquática como um dos seus limites. A característica principal de sua formação é o diálogo mantido com as águas, seja com o mar ou com os rios, seja navegando ou construindo pontes, diálogo que estabelece a interlocução entre os diferentes sítios e núcleos urbanos. A cidade foi construída sobre uma planície encharcada, formada por ilhas, penínsulas, alagados, manguezais; não seria exagero afirmar, concordando com poetas e historiadores, que Recife foi uma cidade literalmente “tomada das águas”, já que parte significativa da sua ocupação é resultado de aterros sucessivos no estuário comum dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió.
O desenho da cidade e seu desenvolvimento foram também marcados pela construção de um sofisticado sistemas de defesa cuja construção foi iniciada pelos portugueses e incrementada pelos holandeses no período de dominação (1630-1654). Mapa holandês de 1665, mostra Maurícia e o Istmo do Recife: “os fortes do Picão (conhecido também como Forte do Mar) e de São Jorge foram construídos pelos portugueses. Uma das fortificações mais importantes, o forte Ernesto, foi construído ao redor do Convento Franciscano de Santo Antônio, servindo de sede para a administração militar do local. Ao Sul da ilha de Antônio Vaz, foi construída uma linha de fortificações. Uma importante construção militar, segundo a carta, concluída em março de 1631, foi o forte do Brum (de Bruyn) ao Norte do forte de São Jorge, construído segundo projeto de Commersteijn. Na extremidade mais ao Sul da Ilha está o forte Fredrick Henrick, conhecido hoje, como Forte das Cinco Pontas. De igual importância defensiva foi a construção da muralha ao redor do Recife, obra em alvenaria que era protegida por estacas nos limites com a água” (6).
As fortificações são parte integrante das transformações do espaço físico da cidade que incluem ainda aterramento de mangues, construção de pontes, drenagem de camboas, e demais melhorias (7), que não só definem a paisagem como a caracterizam culturalmente. Ao avistar a costa do Rio de Janeiro pela primeira vez, em 1929, Le Corbusier reconheceu com clareza e poesia, o papel que desempenhavam as fortificações na composição das paisagens do litoral brasileiro, paisagens culturais avant la lettre (8): “As fortalezas dos estuários são cabeças que comandam, patrulham, protegem. São elas que encontramos a cada estuário sulamericano, quando o navio chega”. E continua: “vê-se o forte português a patrulhar o mar e enfrentar as terras; uma flor de geometria no cruzamento dos postos de mar e terra, comanda, patrulha e protege; um cristal de civilização” (9); precoce e precisa definição de uma paisagem cultural.
A salvaguarda de núcleos urbanos e cidades históricas deve partir da compreensão e do reconhecimento dos valores a preservar, contemplando, além da forma e morfologia urbanas, “as relações entre os diversos espaços urbanos, espaços construídos, espaços livres e espaços cultivados” (10). A relação terra-água do sítio onde foi construído Recife bem como o trabalho de acomodação da cidade à geografia deste sítio desde a época colonial – feita da combinação de pontes, aterros e operações de drenagem, incluído o sofisticado sistema de defesa – define uma paisagem cultural única, cantada em prosa e verso por João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Carlos Pena Filho, entre tantos outros. No início dos anos 1940, o recifense Josué de Castro, em “Perspectiva ideal da Cidade do Recife” (11), olhando sua cidade do alto, considera que Recife conseguira crescer e se transformar sem destruir sua bela paisagem natural, em perfeito equilíbrio geográfico de lagoas, rios, ilhas, mocambos, ruas, sobrados, pontes que se uniam, segundo o autor, em harmoniosos jogos de cores compondo uma unidade geográfica que revelava o corpo e a alma da cidade, a tão cantada Veneza brasileira. Hoje com o corpo aviltado e a alma ferida, cumpre preservar o que ainda sobra de dignidade e harmonia no Recife de Josué de Castro.
O empreendimento Novo Recife, localizado nesta região, pretende ocupar e verticalizar uma área historicamente caracterizada como “vazio urbano”, que assim se apresentou ao longo do tempo: uma área de transição entre a cidade e o mar que permite a leitura e a fruição da paisagem assim como dos monumentos tombados, tanto em seu contexto histórico como no diálogo que estabelecem com a paisagem, com a margem aquática em especial. Situada no terreno do pátio ferroviário denominado Pátio das Cinco Pontas, no entorno imediato do Forte das Cinco Pontas, monumento tombado pelo Iphan em 1938, a área em questão se encontra no entorno de 16 bens tombados individualmente pelo Iphan, na vizinhança imediata da Igreja de São José do Ribamar, tombada pelo Iphan em 1980, na área de ambiência do Bairro do Recife, tombado pelo Iphan em 1998 (12).
O parecer que fundamentou este trabalho, uma vez concluído passou a justificar o pedido tombamento da área pelo Iphan pela sua legítima e reconhecida expressão cultural, assinalados valores de patrimônio industrial ferroviário e valores de paisagem histórica, além de discutir os critérios para preservação da vizinhança imediata do Cais onde estão localizados dezesseis bens tombados pelo Iphan, apoiando as ações em defesa dos direitos culturais organizadas pela população local para defender o patrimônio representado pela área do Cais Estelita, que desempenharam papel fundamental na preservação do conjunto.
