O Espírito Santo em seis sítios históricos tombados pelo Conselho Estadual de Cultura — CEC, constituindo a seleção oficial de patrimônio histórico do estado. Esse patrimônio vem progressivamente sofrendo degradação, pois os sítios são alvos frágeis de intervenções arquitetônicas e paisagísticas que os ameaçam de descaracterização — eis o problema tratado aqui, ensejando a pergunta: o que, além do tombamento já existente, poderia favorecer uma melhor preservação dos seis sítios?
O objetivo é investigar as medidas que favoreceriam a manutenção das paisagens dos sítios tombados, tendo como justificativa: oferecer sugestões práticas que contribuam nesta direção.
A hipótese é de que a legislação existente falha por sua incompreensão conceitual do que representam tais sítios. Para verificá-la, adotamos como método: a) uma visão empírica das degradações efetuadas, da sua natureza, dos atores e principais responsáveis; b) os instrumentos existentes; seus limites práticos; c) os novos instrumentos baseados numa outra visão conceitual e as possibilidades que acenariam para coibir as ações citadas em a.
Isto posto, passamos aos conceitos referenciais da pesquisa — paisagem e conservação integrada; fazemos uma caracterização paisagística dos seis sítios históricos (abordagem empírica); seguimos por uma análise da legislação aplicada em suas gestões de conservação (os instrumentos existentes; seus limites práticos relativamente aos princípios da conservação urbana integrada e teorias da restauração); concluímos por perspectivas para a conservação urbana integrada das paisagens dos seis sítios.
Paisagem
Tom Turner (1) declara que o sentido da palavra landscape vem do Inglês Médio, mas foi reintroduzido do alemão no século 16 como um termo dos pintores, ligado ao ideal neoplatônico da teoria da arte. Assim, prossegue, “landscape” seria um tipo especial de lugar: um lugar ideal.
Consideramos aqui a paisagem como um lugar ideal na medida em que o ideal é uma construção humana, seja como “aquilo que constitui uma ideia”, seja como aquilo “que apresenta certo caráter de elevação estética, moral ou intelectual” (2).
Reconhecemos a noção de paisagem como ideal em O Canaã, obra de 1902 do escritor modernista Graça Aranha, que narra a saga de imigrantes oitocentistas italianos e alemães no interior do Espírito Santo, para o cultivo do café na “terra prometida” — O Canaã, hoje Santa Teresa, um dos sítios deste artigo.
A mesma noção se aplica ao caso de outro município de colonização europeia no Espírito Santo: Santa Leopoldina, como será visto no tópico da caracterização da paisagem dos seis sítios. Por ora, estendemos a noção de paisagem como ideal também aos sítios de São Mateus (porto fundado por portugueses); São Pedro do Itabapoana (fundado por migrantes mineiros que vieram trabalhar na cafeicultura); e Muqui (cuja fundação liga-se a desbravadores fluminenses advindos do Vale do Rio Paraíba).
Nosso enfoque de paisagem como ideal considera a noção de paisagem como síntese do lugar, o que corrobora o conceito de ideal, na medida em que o sentido de lugar também é uma ideação de paisagem. Neste sentido de ideal, admitimos a reflexão de Donald William Meinig (3), de que, por concernir a diversos propósitos, o termo paisagem encerra uma inexorável ambiguidade.
Essa ambiguidade é flagrável em diferentes ideações, a exemplo da usual consideração da paisagem como algo que nos é externo. Neste sentido, é particularmente interessante a compreensão de Williams (4), quem postula que o próprio conceito de paisagem implica separação e observação, e declara que a terra em que se trabalha raramente é uma paisagem. Isso novamente nos remete aos seis sítios históricos deste trabalho, que em seus primórdios foram colônias de plantio.
De novo com Meinig (5) compreendemos a onipresença e ubiquidade da paisagem — sempre diante de nossos olhos — mas tornada real apenas quando delas tomamos consciência. Assim, ao mesmo tempo em que a construímos (um ideal), ela nos constrói como seus observadores. A relação de reciprocidade entre observado e observador diz-nos ainda da atribuição de sentidos e da constituição mútua de ambos, concorrendo para que toda paisagem seja entendida como simbólica, nos revelando como culturas.
