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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Analisa-se o Plano de Ação Climática de Recife à luz das legislações e ao Acordo de Paris. Apontam-se diversos planos e políticas públicas desenvolvidas recentemente em contraponto à desintegração da agenda a nível federal.

english
The Recife Climate Action Plan is analyzed in light of legislation and the Paris Agreement. Several plans and public policies have been recently developed as a counterpoint to the disintegration of the agenda at the federal level.

español
El Plan de Acción Climática de Recife es analizado a la luz de la legislación y del Acuerdo de París. Recientemente se han desarrollado varios planes y políticas públicas como contrapunto a la desintegración de la agenda a nivel federal.


how to quote

WERNKE, Ana; et. al. Plano de ação climática de Recife. Pioneirismo e continuidade de políticas públicas na agenda ambiental local. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 269.01, Vitruvius, out. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.269/8624>.

As mudanças climáticas e as cidades

A mudança climática é um dos maiores desafios do século 21. Com relação as áreas urbanas, a relevância desse tópico reside nas alarmantes projeções dos efeitos adversos da mudança do clima com os ambientes urbanos em condições de risco e vulnerabilidade particularmente elevados, e da contribuição das cidades com relação às emissões de gases de efeito estufa — GEE. Neste contexto, as aglomerações urbanas precisam estabelecer estratégias que aumentem a resiliência das comunidades locais (1).

A questão climática não pode ser considerada de maneira isolada, mas sim integrada ao contexto social da cidade, com atenção especial às áreas mais vulneráveis que consequentemente serão as mais afetadas pelos seus efeitos adversos (2). Assim, o Acordo de Paris, tratado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC), rege medidas de redução de GEE a partir de 2020, a fim de conter o aquecimento global abaixo de 2º C, preferencialmente em 1,5º C; abordando também um grande compromisso as questões sociais e de justiça climática.

Para Laura de Macedo e Pedro Jacobi (3), o Acordo de Paris evidenciou o papel das cidades e das ações locais no enfrentamento da mudança climática pois, a partir deste acordo, além da adesão dos Estado-nação aos compromissos climáticos houve o reconhecimento dos "non-state actors", ou seja, empresas, organizações da sociedade civil e governos subnacionais (exempli gratia municípios, estados e governos metropolitanos) como atores chave.

Além disso, no mesmo ano da COP21, a ONU, no documento “Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável” (4) reconheceu a relevância do desenvolvimento urbano equilibrado como instrumento capaz de melhorar a qualidade de vida nas cidades e promover maior sustentabilidade, em especial o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável número 11 — ODS 11: “Tornar as cidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis”.

Essa mudança de escala lança novos desafios relacionados à governança e coordenação da agenda climática e, ao mesmo tempo, abre caminhos para a possibilidade de inovação e novas formas de se planejar as cidades em direção a sustentabilidade.

O Brasil é um dos signatários do Acordo de Paris e apesar de ter sido o país anfitrião da UNFCCC de 1992 e um dos principais protagonistas nas negociações sobre mudanças climáticas do Sul Global, nos últimos anos o país passa por um robusto desmonte das políticas ambientais na esfera federal.

A nível federal, o Brasil instituiu o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, publicado em 2008, e a Política Nacional sobre a Mudança do Clima — PNMC (lei n. 12.187/2009), que oficializou o compromisso voluntário de reduzir as emissões de gases de efeito estufa firmado na COP 15. Entretanto, apesar das altas taxas de urbanização brasileiras (84,36% em 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE), a PNMC não apresenta com clareza o papel da dimensão urbana para o enfrentamento da questão climática. A política tem um desenho de governança centralizado no âmbito federal e carece de inclusão dos governos estaduais e municipais em uma estratégia integrada (5).

A literatura da área registra também a dificuldade de coordenação de ações integradas dentro do próprio nível municipal. Como exemplo, Luciana Travassos e Sandra Schult (6) citam o caso paulistano, onde as ações de despoluição de cursos d’água, realocação das moradias em Áreas de Preservação Permanente e implantação de parques lineares não obteve a mesma ordem de prioridades pelas secretárias envolvidas, resultando em intervenções desarticuladas e incompletas.