Atribuição de valor: o Forte das Cinco Pontas
O Forte das Cinco Pontas, ou Forte de São Tiago das Cinco Pontas, também conhecido como Forte das Cacimbas, tombado pelo Iphan em 1938, está situado no entorno imediato do empreendimento Novo Recife. O forte foi construído pelos holandeses para garantir a posse de sua principal base e de seu porto, no período de estabelecimento no Nordeste. A construção de uma nova cidade, Cidade Maurícia ou Mauriceia, na Ilha de Antônio Vaz incluía a edificação de uma fortificação para proteger a extremidade sul da cidade e as cacimbas do Ambrósio, importante fonte de água potável. O local também seria estratégico para o controle do acesso à cidade a partir da várzea (13). O forte faz parte do primeiro sistema defensivo holandês montado no Recife, composto pelo Forte das Cinco Pontas, o Forte Ernesto, ainda em Antonio Vaz, o Forte de Três Pontas na confluência dos dois rios, o Forte do Brum no istmo, e o Forte do Picão na entrada da barra.
Adriaen van der Dussen, no “Relatório sobre o estado das Capitanias conquistadas no Brasil” (1640), descreve a fortificação Frederik Hendrik como um forte pentagonal, com cinco baluartes, um fosso largo e um forte contra escarpa e, em redor, na berma, uma sólida estacada. Diante deste forte estava situado um bom hornaveque (14) e, em frente a este, um hornaveque mais leve, cobrindo os terrenos altos que havia nas proximidades (15) e criando situação única no Brasil: a presença de dois hornaveques que se estendiam para além da fortificação principal. O Forte das Cinco Pontas manteve sua importância militar até o final do século 18, permanecendo como marco do limite da ocupação urbana da Freguesia de São José, e da área edificada na direção sul do Recife até o século 19. Assim, além de ser importante elemento de um dos mais importantes sistemas defensivos construídos do Brasil colônia, desempenhou papel de destaque na evolução urbana da área histórica do Recife (16).
A defesa do Recife colonial, segundo o historiador Adler Fonseca de Castro, seguia princípios diferentes dos que foram adotados no resto do Brasil, havendo não só a preocupação com a defesa de incursões que viessem do mar, como também com aquelas que pudessem atacar a cidade por terra (17). Os pontos básicos de defesa eram o istmo, que ligava o bairro do Recife a Olinda, protegido pelos fortes do Buraco e do Brum, e o controle do acesso pelo bairro dos Afogados (18). A manutenção das características originais do território onde foi implantado é essencial para o entendimento deste singular sistema de defesa, e do papel destinado ao Forte das Cinco Pontas, tendo sido um dos valores justificativos do seu tombamento pelo Iphan em 1938. Também, o papel das áreas livres ou esplanadas é fundamental na composição das fortalezas pois, para alcançar plenamente seus objetivos, tinham que ter em suas baterias um campo de tiro livre; não era permitida a construção de qualquer edificação nas proximidades das muralhas, impedimento que não era só de ordem militar, havendo uma legislação (19) que proibia a construção de casas no terreno de domínio dos fortes (20).
Concordamos com Adler Fonseca de Castro quando argumenta que, no caso do Forte das Cinco Pontas, a área mais importante para a leitura e entendimento do bem tombado é justamente aquela que vai do forte em direção ao bairro de Afogados pois, apesar de ter uma função defensiva com relação a barreta das jangadas ( pequena abertura na linha de recifes que lhe ficava de fronte), a fortificação tinha como principal papel o controle do trânsito de pessoas entre a região dos Afogados e a cidade de Mauricéia através do aterro construído entre os dois fortes, o das Cinco Pontas e o do Príncipe Guilherme (21), que corresponde hoje à área do empreendimento. Ou seja, historicamente, a área onde está situado o Pátio fazia parte do acesso terrestre para a cidade e para o interior e para defendê-la foi construído o Forte das Cinco Pontas e, na outra extremidade do aterro dos Afogados, o forte Príncipe Guilherme (22).
O vale do Capibaribe, no momento da invasão holandesa contava com aproximadamente dezesseis engenhos que representavam a principal riqueza econômica de Pernambuco, e o acesso à várzea se dava pelas terras dos Afogados. Fortificar essa área significava garantir o bloqueio à várzea, impedindo o acesso aos engenhos. Conquistada a praça dos Afogados pelos holandeses, iniciou-se em seguida a construção do Forte Príncipe Guilherme, ou Forte dos Afogados ou Forte de Piranga. Situado no continente, cerca de nove quilômetros a sudoeste da cidade Maurícia, ele é descrito por Mauricio de Nassau como um forte de quatro pontas com quatro baluartes, “muito bem colocado, porque nos assegura o caminho da Várzea [do rio Capibaribe] e de toda a terra, e defende a passagem da ilha de Antônio Vaz para os Afogados” (23). Ficava situado na parte mais elevada de uma planície “dominando assim o campo até onde o canhão pode alcançar”, com fossos profundos a Noroeste.
Após a expulsão dos holandeses, alterou-se o sistema de defesa do Recife. Vários fortes foram destruídos ou simplesmente abandonados, entre eles o Forte dos Afogados, e no início do século 19 foi demolido o que restava do antigo forte. As duas fortificações, construídas nas duas extremidades do aterro dos Afogados, definem geograficamente uma área histórica de mangues e alagados, plana e aberta para o interior produtor de açúcar, área conquistada por sucessivos aterros para finalmente ser ocupada pela ferrovia. Apenas na segunda década do século 19 observa-se a ocupação urbana desta região, incluindo o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, ponto inicial da Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco.
A área de entorno do Forte das Cinco Pontas, segundo parecer do historiador Adler Fonseca de Castro para a Regional do Iphan-PE, tem que ser considerada a partir de questões defensivas: era de praxe, nas fortificações antigas, deixar um amplo espaço vazio nas imediações, como pode ser observado na cidadela de Lille, França, projeto de Vauban (24). Outro ponto muito sensível nos projetos de defesa nos séculos 16 ao 19, diz respeito ao gabarito das fortificações: altas para comandar a maior parcela possível do território e dificultar assalto por escalada, mas não tão altas que prejudicassem o fogo da fortificação.