Tal é a ênfase de Meinig, que, considerando toda paisagem como uma acumulação, alvitra que seu estudo seja empreendido como história formal. Considerando toda paisagem também como um código, Meinig (6) ressalta ainda que este estudo deve ser assumido como “a decifração de um sentido, de significação cultural e social de aspectos comuns, mas diagnosticáveis”, numa palavra: um ideal.
Em suma: neste artigo, a paisagem dos sítios históricos do Espírito Santo é tida como uma vista ideal, que reúne elementos naturais, construídos, humanos, que se forma por um enquadramento pelo olhar do observador consciente de sua observação. Eis as paisagens para cuja conservação queremos contribuir.
Conservação
Podendo ser entendida como uma disciplina que abrange diversos níveis de intervenção, cada um com determinadas especificidades, tendo todos eles como finalidade preservar um ou vários objetos (7), a conservação é assim definida na Carta de Burra, de 1975:
Os cuidados a serem dispensados a um bem para preservar-lhe as características que apresentem uma significação cultural. De acordo com as circunstâncias, a conservação implicará ou não a preservação ou a restauração, além da manutenção; ela poderá, igualmente, compreender obras mínimas de reconstrução ou adaptação que atendam às necessidades e exigências práticas [...]
Artigo 2o — O objetivo da conservação é preservar a significação cultural de um bem; ela deve implicar medidas de segurança e manutenção, assim como disposições que prevejam sua futura destinação.
Artigo 3o — A conservação se baseia no respeito à substância existente e não deve deturpar o testemunho nela presente.
Artigo 4o — A conservação deve se valer do conjunto de disciplinas capazes de contribuir para o estudo e a salvaguarda de um bem. As técnicas empregadas devem, em princípio, ser de caráter tradicional, mas pode-se, em determinadas circunstâncias, utilizar técnicas modernas, desde que se assentem em bases científicas e que sua eficácia seja garantida por uma certa experiência acumulada (8).
Cabe evocar o conceito de adaptação, definido na Carta de Burra, Artigo 1o: “a adaptação será o agenciamento de um bem a uma nova destinação sem a destruição de sua significação cultural” (9). Há que se convocar também o artigo 20o, que prediz: “A adaptação só pode ser tolerada na medida em que represente o único meio de conservar o bem e não acarrete prejuízo sério a sua significação cultural” (10).
Quanto ao problema da conservação do sítio histórico relativo ao monumento; e do monumento como objeto de um sítio-ambiente, Brandi questiona:
1. Posto que um dado monumento representa um elemento de um ambiente [...] quando esse ambiente estiver alterado tão profundamente de modo a não mais corresponder aos dados espaciais conaturais ao próprio monumento, a condição de inalienabilidade colocada [...] para o monumento permanece?
2. Posto que o ambiente natural ou monumental não tenha sido alterado de modo profundo nos seus dados espaciais, a não ser pelo desaparecimento de um ou mais elementos, a reconstituição destes por meio de cópias [...] poderá ser admitida com base na reconstituição espacial do ambiente, se não na impossível revivescência do monumento? (11).
A primeira questão é respondida por Cesare Brandi (12) com a orientação de que se busque sempre reconduzir os dados espaciais do sítio ao estado o mais próximo possível dos dados originais. Adverte, também, que ainda que a alteração dos dados espaciais seja insanável, o monumento não deverá ser removido.
Para a segunda questão, Brandi (13) entende ser necessário discernir se os elementos desaparecidos, cuja supressão alterou a espacialidade do ambiente originário, sejam monumentos em si, ou não. No caso de não serem monumentos em si, poderá até ser admissível uma reconstituição. Isso porque, mesmo que sejam falsos, não sendo obras de arte, reconstituem os dados espaciais. Além disso, alerta: justamente por não serem obras de arte, não degradam a qualidade artística do ambiente, nele se inserindo apenas como limites espaciais genericamente qualificados.