Contudo, a despeito do forte contexto federal adverso, mas acompanhando o movimento global de “non-state actors” reconhecidos pelo acordo de Paris, algumas cidades e estados brasileiros, os chamados governos subnacionais, têm incorporado ações e políticas públicas voltadas à adaptação e mitigação. Nesse contexto, um dos casos de destaque é o da cidade do Recife.

No artigo analisa-se o recente Plano Local de Ação Climática do Recife (7) frente às legislações climáticas federal e estadual, avaliando-se as sinergias entre esse arcabouço normativo e de planejamento ambiental e urbano tendo como pano de fundo as metas do Acordo de Paris. A análise aponta para as diversas ações, planos e políticas públicas pioneiras e inovadoras sendo desenvolvidas nos últimos anos com rara continuidade em contraponto à desintegração da agenda ambiental a nível federal.

Recife

Capital do Estado de Pernambuco, Recife é a cidade sede que compõe, juntamente com outros catorze municípios, a Região Metropolitana do Recife. Com um perfil eminentemente urbano, a região conta com uma população de 3,69 milhões de pessoas e é o quinto maior conglomerado populacional do país (8).

Geograficamente é uma cidade plana e se encontra a cerca de 2,5 a 5 metros acima do nível do mar, se estendendo por uma área total de 218,843 km² em Bioma de Mata Atlântica e pertencente ao sistema costeiro marinho. Está situada sobre uma planície fluviomarinha constituída por ilhas, penínsulas, alagados e manguezais envolvidos por cinco rios: Beberibe, Capibaribe, Tejipió e braços do Jaboatão e do Pirapama. A composição da área territorial é de 67,43% de morros, 23,26% de planícies, 9,31% de áreas alagadas (aquáticas) e 5,58% de Zonas Especiais de Preservação Ambiental — Zepas (9) no âmbito do novo Plano Diretor da cidade, aprovado em 2020 (10).

As Zonas Especiais de Recife definidas no marco regulatório de 2020
Imagem divulgação, 2020 [Prefeitura Municipal do Recife]

O último censo do IBGE (11) contou uma população de 1.537.704 pessoas em uma densidade demográfica de 7.039,64 hab/km². O Índice de Desenvolvimento Humano é da ordem de 0,772, fator de alto desenvolvimento humano, enquanto o índice Gini é de 0,49, o que demonstra a existência de grande diferença entre os rendimentos dos mais ricos e o dos mais pobres. Estes dados remetem à importância do conceito integrado de vulnerabilidade socioterritorial e justiça climática — como analisaremos mais adiante. A vulnerabilidade climática somada à vulnerabilidade social e espacial, potencializa os riscos advindos das ameaças climáticas pela baixa capacidade de respostas da população mais socialmente vulnerável, como infelizmente ocorre com a maior parte da população das grandes cidades brasileiras.

Em Recife, o compromisso público com a agenda de clima vem direcionando esforços desde 2012 — e de modo sistemático e contínuo, como se verá — quando foi selecionada para ser uma das cidades modelo dentro do projeto Urban-Leds (12) fase 1, o que proporcionou o desenvolvimento de um arcabouço técnico, institucional e político, resultando na elaboração da política municipal de mudança climática e sustentabilidade (13).

Na construção deste arcabouço, duas estruturas de governança climática se destacam como impulsionadoras da agenda do clima, o Grupo Técnico Multidisciplinar de Gestores — Geclima e o Comitê Municipal de Mudanças Climáticas — Comclima. As duas instâncias concentraram seus esforços no desenvolvimento de instrumentos técnicos para agenda de mitigação entre 2013 e 2016 como parte fundamental do projeto Urban-Leds.

A observação de que a agenda de adaptação também deve ser uma das prioridades da gestão municipal, leva em conta que a cidade já sofre com as consequências negativas da mudança climática e permeia os trabalhos dessas duas instâncias desde 2014, quando o Plano de Desenvolvimento de Baixo Carbono foi desenvolvido. Um dos setores estruturantes do plano, o desenvolvimento de uma análise de risco climático e a elaboração de uma estratégia de resiliência, foram definidos como pontos essenciais da política climática municipal. A captação de recursos e projetos voltados para esta temática tem sido recorrente nas secretarias municipais do Recife e tem norteado a revisão do contexto urbanístico, ressaltando a busca por ações que ampliem a capacidade de resiliência em áreas mais suscetíveis à riscos climáticos (14).