Portanto, para o entendimento do monumento tombado Forte das Cinco Pontas, é fundamental garantir a existência de uma ampla área aberta em conexão, no entorno e em direção ao mar, área esta que pode e deve ser protegida como uma extensão do bem tombado. A função histórica de uma fortificação exigia a presença dessa abertura, como é explicitado pela legislação na chamada “zona de servidão militar”, o que ainda reforça a importância da manutenção de uma área livre ao redor do forte; desde 1994 o Iphan vem adotando os princípios da preservação da zona de servidão militar para balizar a elaboração de normas de tombamento e entorno de fortificações.
Só é possível entender um bem tombado em sua funcionalidade, se mantidos os elementos que facultam este entendimento. Retirar a edificação de seu contexto original, suprimindo, por exemplo, a relação do Forte das Cinco Pontas com o mar, fato que lhe garante a função primeira de defesa, significa romper com a sua funcionalidade e a sua razão de ser, rompendo em consequência com os elementos que justificaram seu tombamento. Assim, da mesma forma como a manutenção de um espaço aberto, interligado com o mar, permite compreender o papel determinante do Forte das Cinco Pontas na expansão urbana de Recife, ela explicita uma tática defensiva que não encontra paralelo em nenhuma outra cidade no Brasil, exceto em Salvador, mesmo com a leitura prejudicada pelo crescimento e densidade urbana.
Portanto, a manutenção da configuração da área em que se insere o Forte não é só uma questão fundamental de visibilidade – artigo 18 do Decreto-Lei n. 25/37 – como também da manutenção da ambiência, ou dos fatores que explicam o bem em seu contexto histórico específico (25). Se considerado fora da sua inserção na paisagem urbana e na sua ambiência, o bem tombado poderia passar a ser entendido como uma “escultura arquitetônica” destituída de função e significado (26), quando se poderia afirmar que o bem tombado não estaria preservado na sua integridade.
Atribuição de valor: Pátio Ferroviário das Cinco Pontas
A área correspondente ao Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, localizado no Cais José Estelita, de especial valor para a história e o desenvolvimento da cidade de Recife (27), é um aterramento contíguo a área de aterro dos Afogados, ligação do bairro do Cabanga ao de São José, banhando pela Bacia do Pina. O primeiro traçado da linha férrea de Recife a São Francisco, se estabeleceu sobre o aterro holandês, evitando as custosas obras que seriam necessárias para cruzar os rios Beberibe, Capibaribe e Pina.
O Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, localizado no Cais José Estelita, bairro histórico de São José, Recife, foi o ponto de partida da E. F. Recife ao São Francisco, ou Recife and São Francisco Railway Company, inaugurada em 8 de fevereiro de 1858, a primeira estrada de ferro do Nordeste e a segunda do Brasil. O trecho inicial ia de Cinco Pontas ao Cabo, no Estado de Pernambuco, com uma extensão de 31,5 km. Em 1901, a empresa inglesa Great Western of Brasil Railway Co. obteve a concessão da E. F. Recife ao São Francisco e da E. F. Sul de Pernambuco. Dentre os pátios ferroviários remanescentes das primeiras ferrovias do Brasil, Cinco Pontas se destaca como o mais íntegro apesar das adaptações e perdas sofridas ao longo do tempo.
O objetivo desta ferrovia era fazer o transporte de mercadorias das zonas produtoras de açúcar no interior, até o porto em Recife. Mas Recife, até a década de 1930, não contava com um atracadouro, obrigando os navios a ficarem fundeados e a se levar as mercadorias até eles por batelões e alvarengas, exigindo a construção de um complexo sistema de armazenagem de mercadorias nos terminais das estações e portos (28). Segundo Betânia Brendle e Natália Miranda Vieira (29) os antigos armazéns do Porto do Recife são representativos menos de uma expressão arquitetônica isolada, e mais de um conjunto que confere identidade a área portuária ao Bairro do Recife, portal marítimo da cidade. Este sistema de armazéns ainda existe, de forma mais ou menos íntegra, no Pátio das Cinco Pontas e ao longo do porto, integrados à paisagem da cidade (30).
Rico em bens de valor histórico e arquitetônico, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, reconhecido como patrimônio industrial ferroviário – acrescido ainda de valores de história, valor tecnológico, social, arquitetônico, urbanístico e cientifico –, pode ser tomado como testemunho uma unidade funcional industrial, reunindo espaços de produção, de serviço e de moradia em um conjunto de edificações, equipamentos e instalações, chegando a contar com uma estação de passageiros e uma estação operacional (31), escritório central, vinte e oito armazéns, castelo de maquinista, posto médico, oficina de locomotiva e oficina de vagões, caixa d'água, areeiro, oficina de eletrotécnica, balança, casa de força, escritório, cilindros de armazenamento de melaço, dois armazéns de açúcar, centro de controle de linha, guarita e algumas casas da antiga vila ferroviária, conjunto de linhas componentes de um pátio de manobras , abrigo de vigia, abrigo de balança, posto telegráfico, alojamento de maquinista, conjunto do qual ainda existem remanescentes significativos que guardam importante ligação morfológica e funcional com o porto e a cidade de Recife (32).