Estes dois casos são muito caros aos sítios que tratamos aqui, tendo em vista as questões geradas quando do arruinamento de alguns imóveis, das lacunas espaciais que este processo gera nos sítios, e, ainda, nos casos de intervenções urbanísticas e/ou paisagísticas.
Passamos agora ao conceito de conservação urbana integrada, que diz respeito a partes do ambiente construído que têm significação histórica, podendo incluir edificações individuais ou grupos de prédios, logradouros, blocos, ambientes, arredores, jardins, localidades (14). Para efeitos deste artigo consideraremos os núcleos dos sítios históricos como localidades, donde a nossa ênfase. Este documento de Melbourne alerta que muitos prédios podem ser adaptados para diferentes usos, uma flexibilidade que diferencia conservação de preservação.
Síntese histórica de Sílvio Zancheti (15) declara que a conservação urbana integrada se originou no âmbito do urbanismo reformista italiano dos anos 1960–1970, sobretudo da reabilitação do centro histórico de Bolonha, que envolveu políticos, administradores, planejadores e arquitetos ligados ao Partido Comunista Italiano. Esta experiência notabilizou mundialmente planejadores como Venuti, Benevollo e Cervellati, por suas originais contribuições na área do planejamento urbano e na conservação patrimonial das cidades.
Tendo o impacto dessa proposta extrapolado a Itália, em 1975 ela foi adotada pelo Conselho da Europa como uma diretriz para o planejamento urbano de centros históricos do continente. Eis o que demonstra a Declaração de Amsterdã, de 1975, que considera que “o planejamento das áreas urbanas e o planejamento físico territorial devem acolher as exigências da conservação do patrimônio arquitetônico” (16), o que, para nós, deve incluir a paisagem.
Concluindo, adotamos aqui o conceito de conservação integrada segundo o referencial de Jukka Jukilehto: a que “é alcançada pela aplicação de técnicas de restauração sensíveis e pela escolha correta de funções apropriadas no contexto de áreas históricas, levando em conta a pluralidade de valores, tanto econômicos como culturais, e visando julgamentos equilibrados” (17). Assumimos a conservação integrada como um fator para o desenvolvimento culturalmente sustentável, que, explica Jukilehto, na mesma obra: “implica desenvolvimento baseado em valores e ideias compartilhados e nos padrões intelectuais, morais e estéticos da comunidade”
Caracterização da paisagem dos seis sítios
Em suas “Instruções para a Tutela dos Centros Históricos” Brandi (18), assevera que para individuar os centros históricos, devem ser levados em consideração não apenas os antigos centros urbanos tradicionalmente entendidos, mas, também, de um modo geral, todos os assentamentos humanos cujas estruturas, unitárias ou fragmentárias, ainda que parcialmente transformadas ao longo do tempo, tenham sido feitas no passado; ou, entre aquelas sucessivas, as que tenham adquirido particular valor de testemunho histórico ou proeminentes qualidades urbanísticas ou arquitetônicas.
Considerando o tempo histórico do Espírito Santo, antiga capitania hereditária fundada em 23 de maio de 1535, os seis sítios históricos deste artigo expressam paisagens recentes. A formação de todas elas remonta ao final do século 19. Mesmo assim, retratam o que Brandi asseverou no excerto acima, pois sua consideração refere-se ao que podemos chamar de “quaisquer passados”, pois significativos por sua história, cultura. Passamos a um breve histórico dos seis sítios, caracterizando suas paisagens, ordenando-os pela cronologia de seus tombamentos pelo CEC.
São Mateus
O Porto de São Mateus remonta ao século 16, fundado em meio a lutas entre portugueses e índios aymorés. À força do trabalho escravo, pois, desde 1621, negros aportaram no Espírito Santo, São Mateus consolidou-se por uma economia de base agrícola, sobretudo, da mandioca — caso único no Espírito Santo de sustentação econômica embasada no ciclo da mandioca, que inclusive propulsou o comércio de café no local. É precisamente a essa mão de obra e ao cultivo da mandioca que se deve a fundação de seu porto fluvial, em 1680.