Linha do tempo das ações municipais e estaduais no enfrentamento às mudanças climáticas em Recife
Elaboração dos autores

Alinhamento entre a legislação federal, estadual e municipal

A Lei n. 18.011/2014, que dispõe sobre a Política de Sustentabilidade e de Enfrentamento das Mudanças Climáticas do Recife, é o principal marco da inserção da sustentabilidade socioambiental nos processos de desenvolvimento da cidade. O Decreto Municipal n. 33.080/2019 que reconhece a emergência climática no âmbito do município vem de encontro à lei acima citada e ambos, lei e decreto, estão alinhados com a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1992), ao Protocolo de Quioto (1997), ao Quadro de Ação de Hyogo (2005) dos quais o Brasil é signatário, considerando as bases principiológicas de todos os documentos analisados.

O mesmo alinhamento ocorre em relação às Contribuições Nacionalmente Determinadas, que são as metas do Brasil no Acordo de Paris, e os parâmetros de comprometimento do Brasil, qual seja, a descarbonização até 2050.

A lei mãe, ou seja, a que impõe a política de sustentabilidade no município está adequada à Legislação Federal que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei n. 12.187/2009), assim como a Política Estadual de Enfrentamento às Mudanças Climáticas de Pernambuco (Lei n. 14.090/2010), quando se coteja as metas de redução de carbono.

A cidade também se mostra ambiciosa no Planejamento Estratégico da cidade, tendo desenvolvido o Plano Estratégico Recife500 (15), cujo marco é 2037 e cujas diretrizes e metas são essenciais para garantir que o cenário de mitigação e resiliência se concretizem na visão de longo prazo para 2050.

No âmbito da legislação urbanística, também desenvolvida nos últimos anos, há determinação de que o fluxo de licenciamento urbanístico e ambiental exija a compensação pelos impactos advindos de empreendimentos emissores, ainda que até o momento não tenha havido regulamentação da lei para definir quais são os grandes emissores. Esta é uma lacuna que configura uma barreira para a entrega da ação climática. Pressupõe também a análise sobre a alocação de recursos em ações de adaptação e mitigação, bem como sobre o que se tem feito para reduzir a emissão dos próprios prédios públicos do município, a ecoeficiência desses edifícios, das moradias de interesse social feitas pela cidade e a situação das ocupações irregulares. Todos esses vieses têm estreita relação com os efeitos da mudança climática e a capacidade de prevenção e resposta à vulnerabilidade que o município deve enfrentar.

As normas editadas pelo município guardam sintonia com a legislação estadual e federal, notadamente aquelas afetas ao clima. Há uma consonância em relação à Plano Nacional de Adaptação e às NDCs que visam a redução da emissão de GEE em 37% até 2025, em relação aos níveis de 2025 e de até 43% em 2030, em relação ao mesmo ano de 2025. No entanto, o quadro de análise abaixo demonstra que alguns pontos precisam ser endereçados para que o nível de ambição da legislação se traduza concretize em ações concretas.

Quadro analítico síntese das metas e e da legislação climática de Recife
Elaboração dos autores

Análise de risco climático e estratégias municipais de adaptação

A análise de riscos e vulnerabilidades climáticas e estratégia de adaptação do município do Recife (16), aponta para a incidência de seis riscos críticos para a cidade: 1. inundações; 2. deslizamentos; 3. ondas de calor; 4. doenças transmissíveis; 5. seca metereológica; 6. aumento do nível médio do mar.

Estes riscos estão relacionados à topografia da cidade, à precariedade de assentamentos em bairros do município e à proximidade com o mar. Destacam-se aqui apenas os riscos relacionados à infraestrutura urbana, conforme segue.

Deslizamentos

Populações residentes em áreas de proteção permanente como topos de morro, terrenos com declividade igual ou superior à 45° estarão mais sujeitos a deslizamentos devido ao aumento das temperaturas em decorrência da mudança climática.