O pátio, com sua ocupação esparsa e horizontal, está situado num espaço essencialmente “vazio”, que desenha o perfil e a frente d'água do bairro de São José, resultado de um processo construtivo intencional, planejado e coerente com as diferentes funções a que se destinou ao longo de sua história, assim mantido tanto pelos holandeses como pela legislação colonial. A cartografia histórica da cidade do Recife desde 1644, permite acompanhar o processo de configuração desta área onde foi se instalar o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, e da consolidação do “vazio urbano” que ainda hoje a caracteriza. Condição esta, de “vazio urbano”, que teve origem na estratégia defensiva de Recife, conforme citado.
Ainda, é importante assinalar que a chegada da ferrovia ao porto do Recife, vai estabelecer uma conexão indissociável e fundamental entre a área do Pátio Ferroviário em questão e o Porto do Recife e com o conjunto arquitetônico do Bairro do Recife, integrando os dois sistemas de transporte, o ferroviário e o naval.
Atribuição de valor: a área de entorno de 16 bens tombados individualmente pelo Iphan, da igreja tombada de São José de Ribamar e vizinhança do bem tombado Bairro do Recife
O empreendimento Novo Recife, objeto da intervenção na área do Cais Estelita, está situado na vizinhança de 16 bens tombados individualmente pelo Iphan (33) localizados nos bairros de Santo Antônio e São José, bens suficientemente próximos uns dos outros para se definirem como um conjunto, desenhando uma única poligonal de entorno resultante da interseção das poligonais de cada monumento. Na década de 1980, o Iphan elaborou estudos com o objetivo de estabelecer esta poligonal única de entorno para o conjunto, procurando valorizar não só a relação do conjunto como de cada um deste bens com a cidade, com a margem aquática, com os sistemas de transporte naval e ferroviário, além de considerar os valores de arte e história justificativos dos tombamentos individuais. O objetivo era que estes estudos técnicos se constituíssem em portarias a serem observadas na análise das intervenções nos bens tombados, sempre priorizando a manutenção da integridade de cada um dos bens e observando do artigo 18 do Decreto-Lei n. 25/1937. Lembrando que as chamadas “portarias de entorno”, foram criadas com o objetivo de auxiliar o trabalho técnico, jamais para cerceá-lo ou para se colocar como substituto ao preceito maior, contido no Decreto-Lei n. 25/1937. Este instrumento de trabalho deveria ser revisto frequentemente, no máximo a cada 5 ou 10 anos, considerando a natureza dinâmica inerente ao desenvolvimento urbano, ou sempre que fosse avaliado que a portaria já não estivesse cumprindo seu papel.
O empreendimento Novo Recife se situa também na vizinhança imediata da Igreja de São José do Ribamar, tombada pelo Iphan em 1980, e na vizinhança do Bairro do Recife, tombado pelo Iphan em 1998.
Sobre entorno, ambiência e vizinhança dos bens tombados: até onde a vista alcança ou até onde o canhão pode alcançar
Até onde a vista alcança, foi a delimitação de Lucio Costa para o entorno da cidade tombada de Ouro Preto. Até onde o canhão pode alcançar, foi a forma de Mauricio de Nassau definir o vazio que deveria prevalecer como entorno de uma fortificação, no caso o Forte Guilherme, em Recife. A delimitação da área de entorno de bens tombados é tema complexo, podendo-se confundir “indefinição de parâmetros” com a necessária flexibilidade que devem ter a delimitação das poligonais para que possam se adaptar às diferentes e únicas caraterísticas de cada bem tombado. Entorno é um conceito que se refere à área que envolve um bem tombado, cuja preservação é necessária para manter a integridade deste bem. Além dos aspectos morfológicos, paisagísticos, históricos e estéticos, a Declaração de Xi-an / Icomos (34) aponta também para as características de natureza cultural, social e econômica intrínsecas ao desenho destas poligonais; no Brasil, desde a Carta de Brasília de 1995, o entorno de um bem tombado deve ser tratado como condição necessária para informá-lo e atestá-lo.
Internacionalmente, esta dinâmica vem sendo metodologicamente estudada e organizada, e a relação entre monumentos ou sítios reconhecidos e protegidos, e os respectivos contextos / ambiências / entornos / vizinhanças, têm levado à discussão para além do critério de visibilidade, definindo a ideia de “zonas de amortecimento”, que incorpora fatores relativos à construção e ao clima, como outros fatores de ordem econômica, social e cultural. A Declaração de Xi-an sobre a preservação do entorno edificado, sítios e áreas do Patrimônio Cultural (Congresso do Icomos em Xi-an, China, 2005) reconhece que o entorno pode gerar impactos na percepção e na estrutura física do edifício e dos sítios, determinando que devem ser feitas avaliações de qualquer projeto na vizinhança de edificações, sítios e áreas de interesse cultural, ou patrimonial, assim como sobre os respectivos entornos.
O valor atribuído pelo Iphan ao entorno de bens tombados tem estado principalmente relacionado com a capacidade de garantir a visibilidade e a fruição. Já há alguns anos, de forma cada vez mais sistemática, as poligonais de entorno passaram a ser desenhadas e homologadas junto com o tombamento, sempre específicas a cada bem. As poligonais de entorno são regidas pelo Decreto-Lei 25/1937, Art. 18 – “sem prévia autorização do serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, não se pode, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade” – e pela Portaria Iphan 420/2010, Art.23 – “a proposta de intervenção ou projeto serão aprovados quando estiverem em conformidade com as normas que regem o tombamento”.