A paisagem do Porto desenvolveu-se segundo as tradicionais praças portuárias de extração portuguesa, concorrendo para guindar a vila à condição de cidade em 1848, no auge da atividade portuária local. Remonta a essa época o seu casario, registro da instalação, no Porto, da aristocracia do lugar, dando forma à praça local, conhecida como Largo do Chafariz.
A arquitetura de seu casario remete ao sobrado português em terras brasileiras, descrito por Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos (19). Sumarizando algumas dessas características, assomam a tipologia de casarão estreito e profundo, a destinação comercial no térreo e residencial nos pavimentos superiores. Atualmente, este casario e o largo seguem preservados, em harmonia com o rio Cricaré e o verdor da sua margem oposta ao Porto.
Santa Leopoldina
Registrando a presença de descendentes portugueses, negros, índios e imigrantes europeus de diferentes procedências, a história de Santa Leopoldina é estritamente ligada ao projeto de colônias europeias no Brasil Imperial. Na penúltima década dos oitocentos tornada sede da colônia, Santa Leopoldina foi nomeada Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, ou simplesmente Cachoeiro. É desta forma que Virgínia Tamanini (1897–1990) se refere à sede, em seu romance histórico Karina, que enfoca a imigração italiana no Espírito Santo, outra obra que tal como O Canaã expressa a paisagem como um ideal.
A compreensão do desenvolvimento urbano e da paisagem de Santa Leopoldina deve considerar sua condição de porto fluvial, ensejado graças à localização da colônia junto ao último trecho navegável do Rio Santa Maria da Vitória (20), em cuja foz situa-se a capital do Espírito Santo. Assim, a vila de Santa Leopoldina registrou armazenamento, comercialização e distribuição de café.
Desaparecido o porto fluvial, o conjunto arquitetônico de Santa Leopoldina hoje pouco remete à outrora relevante função portuária, sendo atualmente marcado por uma seleção de exemplares arquitetônicos do final do século 19 e início do século 20.
Seu logradouro principal, implantado entre uma faixa de morros e o leito do rio, é a antiga rua do Comércio, inteiramente ladeada por exemplares do Ecletismo arquitetônico. Ocorre, porém, que novas ocupações entre a citada rua e o topo das colinas solapam a paisagem original da cidade. Além do casario, no entanto, as pontes que atravessam o rio no centro da cidade funcionam como mirantes da paisagem e dão graça ao passeio pelo local.
São Pedro do Itabapoana
A ocupação da região de São Pedro do Itabapoana, atual distrito do município de Mimoso do Sul, confunde-se com a do sul do Espírito Santo:
“Há controvérsias quanto ao primeiro posseiro da região de São Pedro. Entre as fontes, algumas apontam o nome de José Lopes da Rocha, que teria chegado ao local em 1837. Outras indicam o nome de Manoel Joaquim Pereira, que teria chegado em 1852. É a partir deste ano que a região recebe maior incremento em sua ocupação, com a chegada de posseiros oriundos de Minas Gerais” (21).
Outros dados históricos a resgatar: a original freguesia de São Pedro de Alcântara do Itabapoana, criada pela Lei n.1, de 20 março de 1880; em 1891, a elevação à condição de cidade; em 1920, o município chegou a mais de 31 mil habitantes. De resto, registros relatam que a sociedade local cultivava o gosto pela leitura, a música, as artes.
Essa então vigorosa cidade viveu um revés político em 1930: sua comarca foi transferida para Mimoso do Sul, naquele tempo já bem desenvolvida, entre outros fatores, graças à estação ferroviária, que atraíra o comércio. O motivo político governou a transferência, pois a comunidade de São Pedro se colocara contra a Revolução de 1930. Tornado distrito de Mimoso do Sul, São Pedro do Itapaboana estagnou no começo do século 20.