Ondas de calor

As ondas de calor são agravadas pelo adensamento populacional das áreas urbanizadas e com menos árvores e áreas verdes, aumentando o desconforto térmico. Crianças e idosos são os que mais sofrem com o aumento da temperatura, sobretudo os de baixa renda por não disporem de recursos tecnológicos para amenizar este impacto. O aumento da temperatura ainda piora a qualidade do ar gerando maiores ocorrências de doenças respiratórias.

Inundações

Populações residentes em áreas de proteção permanente como beira de rios estarão mais sujeitos aos efeitos das inundações e com o aumento das temperaturas em decorrência da mudança climática. As inundações afetam também a população em situação de rua, portanto, o Plano Local de Ação Climática também considera a questão da vulnerabilidade habitacional.

Seca meteorológica

Muito embora Recife seja servido por três bacias hidrográficas, a seca meteorológica refere-se à precipitação abaixo das médias esperadas, comprometendo a recarga das águas superficiais em caso de escassez de chuvas (precipitação), logo constitui uma ameaça a toda a população e às águas subterrâneas. Estudos apontam para um aumento de perfuração de poços tubulares na região do Recife em caso de secas prolongadas.

A vulnerabilidade socioeconômica é um fator de agravamento da seca meteorológica por restrições de acesso e capacidade de resposta à esta ameaça climática, uma vez que a população de baixa renda, na maioria das vezes, depende do abastecimento público de água, não tendo condições de pagar pela água ou perfurar um poço (o que também não é recomendado).

A potente rede hídrica da cidade poderia ser utilizada para reduzir o impacto da seca meteorológica. Entretanto, a poluição das águas por carência de saneamento impossibilita a utilização salubre para o abastecimento e dessedentação da população.

Aumento do nível médio do mar

De acordo com o índice de risco (17), 11% da população do Recife reside na zona costeira. Atividades econômicas importantes para a cidade como o turismo e a pesca dependem da salubridade costeira para continuarem a produzir. Entretanto, segundo o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas — PBMC (18) há uma grande carência de informações relacionadas aos efeitos das mudanças climáticas sobre os ecossistemas costeiros no Brasil, bem como da vulnerabilidade desses ecossistemas a tais alterações, considerando, na maioria dos casos, somente o aumento do nível do mar. No entanto, necessita-se atenção voltada para essas alterações no ecossistema costeiro, posto que afetam diretamente aqueles que dependem das atividades econômicas desenvolvidas no mar, como os pescadores, por exemplo.

O documento relaciona 21 ações estruturais e não estruturais necessárias à adaptação e ao enfrentamento das consequências da mudança do clima da cidade, como ilustra a figura a seguir.

Ações estruturais e não estruturais necessárias à adaptação e ao enfrentamento das consequências da mudança do clima da cidade
Elaboração dos autores

Instrumentos urbanos e ambientais integrados para o enfrentamento da mudança climática

A edição da Lei n. 18.011 de 2014, que estabelece instrumentos para a implementação de ações de sustentabilidade e enfrentamento ao aquecimento global decorrente das emissões de GEE, foi um marco para a cidade do Recife. Concebida com status de Política Pública, ela impõe a elaboração de inventário de GEE pela cidade a cada dois anos e abriu uma porta emblemática para a criação de indicadores para o monitoramento das emissões no município.

Em 2015, o primeiro inventário de emissão de GEE do Recife foi entregue à população oficialmente e contempla as emissões referentes ao ano de 2012. A partir deste diagnóstico realizado com a metodologia Global Protocol for Community-Scale Greenhouse Gas Emission Inventories — GPC, foi possível identificar os setores que, em decorrência da atividade, mais emitem GEE. Estruturaram-se indicadores que possibilitaram o ordenamento de ações de mitigação, bem como um conjunto de ações de adaptação que se direcionam no sentido de minimizar os efeitos da mudança climática (chuvas intensas, grandes períodos de estiagem, ocorrência de ilhas de calor etc.). O conjunto de ações formuladas a partir do primeiro inventário formaram parte do documento intitulado Plano de Baixo Carbono.