Ao rever a discussão sobre as diretrizes da preservação do entorno de bens tombados no Iphan, Cristiane Cabreira e outros (35), recupera critérios que vão da visualização à ambiência, e avança em relação à discussão que começou a ser sistematizada por Lia Motta e Ana Lucia Thompson (36), revelando que, se não existe uma normatização ou diretrizes definidas sobre o assunto, existe, sim, importante documentação e muita reflexão que deveria ser, mas nem sempre é, retomada para fundamentar decisões técnicas sobre entorno e ambiência de bens tombados pelo Iphan. Em particular sobre Recife, durante os debates que cercaram os projetos das torres gêmeas e do empreendimento Novo Recife, raramente se menciona o trabalho de Aline Figueiroa Silva (37), “Critérios para intervenção no Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Antigo Bairro do Recife”, publicado pelo próprio Iphan, que elabora proposta para delimitação do entorno de bens tombados no antigo bairro do Recife, com sugestão de ampliação do tombamento do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico, propondo uma metodologia para a delimitação da área de entorno que parte da noção de “paisagem cultural” nos moldes propostos pela Unesco.
Não há como dissociar o Pátio das Cinco Pontas do Forte das Cinco Pontas
O Cais Estelita até poderia ter inspirado uma nova abertura em relação à preservação do patrimônio cultural, colocando em discussão a “ampliação da ideia de patrimônio” sempre mencionada porem pouco refletida. Para além dos discursos demagogos, gostamos de acreditar que fazemos parte do coro que vem lá do Cais, mas com nossa voz grave e específica, engajada na atualização dos métodos e conceitos da preservação do patrimônio cultural a partir do lugar que é o nosso neste coro, ou seja, atuando a partir do campo do patrimônio e da preservação, considerado não apenas nos conceitos e métodos que lhe são próprios, como também nas práticas históricas que o alimentam e fortalecem suas raízes. Apostando que tentativas de re-situação conceitual do patrimônio em termos de identidade e pertencimento – que vai além da aplicação burocrática de preceitos ou de fazer tabula rasa de toda uma história construída há mais de 200 anos – representam a possibilidade de uma nova moderação no jogo de forças definido pela realidade globalizada.
Infelizmente, este parecer que veio a instruir um pedido de abertura de processo de tombamento, não foi considerado pertinente pelos dirigentes do Iphan. Por ocasião da 82ª reunião do seu Conselho Consultivo (38), no dia 06 de maio de 2016, foi acatada a proposta de arquivamento do Processo n.1 730-T-lS (Pátio Ferroviário das Cinco Pontas Recife/PE), encaminhado pela ONG Direitos Urbanos e pelo Ministério Público Federal – 4ª Câmara de Brasília, ambos justificados nos termos desenvolvidos por esse trabalho em tela, em decisão quase unânime do Conselho (39).
A título de conclusão, considerando a situação da área passados mais de 5 anos, reiteramos nosso parecer e a justificativa de tombamento que ele veio a fundamentar. Além de estar situado no entorno imediato de 16 Monumentos Nacionais preservados pelo Iphan, o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas é ainda um precioso documento sobre a memória ferroviária de Pernambuco e do Brasil, e um bem de enorme valor para a história de Recife. O pátio foi implantado sobre zona de aterramento contígua ao antigo Aterro dos Afogados, realizado no século 17 por iniciativa dos holandeses para ligar o Forte das Cinco Pontas, Monumento Nacional desde 1938, e o Forte do Príncipe Guilherme (demolido no início do século 19). Essa área aberta compunha um sofisticado sistema defensivo de mar, rios e canais, demarcando também a entrada por terra da região produtora de açúcar. Além disso, ao longo do pátio, sobre o aterro dos Afogados, encontra-se o traçado da primeira linha férrea de Pernambuco, segunda do Brasil, que visava ligar o Recife ao rio São Francisco.
A área se destaca também pelo valor enquanto paisagem cultural, na sua relação histórica com a bacia do Pina, com o bairro do Recife e com o antigo Porto do Recife. Tratada como um “espaço vazio” pelos holandeses, parte da estratégia de defesa da Cidade Maurícia, continuou livre de construções nos termos da legislação colonial portuguesa e manteve baixa ocupação durante a posterior ocupação ferroviária. Este tradicional “vazio urbano” é essencial para a constituição física da imagem da cidade do Recife. A chegada da ferrovia ao Porto do Recife estabelece uma conexão indissociável e fundamental entre a área do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas/Cais José Estelita, o Porto e o conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico do Bairro do Recife, tombado pelo Iphan em 1998, assim como entre os sistemas de transporte ferroviário e naval que contribuíram para a transformação e configuração de uma das paisagens mais significativas da cidade.
Portanto, e é importante assinalar, o que motivou o pedido de tombamento foi o valor cultural do bem em questão, seu reconhecido conteúdo histórico, artístico, arqueológico de legítima e reconhecida expressão cultural. Se a preservação destes valores e seus suportes implicaria na revisão de qualquer empreendimento destinado a ocupar a área e sua vizinhança, a finalidade do pedido de abertura de processo de tombamento certamente não é impedir a verticalização de uma área atendendo aos anseios da população (mesmo que tenha ido ao seu encontro...), ou fazer do Iphan árbitro de questões urbanos se substituindo à municipalidade, como foi alegado. Consideramos que, de fato, trata-se aqui: de ampliar a área de tombamento e de entorno do Forte das Cinco Pontas; de confirmar que a ampla abertura em conexão com o mar é elemento que compõe o bem tombado, essencial para seu entendimento; e de reiterar que a relação entre o forte e o pátio ferroviário é de extrema relevância, definindo um valor histórico que também é o valor de conjunto. Ou seja: não há como dissociar o Pátio das Cinco Pontas do Forte das Cinco Pontas.