De longe avistado da sinuosa estrada que liga Mimoso do Sul a São Pedro do Itabapoana, o portal de madeira da entrada do distrito é o limiar de uma rua pavimentada em pé de moleque. Dele já se avistam as colinas nas quais a rua coleia entre um casario simples, ornado pelos verdejantes quintais que sarapintam o percurso — assim se desvela a paisagem para quem transpõe o portal.
Muqui
Com origens remontando a meados do século 19, quando desbravado o território por fluminenses advindos do Vale do Rio Paraíba sequiosos por novas terras para o plantio do café, foi em torno desta época fundado o Arraial do Lagarto. O Arraial era composto pelas fazendas Boa Esperança e Entre Morros. Ele prosperou graças à implantação da estação ferroviária da Estrada de Ferro Leopoldina, inaugurada em 1902, que a partir daí conheceu vigorosa economia cafeeira nas décadas de 1920 e 1930.
Após um curto período de declínio, reflexo tardio da crise mundial de 1929, a partir da década de 1950 a cidade conheceu nova irrupção desenvolvimentista: em virtude da ligação ferroviária com o Rio de Janeiro, e das relações comerciais com a então Capital Federal, onde medrava o modernismo arquitetônico, este movimento difundiu-se para Muqui, que ainda hoje preserva exemplares “modernos.”
Nas décadas de 1980 e 1990, Muqui sofreu uma ocupação desordenada dos morros periféricos da cidade, crescimento acelerado da malha urbana, parcelamento e ocupação de terrenos vagos, demolição de casas antigas e substituição por novas, causando uma perda da outrora coerência volumétrica e de sua relação harmônica com o entorno verde.
Não obstante, os elementos mais notáveis de sua paisagem mantêm-se: a rua principal margeando a estrada de ferro, ladeada por uma aleia de árvores podadas em topiária. Dos dois lados dela, antigos casarões elegantes, varandas, alpendres, balcões, sacadas e janelas a velar pela via férrea.
Resta ainda destacar densamente vegetado Jardim Municipal, a praça do bairro Boa Esperança, e um monumento natural muito valorizado pelos muquienses: a Pedra do Dragão, penedo com uma mancha que lembra a forma da mitológica “cobra que voa”.
Itapina
Atual distrito de Colatina, Itapina desenvolveu-se às margens do Rio Doce na passagem do século 19 para o 20, em cuja primeira metade destacou-se como um dos lugares de maior êxito no comércio de café no estado. Um núcleo urbano desenvolveu-se em seu entorno com a construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas, em cujos pontos de apoio surgiram novos povoados. Em Itapina isto potencializou atividades agrícolas e comerciais. Em virtude do grande êxito da região de Colatina, a estação ferroviária de Itapina transformou-a em uma das vilas mais movimentadas da companhia ferroviária na primeira metade do século 20.
Com a campanha nacional de erradicação dos cafezais, promovida na segunda metade do século 20, foram paulatinamente se esgotando as atividades da estação ferroviária, e igualmente de outros serviços, que aos poucos cessaram, levando à estagnação econômica de Itapina.
Hoje, serpenteando em uma estrada sinuosa, entre os morros e o Rio Doce, atinge-se o distrito, cujo conjunto não é apreensível de imediato, pois não há nele um ponto nodal, como seriam uma praça ou um adro de Igreja. Itapina exige a caminhada para a descoberta: errar pela rua Elisa Castiglione Rosa e entorno, desvendando a antiga vila comercial e ferroviária, tendo o rio Doce como companheiro.
Pode-se conhecer a ponte inacabada, atualmente um mirante da vila; espantar-se com o nome da pequenina “Egreja de Sant’Antonio”, e desvendar o casario singelo, com muita história para contar. É o caso da Casa da Parteira Perina Rongoni, que ajudou a dar à luz a um monte de crianças em Itapina. Prosseguindo, destaca-se o Museu Virgínia Tamanini, restaurado pela Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo — Secult em convênio com o Município de Colatina. O museu foi outrora residência da escritora e teatróloga nascida em Santa Teresa, o sexto sítio histórico do Espírito Santo.