O documento Recife Sustentável e de Baixo Carbono — Plano de Redução de Emissão de Gases de Efeito Estufa, de 2016, complementa as ações necessárias à busca por uma cidade que ruma à descarbonização e à resiliência.

O Projeto Pegada de Cidades — cálculo da Pegada de Carbono e Pegada Hídrica, de 2017, apoia as iniciativas municipais relacionadas à mitigação e a adaptação à mudança climática por meio da avaliação da Pegada de Carbono e Pegada Hídrica na cidade utilizando os resultados e conclusões obtidos para promover ações de redução de emissões de GEE, no âmbito da mitigação e gestão da água, no âmbito da adaptação, a nível municipal. A base do documento para as análises comparativas foi o primeiro inventário de GEE realizado pela cidade com o apoio dos Governos Locais pela Sustentabilidade — Iclei —, utilizando os resultados do inventário de emissões de GEE de 2012 e 2013. O projeto Pegadas trouxe como resultados uma tendência positiva em relação aos esforços para a diminuição das emissões de GEE na cidade do Recife para o ano de 2015, sobretudo pelo aumento na utilização de biocombustível no setor de transporte.

A análise de vulnerabilidades e riscos do Recife, de 2019, é mais uma iniciativa importante, pois cria um diagnóstico denso da realidade local a partir das ameaças e riscos no território urbano do Recife. O estudo das vulnerabilidades e riscos assenta o direcionamento das ações de adaptação para a redução dos riscos sofridos pela população mais vulnerável do Recife, categorizando ações de acordo com as prioridades, em nível cartográfico.

É de se destacar que o estudo de vulnerabilidades e riscos do Recife foi um instrumento basilar para o desenvolvimento do Plano Local de Ação Climática, no sentido de que aponta os caminhos pelos quais o plano deve seguir para que seja o mais assertivo possível. Indicando ações de mitigação, mas também pontuando as ações de adaptação e seus destinatários beneficiários, ele prioriza atenção à população mais vulnerável às consequências do câmbio climático. Estas medidas de adaptação foram inseridas no Plano Local de Ação Climática do Recife.

A cidade do Recife é a primeira no Brasil a assinar um decreto de reconhecimento à Emergência Climática Global. A declaração estabelece diretrizes e determina que as políticas públicas iniciadas no processo de resposta à emergência climática devem priorizar as comunidades vulneráveis, bem como comunidades históricas impactadas por injustiças ambientais. No mesmo decreto o município se compromete a empenhar esforços para a transição justa, neutralizando as emissões de carbono até 2050.

Recife tem dezessete leis e oito decretos que de alguma forma se relacionam ao tema clima. A existência de mais leis do que decretos mostra que também o Poder Legislativo tem se comprometido com a questão climática. Este comprometimento é importante para que a política climática não seja restrita a apenas uma gestão e possa haver um planejamento de longo prazo se tornando uma política de estado e não só de um governo.

Para além da questão legislativa, Recife também é pioneira em tornar obrigatório o ensino sobre sustentabilidade e emergência climática nas escolas públicas municipais, criando uma cultura de comprometimento com o tema em meio às novas gerações.

Recife é Cidade Membro do Fórum CB27, reporta suas emissões na plataforma unificada CDP Iclei e é signatária do Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e Energia. Além disso, Recife é cidade associada aos Governos Globais pela Sustentabilidade — Iclei —, sendo cidade modelo do projeto Urban Leds em sua fase 1 e 2. Em 2022, recebeu, juntamente com o estado de Pernambuco, o 1º Encontro Nacional do Iclei.

O Plano Local de Ação Climática se insere neste mesmo contexto, permitindo que a cidade alcance suas ambições relacionadas ao planejamento climático e à infraestrutura urbana desde que monitoradas e implementadas em ordem de prioridade as ações previstas.