A observação dos diferentes momentos de transformação de uma cidade, impressos no espaço urbano, é fundamental para a compreensão de sua trajetória histórica. Valoriza-se o convívio das diferentes experiências registradas materialmente, que constituem documentos de história e cuja leitura deve informar e nortear a definição de normas de preservação e critérios de intervenção para a cidade. Portanto, as intervenções nos núcleos urbanos, protegidos ou não, deveriam buscar a compreensão da história da área alvo da intervenção, impressa na tipologia das edificações, na morfologia urbana e na paisagem cultural resultante. A cidade é considerada assim como uma produção cultural que expressa a capacidade de apropriação do território. Em permanente adaptação e transformação, ela se afirma como patrimônio cultural quando é capaz de alimentar as ações subsequentes da vida urbana, considerando a preservação e transmissão de valores impressos na sua verdade material, reapropriados no presente. Todas as cidades, e em especial as cidades e núcleos urbanos tombados, são documentos históricos que devem informar, para além dos seus valores de arte e estética, sobre a vida e sobre a trajetória das sociedades responsáveis pela sua construção, devendo, portanto, revelar as suas etapas de desenvolvimento e os processos de consolidação de suas características formais (40).
Ao subsidiar técnica e conceitualmente o encaminhamento a solicitação de abertura de processo de tombamento do Cais Estelita pela ONG Direitos Urbanos e pelo Ministério Público Federal, estávamos de fato somando os argumentos técnicos do nosso parecer à legítima reinvindicação da sociedade pelo seu direito à cultura. A finalidade genérica do ato administrativo é sempre o interesse público a ser protegido e sua finalidade constitucional ampla é o direito à cultura. No caso do Cais Estelita, a comunidade de cidadãos do Recife se antecipou ao Estado no reconhecimento e na defesa do seu patrimônio, lutando pelos seus direitos culturais, que foram reiterados e justificados por mérito, argumentos que, na ocasião do arquivamento, não foram considerados relevantes pela direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Ainda não foi desta vez, Cícero Dias, que pudemos assistir ao nascimento de um mundo novo, e de novo lá do Recife (41). Mas não desistimos. Continuamos juntos, à espera no mesmo cais. E atenção! Tem ficado pequeno, o cais! Juntam-se a nós hoje outros muitos brasileiros, cada vez mais numerosos, em defesa do nosso patrimônio cultural ameaçado!
notas
NE – Agradecimento ao diretor Kleber Mendonça Filho, que nos forneceu a imagem que abre o presente artigo, um fotograma do filme Aquarius, dirigido por ele.
1
A luta das ONGs foi coberta pelo portal Vitruvius ao longo do tempo: GHIONE, Roberto. Ocupe Estelita. Idade Média, ontem e hoje. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 167.02, Vitruvius, jun. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.167/5193>; GHIONE, Roberto. A virada. Movimento Ocupe Estelita começa a dar esperanças. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 168.03, Vitruvius, jul. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.168/5231>; OCUPE ESTELITA, Movimento. Contra o Projeto Novo Recife, a favor do Projeto Recife! Assistam ao filme Recife, cidade roubada. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 172.03, Vitruvius, nov. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.172/5340>; NÓBREGA, Maria de Lourdes Carneiro da Cunha; TRINDADE, Isabella Leite; CÂMARA, Andrea Dornelas. #resisteestelita. Pelo direito a preservação do cais. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 178.04, Vitruvius, maio 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.178/5507>; VIEIRA, Natália Miranda. O Cais José Estelita e a crônica de (mais) uma morte anunciada. Será esse o triste fim de um símbolo de resistência e luta pelo direito à cidade? Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 224.07, Vitruvius, mar. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.224/7307>.
2
Solicitação de abertura de processo de tombamento da área correspondente ao Cais Estelita / Pátio das Cinco Pontas em Recife, área de interesse cultural, entorno de 16 bens tombados pelo Iphan, sítio histórico de referência para a cidade de Recife e área de interesse para a memória ferroviária de Pernambuco e do Brasil, reconhecendo o valor intrínseco da mesma para o desenvolvimento urbano e entendimento da história da cidade de Recife.
3
Este texto foi elaborado a partir do artigo “Eu vi o mundo nascer de novo ... ele recomeçava no Cais Estelita”, de autoria das arquitetas Cecilia Rodrigues dos Santos e Claudia Lage, apresentado no 7o Arquimemória – Encontro Internacional sobre Preservação do Patrimônio Edificado, Salvador – Bahia –dezembro de 2017, que por sua vez foi elaborado a partir de trabalho de assessoria técnica especializada para acompanhamento e avalição de possíveis danos e riscos decorrentes do projeto de ocupação do pátio ferroviário das Cinco Pontas, localizado no Cais Estelita, Recife PE, por um conjunto de treze torres de habitação de quarenta andares, empreendimento aprovado pela Prefeitura e pelo Iphan.
4
G1 BA. Entre outros artigos da imprensa diária, ver: “ Obra embargada que gerou saída de ministro tem unidade de até R$ 4,5 mi. Salvador, Globo, 19 nov. 2016 <https://glo.bo/2LCfvjj>.
5
As torres gêmeas provocaram muita polêmica em Recife, ecoando em manifestações culturais como mostras de cinema organizadas em parceria com a ONG Direitos Urbanos e com o movimento Ocupe Estelita, chegando a ser tema do filme Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, não só na temática como explicitamente na cena em que o diretor “apaga” digitalmente as torres da paisagem de Recife recuperando a integridade da paisagem histórica e se juntando assim ao coro que defende a preservação da área contra a ocupação e verticalização indiscriminada. FERREIRA, Flávio. 'Torres gêmeas' de Recife foram alvo de protesto no filme 'Aquarius'. Folha de S.Paulo, São Paulo, 03 dez. 2016 <https://bit.ly/3q6mxfa>.