Santa Teresa
Município da região centro-oeste do Espírito Santo, com São Roque do Canaã, Itaguaçu, Itarana, Santa Maria de Jetibá e Santa Leopoldina, Santa Teresa compõe a região dos imigrantes no mapa turístico oficial do Estado.
Maria Izabel Perini Muniz (22) recorda que “um caminho, entre o Porto de Cachoeiro de Santa Leopoldina em direção a Minas, atravessando o Rio Timbuy” (23) favoreceu a implantação de um povoado de italianos que viria a se tornar a atual cidade de Santa Teresa. A abertura dessa rota fora iniciada em 1848, pelo Presidente da Província, Antônio Pereira Pinto. Prossegue Muniz: “Muitos colonos italianos que receberam terras pouco férteis junto ao núcleo de Timbuy abandonaram seus lotes e estabeleceram-se em terras devolutas no vale do rio Santa Maria do Rio Doce e do rio Santa Joana”. Conforme a autora, “esses italianos, e os que chegaram nos anos seguintes, povoaram o Vale do Canaã e outros pequenos vales, como o dos Espanhóis, o Valsugana, o Tabocas e o de São Sebastião do Rio Perdido”.
Os primeiros italianos que vieram em grupo para o Espírito Santo foram os da Expedição Tabacchi, de 1874, para a colônia Nova Trento, empreendimento malsucedido Piero Tabacchi. Eles se fixaram junto ao rio Timbuy e ampliaram a ocupação da zona de colonização antiga, concorrendo formar o atual município de Santa Teresa.
A cidade se mantém pequena, sua paisagem é fartamente vegetada, e tem na praça Augusto Ruschi o seu núcleo público de contemplação e lazer, ao centro de dois belos colégios: a Emei Pessanha Póvoa, antigo grupo escolar (1929), e a Escola Santa Catarina (1946).
Concluímos por algumas aproximações e afinidades entre os seis sítios históricos:
- Os seis sítios históricos, em algum momento, ligam-se à economia do café;
- Dos seis sítios dois são distritos: São Pedro do Itabapoana (de Mimoso do Sul) e Itapina (de Colatina);
- São Mateus e Santa Leopoldina são portos fluviais;
- Muqui e Itapina são atravessados por ferrovias;
- Santa Teresa e Santa Leopoldina são paisagens eminentemente europeias em sua formação.
Apesar dessas aproximações, pode-se dizer que os sítios são paisagens diversas como conjunto, o que importa para pautar suas políticas de conservação, nos conduzindo à análise.
A conservação dos sítios históricos do Espírito Santo
Com o objetivo de investigar as medidas que favoreceriam a manutenção das paisagens dos seis sítios, convocamos Leonardo Benevolo (24) para quem, “o problema da conservação do centro histórico se transforma principalmente num problema social, porque o objeto a tutelar é uma qualidade de vida e não uma forma a contemplar”. No entender de Benevolo:
“O propósito de preservar o centro antigo faz parte de um projeto de desenvolvimento alternativo em relação ao precedente e tem como necessário complemento a limitação do crescimento periférico. O centro é preservado não porque é uma área mais valorizada, mas porque daqui se pode começar a estabilizar a relação entre população e ambiente, partindo de uma estrutura física e social já organizada com respeito a este objetivo” (25).
Tais reflexões aplicam-se aos seis sítios, que enfrentam o fenômeno de ocupações espontâneas periféricas e favelização, bem próximo dos centros tombados. Além do referencial de Benevolo, a Declaração de Amsterdã de 1975 orienta diferentes contextos geográficos, como comprovam seus enunciados, doravante resumidos para fundamentar a análise da legislação aplicada aos seis sítios.