Justiça climática

Um dos conceitos inovadores trazidos pelo Acordo de Paris é a perspectiva da Justiça Climática. Ela vincula direitos humanos e desenvolvimento de baixo carbono para alcançar uma lógica de abordagem centrada nas pessoas e que respeite o meio ambiente, salvaguardando os direitos das pessoas mais vulneráveis e compartilhando os encargos da mudança climática e seus impactos de forma equitativa e justa. A justiça climática responde à ciência e reconhece a necessidade de uma administração equitativa dos recursos do mundo. Pedro Henrique Campello Torres, Alberto Matenhauer Urbinatti, Carla Gomes, Luísa Schmidt, Ana Lia Leonel, Sandra Momm e Pedro Roberto Jacobi (19) reiteram a visão acima de que justiça climática indica a problemática da mudança climática mais do que uma questão de cunho ambiental e climática, é um problema de direitos humanos. Nesta perspectiva, a base principiológica do Plano Local de Ação Climática do Recife o direciona para que desenvolva ações voltadas para os grupos tradicionalmente marginalizados dos processos decisórios, como os jovens e os grupos mais vulneráveis (idosos, mulheres, crianças, pessoas em situação de vulnerabilidade social).

Recife, assim como todo o estado de Pernambuco, tem longa tradição de resistência e de luta pelas minorias. Conforme o poeta recifense Carlos Pena Filho, a capital pernambucana é “a noiva da revolução” devido aos históricos movimentos populares e democráticos, como a Revolução de 1817, a Confederação do Equador e a Revolução Praieira, além das lutas operárias do início do século 20. Na segunda metade do século passado (1955), sediou o Congresso de Salvação do Nordeste, denunciando a miséria da região e exigindo mudanças sociais radicais como a Reforma Agrária. Recife figura na história brasileira por suas características de resistência e de luta por igualdade social como base de uma construção política. A percepção da cidade quanto ao câmbio climático e seu olhar diferenciado para as comunidades mais vulneráveis frente às consequências deste fenômeno, está alinhado à esta tradição por justiça, agora também, climática.

O Plano Local de Ação Climática, ao ser norteado pelo conceito de Justiça Climática, aterriza os elementos contidos no Acordo de Paris no planejamento da cidade impactando também na priorização de ações de infraestrutura urbana e a colocação de equipamentos públicos de atendimento à população como escolas, creches e postos de saúde.

Discussão

O estado da arte das políticas públicas do Recife demonstra que a cidade não se contamina pelo negacionismo climático que domina o contexto do país em âmbito federal.

Uma sucessão de fatos ocorridos nos últimos três anos demonstra a queda da ambição do Brasil em relação à redução das emissões de GEE, assim como enfraqueceram a liderança do país na pauta climática. É destaque o baixo nível de ambição da NDC depositada em 2021 que manteve a porcentagem da meta, apesar do aumento do valor absoluto em relação à porcentagem, traduzindo, na prática a possibilidade de se emitir maior volume de GEE. Ainda, a recusa do governo federal em receber a Conferência das Partes sobre as Mudanças Climáticas — COP, em 2019, bem como os altos índices de desmatamento na Amazônia demostram a negação à agenda que, de acordo com a ONU, é a maior ameaça à segurança humana e ao desenvolvimento sustentável do planeta. No que tange à adaptação e resiliência de territórios vulneráveis às questões climáticas, a redução de verbas destinadas à resposta a desastres por parte do governo federal chega à ordem de 45% desde 2019 (20) comprometendo fortemente a ação dos estados e municípios que dependem na maior parte das vezes de recursos repassados pela federação para implementarem seus planos de ação climática e de resiliência.

A pesquisa teve por base a análise do Plano Local de Ação Climática do Recife em cotejo ao Acordo de Paris e legislação federal, estadual e municipal de referência às questões climáticas. A lupa utilizada cingiu-se à verificação, positiva em grande medida, da sinergia entre os compromissos firmados e os diversos marcos regulatórios.

De modo geral, a visão de futuro do Recife — planejada a partir de planos e marcos regulatórios robustos e pioneiros no país — é a de uma cidade resiliente e sustentável, carbono neutra, que seja mais, e gradativamente, inclusiva ambientalmente a todas as comunidades com enfoque sobre as periféricas, respeitando os saberes e as tradições ancestrais materializadas no forte patrimônio cultural material e imaterial da cidade. A identidade do recifense vem embutida na visão de cidade, posto que construída coletivamente devido à sua forte cultura de participação e luta, perpetuando modos de vida, saberes e rituais locais tradicionais.