6
VASCONCELOS, Tatiana Lima; SÁ, Lucilene Antunes Correia Marques de. A Cartografia Histórica da Região Metropolitana do Recife. In: Anais do 1o Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica - passado presente nos velhos mapas: conhecimento e poder. Paraty, 10-14 maio 2011, p. 9 <https://bit.ly/3s9GpQ6>.
7
Idem, ibidem.
8
“Les paysages culturels représentent les ‘œuvres conjuguées de l'homme et de la nature’ désignées à l'Article 1 de la Convention (1992). Ils illustrent l'évolution de la société et des occupations humaines au cours des âges, sous l'influence des contraintes et/ou des atouts présentés par leur environnement naturel, et sous l'effet des forces sociales, économiques et culturelles successives, internes et externes. Le terme ‘paysage culturel’ recouvre une grande variété de manifestations de l'interaction entre l'homme et son environnement naturel”. Unesco <https://bit.ly/3hZPHcW>.
9
LE CORBUSIER. O espírito sulamericano. In: SANTOS, Cecilia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth da Silva; PEREIRA, Romão Veridiano; SILVA, Vasco Caldeira da. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela/Projeto, 1987, p. 69.
10
Carta Internacional para Salvaguarda das Cidades Históricas – Encontro do Icomos, Washington, USA, 1986.
11
Ver: ANDRADE, Manuel Correia. Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo. Estudos Avançados, vol. 11, n. 29, São Paulo, jan/abr. 1997 <https://bit.ly/3q8Sgfo>.
12
“O conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico do Antigo Bairro do Recife, foi tombado em 1998, e essa área abrange edificações em inúmeras ruas e avenidas, outros espaços públicos. Entre os bens tombados pelo Iphan, estão igrejas, palácios, fortalezas, conventos, prédios, conjuntos urbanos e várias outras obras que testemunham as diferentes fases e aspectos da capital pernambucana”. Recife (PE). Conjuntos urbanos tombados. Portal Iphan, Brasília <https://bit.ly/2XudTKQ>.
13
Cf. MELLO NETO, Ulysses P. O Forte das Cinco Pontas – um trabalho de arqueologia histórica aplicado à restauração do monumento. Recife, Fundação de Cultura Cidade Do, 1983, p. 29.
14
Hornaveque (do alemão Hornwerk) ou obra corna, em arquitetura militar, é um importante tipo de obra exterior a uma fortificação abaluartada, composta por dois meio-baluartes unidos por uma cortina.
15
Forte de São Tiago das Cinco Pontas (verbete). Wikipedia – a enciclopédia livre <https://bit.ly/3i0NfTi>.
16
Ver: CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Parecer Iphan “Pátio das Cinco Pontas: Breves considerações”, 2006.
17
Idem, ibidem, p. 150.
18
GT Iphan-PE Portaria n. 10 de 20 de julho de 2010. Parecer Técnico Sobre o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, Recife PE, p. 185.
19
Legislação ainda válida no período do Império conforme Aviso do Ministro da Guerra de 5/4/1879, sobre requerimento de licença para construir uma cerca no prédio n. 1 da Rua do Jogo da Bola, junto ao muro da fortaleza do Morro da Conceição, indeferido “visto que o mencionado prédio interessa o fosso e a esplanada da dita fortaleza…”. BRASIL. Arsenal de Guerra da Corte Ofícios do Ministro da Guerra ao Diretor do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro, 5 de abril de 1879. Mss. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, IG 61. In: GT Iphan-PE Portaria n. 10, 20 jul. 2010.
20
Entendemos terreno de domínio de um forte como aquele em que o fogo das baterias do mesmo tem pleno efeito. Durante o período da artilharia de alma lisa, de carregar pela boca (c.1450-1860) este espaço seria defino por uma área que iria até c.1500 das baterias de uma praça, variando de acordo com as condições locais e necessidades de defesa. Usamos uma medida menor, mais usual na época estabelecendo um terreno de domínio com cerca de 400 metros, onde a artilharia teria maior efeito contra tropas, por disparar metralha (balins de pequeno calibre) e não somente projéteis sólidos. Cf. CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Op. cit.
21
GT Iphan-PE Portaria n. 10, 20 jul. 2010, p. 149.
22
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Op. cit., p. 158-159.
23
Mauricio de Nassau, “Breve Discurso”, tópico “Fortificações”, 1638 <https://bit.ly/2MPkm17>.
24
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Op. cit., p. 168.
25
Idem, ibidem.
26
Idem, ibidem, p. 148.
27
A importância e o valor do Pátio das Cinco Pontas, estão consistentemente explicitados nos pareceres do Iphan já citados, da lavra do historiador Adler Homero Fonseca Castro (p. 143-170) e do grupo de trabalho instituído pela Portaria n. 10, 20 jul. 2010, GT Iphan-PE (p. 179-222).
28
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Op. cit., p. 156.
29
Cf. BRENDLE, Betânia; VIEIRA, Natália Miranda. Cais do Sertão Luiz Gonzaga no Porto Novo do Recife. Destruição travestida em ação de conservação. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 150.03, Vitruvius, nov. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460>.
30
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Op. cit., p. 158.