- O patrimônio arquitetônico é uma forma de conscientização da história e destinos comuns, pelo que sua conservação é vital;
- Conjuntos, bairros, aldeias, cidades de interesse histórico ou cultural são compreendidos no patrimônio, extrapolando os bens de valor excepcionais isolados e seu entorno;
- A riqueza do patrimônio é um bem comum dos povos, que por ele devem zelar coletivamente contra os perigos que o ameacem;
- O planejamento físico territorial e o planejamento urbano devem considerar o patrimônio como seu objetivo maior;
- A maior parte das decisões de planejamento compete aos poderes locais, pelo que, essas instâncias devem interagir entre si;
- Na reabilitação de bairros e sítios antigos, deve ser visada a manutenção da composição social dos moradores, contemplando as camadas da sociedade com investimentos públicos;
- A conservação integrada deve ter seu fulcro em medidas legislativas e administrativas fortes e eficazes;
- Para os custos de restauração, planejamento e conservação do patrimônio deve ser alocada ajuda financeira para as administrações públicas locais e, para os particulares, além disso devem ser previstos incentivos fiscais;
- O patrimônio arquitetônico deve ser contemplado por programas educacionais de sorte a favorecer o seu apreço pelo público jovem;
- Organizações privadas de diferentes abrangências geográficas dedicadas à formação de público para o patrimônio devem ser incentivadas;
- O aprimoramento da arquitetura atual deve ser estimulado, pois ela constitui o patrimônio do futuro.
Vejamos agora a legislação estadual que rege os bens e sítios históricos tombados, para cotejá-la quanto aos princípios acima, consoante nossa hipótese: os instrumentos legais existentes falham por conta da incompreensão conceitual do que representam estes sítios.
A lei primordial de proteção do patrimônio histórico do Estado do Espírito Santo é a n. 2.947, de 1974, fundamentada no Decreto-lei n. 25, de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Alguns dos artigos da Lei n. 2.947/74 inclusive reproduzem os do Decreto-lei n. 25/37:
“Art. 1o — Constitui o Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Espírito
Santo o acervo de bens móveis e imóveis existentes em seu território e cuja
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação e fatos memoráveis da História, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou científico” (26).
Ao meramente transcrever artigos do Decreto 25/37 do instituto do Patrimõnio Histórico e artístico Nacional — Iphan em uma lei de 1974, a entidade governamental que formulou a Lei n. 2947/74 não considerou as especificidades locais do Espírito Santo, tais como: sua pequena escala, a possibilidade de cruzar todo o estado em um só dia, as paisagens notáveis, os núcleos históricos.
Outro instrumento do arcabouço legal de proteção do patrimônio estadual é a Lei Complementar n. 391, 2007, que prediz que compete à Secretaria de Estado da Cultura — “realizar a proteção, vigilância, restauração, manutenção e conservação da memória e do patrimônio histórico, artístico e cultural do Estado do Espírito Santo” (27).
Ademais da supracitada legislação, existem as Resoluções de Tombamento dos Sítios Históricos do Estado, promulgadas pelo CEC. Elas delimitam as poligonais, dispõem sobre a regulamentação e as diretrizes de intervenção nos perímetros nela delimitados, e pautam o trabalho da Secult nos sítios. Os cinco sítios históricos tombados e o único em processo de tombamento (Santa Teresa), são regulados pelas seguintes resoluções:
- São Mateus: Resolução CEC n. 01/ 1976;
- Santa Leopoldina: Resolução CEC n. 05/1983;
- São Pedro do Itabapoana: Resolução CEC n. 02/1987;
- Muqui: Resolução CEC n. 02/2012;
- Itapina: Resolução CEC n. 03/2013;
- Santa Teresa: Processo n. 62749994/2013.
O respeito a essas resoluções em cada bem tombado, em cada nova edificação e/ou intervenção urbana, contribuiria para conservar a ambiência do sítio e de sua paisagem, pois consistem nas únicas normativas elaboradas para cada sítio exclusivamente.