Entretanto, é importante destacar a imperiosidade de aprofundamento da pesquisa para o campo, com a circulação de questionários entre os atores chave da administração municipal, sociedade civil organizada, órgãos de controle como o Tribunal de Contas do Estado e o Poder Legislativo, bem como o acompanhamento da execução das ações no sentido da eficácia de ambos os planos analisados no quotidiano da cidade, de que forma o monitoramento de indicadores e metas estão sendo executados e se as prioridades em curto, médio e longo prazo estabelecidas no planejamento estão sendo executadas.

A importância no aprofundamento da pesquisa sobre a implementação das ações planejadas se intensifica diante da tragédia climática de grandes proporções que acometeu a região metropolitana do Recife entre maio e junho de 2022. Foram 129 mortos no total. De acordo com a Defesa Civil, o número de desabrigados chegou a 9.302 pessoas. No total, 31 cidades de Pernambuco decretaram estado de emergência e 51 tiveram algum tipo de prejuízo em consequência da chuva (21),evidenciando a necessidade premente da implantação das ações de adaptação do território para a proteção de vidas e do patrimônio tanto particular como público.

Ou seja, os fatos revelam sistematicamente as inúmeras faces da tragédia do desenvolvimento urbano de nossas cidades, onde invariavelmente as populações mais vulneráveis socialmente são as mais atingidas. Neste caso, revela-se a urgência em Recife e nas grandes cidades do país, que contam com enorme parte de suas populações habitando precariamente periferias e territórios sem as devidas infraestrutura urbana, habitacional e sob riscos de desastres ambientais cada vez mais intensos — seja na forma de deslizamento de mortos ou alagamentos —, de se promover com urgência as ações efetivas e concretas do que se planeja.

Neste sentido, e como previsto do Plano Estratégico Recife500, são estratégias fundamentais: 1. a continuidade das políticas públicas e suas ações; 2. a efetiva implementação das ações concretas de curto, médio e longo prazos, das urgentes às sistêmicas e incrementais; 3. o monitoramento e avaliação de impactos continuamente.

A teoria da mudança e o monitoramento e avaliação das diversas ações e metas previstas no Plano de Local de Ação Climática são os desafios da política pública contemporânea, baseada não no negacionismo científico que tragicamente tomou conta da agenda nacional, mas nos dados e evidências e, em Recife assim como nas demais cidades brasileiras, com ênfase na redução dos impactos negativos sobre as populações mais vulneráveis socioterritorialmente, promovendo sempre a desejável justiça ambiental vis a vis com a social.

notas

1
ANELLI, Renato. As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. Journal of Urban Technology and Sustainability, v. 3, n. 1, 2020, p. 4–17; MARQUES, Andresa; ALVIM, Angélica; SCHRÖDER, Jörg. Ecosystem Services and Urban Planning: A Review of the Contribution of the Concept to Adaptation in Urban Areas. Sustainability, v. 14, n. 4, 19 fev. 2022, p. 2391.

2
LEITE, Carlos; MARQUES, Andresa; LEVY, Wilson; WERNKE, Ana. Análise dos vazios urbanos infraestruturados. Oportunidade de adensamento populacional e absorção de população em área de risco de deslizamento: cenários para Nova Friburgo (RJ) de 2015 a 2050. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 253.07, Vitruvius, jun. 2021 <https://bit.ly/3zpmH8u>.

3
DE MACEDO, Laura; JACOBI, Pedro. Subnational politics of the urban age: evidence from Brazil on integrating global climate goals in the municipal agenda. Palgrave Communications, v. 5, n. 1, 2019, p. 1–15.

4
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. ONU, Nova York, 2015 <https://bit.ly/3DD15HX>.

5
DE MACEDO, Laura; JACOBI, Pedro. Op. cit.

6
Travassos, Luciana; Schult, Sandra. Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos na cidade de São Paulo, entre transformações e permanências. Cadernos da Metrópole, v. 15, n. 29, 2013.