31
“Na 1a secção, a qual se estende da cidade do Recife à vila do Cabo, tem-se feito o serviço com mais ou menos regularidade desde 10 de fevereiro do ano passado (1858), em que foi aberto ao trânsito público [...] Essa mesma parte da linha, porém, não se pode com rigor considerar terminada, pois que as estações são todas ainda provisórias, e por diversas razões nem princípio se deu às definitivas" (Do relatório do ministério do Império de 1859). [...] A estação central fora montada, provisoriamente, na esplanada das Cinco Pontas, velho fortim holandês, de forma pentagonal – que também teve o nome de Frederick Hendrik – porquanto era pressuposto que uma estação de tal ordem deveria ocupar um local mais próximo do centro da cidade”. Cf. PINTO, Estevão. Uma estrada de ferro do Nordeste. Rio de Janeiro, José Olympio, 1949, p. 61. Com a desativação da estação, a ferrovia para Maceió, a estação Central, da antiga Central de Pernambuco, passou a ser terminal da linha. A velha estação foi demolida, mas o nome da fortificação, Cinco Pontas, continuou nomeando um depósito da ferrovia. Nos últimos anos, Cinco Pontas, reconstruída, tornou-se estação terminal para os trens de subúrbio que seguem para o Cabo. Ver: GIESBRECHT, Ralph Mennucci. Estações ferroviárias do Brasil, 09 jun. 2018 <https://bit.ly/38s9hLO>.
32
Cf. parecer do GT – Iphan-PE Portaria n. 10 de 20 de julho de 2010. Parecer técnico sobre o pátio ferroviário das Cinco Pontas, Recife PE, p. 210-211.
33
Igreja São José do Ribamar – tombada em 08/04/1980; Igreja Nossa Senhora do Terço – tombada em 30/12/1975; Conjunto Arquitetônico do Pátio de São Pedro e Igreja de São Pedro dos Clérigos – tombada em 20/07/1938; Igreja da Ordem Terceira do Carmo – tombada em 30/05/1938; Igreja e Convento de Nossa Senhora do Carmo – tombada em 05/10/1938; Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Congregação de Mariana – tombada em 01/07/1987; Igreja do Divino Espírito Santo – tombada em 07/12/1972; Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Pretos – tombada em 08/07/1965; Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares – tombada em 28/03/1938; Igreja Matriz de Santo Antônio e Casa Paroquial anexa – tombada em 13/08/1938; Igreja e Convento de Santo Antônio – tombada em 20/07/1938; Capela dos Noviços da Ordem Terceira de São Francisco do Recife ou Capela Dourada, Claustro e Casa de Oração da Ordem Terceira de São Francisco de Assis – tombada em 14/03/1938; Fortaleza de São Tiago das Cinco Pontas – tombada em 24/05/1938; Mercado São José – tombado em 17/12/1973; Teatro Santa Isabel – tombado em 31/10/1948.
34
Declaração de Xi’an sobre a conservação do entorno edificado, sítios e áreas do patrimônio cultural. Adotada em Xi’an, China, 21 out. 2005. Icomos/Brasil, mar. 2006 <https://bit.ly/3ntrxbR>.
35
CABREIRA, Cristiane Vieira; RIBEIRO, Rosina Trevisan; KRAUSE, Cláudia Barroso. Critérios métodos e parâmetros de atuação no entorno e de bens tombados isolados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: a visibilidade em questão. PARC – Pesquisa em Arquitetura e Construção, v. 4, n. 1, Campinas, 2013, p. 38-49 <https://bit.ly/3oy3hql>.
36
MOTTA, Lia; THOMPSON, Ana Lucia. Entorno de bens tombados. Rio de Janeiro, Copedoc/Iphan, 2010.
37
SILVA, Aline de Figueirôa. Critérios para intervenção no Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Antigo Bairro do Recife. In: INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Patrimônio: práticas e reflexões. Programa de especialização em patrimônio – artigos (2005 e 2006). Rio de Janeiro, Copedoc/Iphan, 2009, p. 11-56 <https://bit.ly/3hZGhhv>.
38
MINISTÉRIO DA CULTURA (BRASIL). Ata da 82ª reunião do Conselho Consultivo do Património Cultural. Rio de Janeiro, Iphan, 6 maio 2016 <https://bit.ly/3pYXsT8>.
39
O único voto contrário foi o da conselheira arquiteta Cêça Guimaraens, representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB, que sugeriu, ao contrário do encaminhamento colocado em votação, que o processo fosse desarquivado para serem aprofundados os estudos “no sentido de instruí-lo a favor do tombamento”. Ver: MINISTÉRIO DA CULTURA (BRASIL). Ata da 82ª reunião do Conselho Consultivo do Património Cultural (op. cit.).
40
Cf. ACP n. 0001291-34.2013.4.05.8300. Parecer Técnico: Patrimônio Cultural – Projeto Novo Recife Cais José Estelita. Claudia Lage; Cecilia Rodrigues dos Santos.
41
“Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, painel do artista pernambucano Cicero dos Santos Dias, 1926-1929.
sobre as autoras
Cecilia Rodrigues dos Santos é arquiteta (FAU Mackenzie, 1978), mestre (Université de Paris X, Nanterre, 1983), doutora (FAU USP, 2007) e pós-doutora (Prourb FAU UFRJ, 2011). Professora adjunta e pesquisadora da FAU Mackenzie, especialista na área de Preservação do Patrimônio Cultural, foi Superintendente Regional em São Paulo do Iphan (1994-1999). É coautora do livro Le Corbusier e o Brasil (ProEditores/Tessela, São Paulo, 1987).
Claudia Lage é arquiteta, especialista em preservação do patrimônio cultural e restauração de patrimônio histórico e artístic, é funcionária do Ministério Público Federal de Minas Gerais.