7
PREFEITUA MUNICIPAL DE RECIFE. Plano Local de Ação Climática do Recife. Recife, Iclei América do Sul/Prefeitura do Recife, 2020 <https://bit.ly/3gMdmRx>.

8
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010. Rio de Janeiro, IBGE, 2010.

9
PREFEITUA MUNICIPAL DE RECIFE. Plano Local de Ação Climática do Recife (op. cit.).

10
Importante lembrar que Recife foi pioneira, na década de 1980, ao aprovar o instrumento da Zona Especial de Interesse Social — Zeis. O Plano Diretor atual foi aprovado, infelizmente, com muitas emendas que distorcem elementos importantes do plano original.

11
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Op. cit.

12
O projeto Urban-Leds implementado pelos Governos Locais pela Sustentabilidade — Iclei, visa tornar as estratégias de desenvolvimento de baixa emissão uma parte fundamental da política e planejamento urbano nas cidades.

13
CARVALHO, Renata Maria Caminha M. O. de; SOBRAL, Maria do Carmo Martins; LYRA, Marília Regina Costa Castro; SILVA, Hernande Pereira da. Adaptação aos impactos das mudanças climáticas na perspectiva do plano diretor da cidade do Recife. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 23, 2021 <https://bit.ly/3fdYpXW>.

14
BANCO DE DESARROLLO DE AMÉRICA LATINA; WAY CARBON; GOVERNOS LOCAIS PELA SUSTENTABILIDADE. Análise de riscos e vulnerabilidades climáticas e estratégia de adaptação do município do Recife. Recife, Prefeitura Municipal do Recife, 2019 <https://bit.ly/3TBp4Nr>.

15
Plano Recife 500 anos <https://bit.ly/3DEC2o4>.

16
Idem, ibidem.

17
Idem, ibidem.

18
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Impactos, vulnerabilidades e adaptação. Contribuição do Grupo de Trabalho 2 ao Primeiro. Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Brasília, Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, 2013 <https://bit.ly/3zmeC4r>.

19
TORRES, Pedro Henrique Campello; URBINATTI, Alberto Matenhauer; GOMES, Carla; SCHMIDT, Luísa; LEONEL, Ana Lia; MOMM, Sandra; JACOBI, Pedro Roberto. Justiça climática e as estratégias de adaptação às mudanças climáticas no Brasil e em Portugal. Estudos Avançados, v. 35, 2021, p. 159–176.

20
MENDES, Guilherme. Governo federal reduz em 45% recursos para combate a desastres. UOL, Congresso em Foco, São Paulo, 1 fev. 2022 <https://bit.ly/3FoMVf1>.

21
BARROS, Diego. Chega a 128 o número de mortos pelas chuvas em Pernambuco. CNN Brasil, São Paulo, 3 jun. 2022 <https://bit.ly/3znp7UT>.

sobre os autores

Ana V. Wernke é advogada, coordenadora de Relações Institucionais e Advocacy do Iclei Brasil, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (Universidade Presbiteriana Mackenzie), mestre em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (Uninove) e especialista em Direito Público e Direito Ambiental.

Calos Leite é doutor em urbanismo, professor (PPGAU FAU Mackenzie) e coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Insper. Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e no programa Capes Print Mackenzie/Universidade de Hannover.

Andresa L. Marques é arquiteta e urbanista (FAU Mackenzie, 2017), mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU FAU Mackenzie, 2019) e doutoranda em um programa de dupla titulação na Universidade Presbiteriana Mackenzie e Leibniz Univesität Hannover. Pesquisadora do programa Capes Print Mackenzie-Universidade de Hannover.

Gabriela S. L. Mello é engenheira sanitarista, mestre em hidráulica e saneamento, doutoranda no programa de Planejamento e Gestão do Território da UFABC e professora no Instituto Mauá de Tecnologia.

Renato L. S. Anelli é arquiteto urbanista, mestre em História, doutor em História da Arquitetura e do Urbanismo e livre-docente em Projeto de Arquitetura e Urbanismo. Professor no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador do CNPq.

Angélica Tanus Benatti Alvim é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo. Diretora, professora e pesquisadora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU Mackenzie e pesquisadora do CNPq.

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