Quanto à legislação municipal, têm Plano Diretor Municipal — PDM: São Mateus; Santa Leopoldina; Santa Teresa; Mimoso do Sul, cujo distrito São Pedro do Itabapoana é tombado; e Colatina, cujo distrito de Itapina é tombado. Muqui não tem PDM.
Em sítios em que não há legislação municipal, as resoluções de tombamento estadual acabam funcionando como regimento urbano e arquitetônico, consequentemente, em suas paisagens.
Ademais, há sítios que não têm pessoal técnico nas prefeituras, e, para eles, são os técnicos da Secult que analisam os projetos e intervenções pretendidas. Assim, a legislação estadual acaba preenchendo o vazio técnico e institucional dos municípios, para além de cumprir seu papel na conservação dos sítios.
Na ótica dos princípios da conservação integrada, os PDMs citados atuam desfavoravelmente ao princípio que prediz que o patrimônio arquitetônico extrapola as edificações e conjuntos monumentais: eles não intervêm em todas as escalas arquitetônicas, urbanísticas e paisagísticas. Da mesma forma, eles não colocam a conservação do patrimônio como objetivo principal da planificação urbana e territorial nos sítios históricos do Estado.
Em termos de poderes locais, na atualidade não há prevalência deles nas iniciativas de conservação integrada dos sítios, por ausência de pessoal técnico, de legislação específica expressiva, e pela nula integração entre as prefeituras dos seis sítios. Assim, as medidas legais são mormente estaduais e sua aplicação na maioria dos casos não é efetivada pelas prefeituras locais.
Quanto a fundos para a conservação do patrimônio, inexistem em âmbito local, mas são objeto de editais do Fundo de Cultura do Estado do Espírito Santo — Funcultura operados pela Secult com êxito. Positivo também é o trabalho da Secult na educação patrimonial nos seis sítios, incluindo a formação de professores dos diversos níveis escolares.
Organizações privadas atuantes na manutenção dos seis sítios são poucas, sendo mais comuns as iniciativas particulares, inclusive na promoção de programas culturais. Por fim, no tocante à arquitetura contemporânea nos sítios, ela constitui o desafio atual, pois na maioria dos casos as iniciativas querem extrapolar o permitido pela legislação, com pouco denodo na qualidade dos prédios.
Por tudo isso, confirmamos a nossa hipótese: os instrumentos legais existentes falham por conta da incompreensão conceitual do que representam estes sítios, tão pequenos, de paisagens facilmente abarcáveis pelo olhar, tão reveladores dos elementos culturais que as formam.
Consideramos que a conservação integrada em pequenos sítios, como o caso dos aqui tratados, tem mais chance de ser exitosa do ponto de vista da paisagem, pela própria facilidade de observação oferecida pela pequena escala. Mas para que ela possa se efetivar, é crucial que os sítios sejam descobertos como paisagens, como ideais a serem alcançados.
Os sítios históricos como paisagens a descobrir
Tudo somado, notamos a dificuldade das administrações municipais e dos próprios moradores dos sítios históricos em descobri-los e entendê-los como paisagens, de os terem como ideais. As administrações locais preocupam-se meramente com o êxito financeiro de seus municípios, em sua maioria ainda ligado à economia do café.
Os moradores pouca afetividade demonstram pelo conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico, manifestando sempre o interesse particular de ampliar seus imóveis, de construir um terraço, de “modernizá-los”. A propósito, ouvimos de um morador de Santa Teresa, que “ninguém vai a Santa Teresa pela arquitetura, e sim pelos restaurantes”. Ora, e onde estão os restaurantes senão no casario histórico da cidade, no núcleo formador de sua paisagem?
Concluímos que legislação e políticas públicas baseadas em uma paisagem ideal dos sítios, que incorpore preceitos da conservação integrada, é imprescindível para o porvir dessas paisagens tão relevantes para a memória do Espírito Santo.
Do ponto de vista de ensino e pesquisa, entendemos que um trabalho integrado entre disciplinas de paisagismo e patrimônio histórico é fundamental para a formação de profissionais conscientes e preparados para realidades como as descritas neste artigo.
notas
1
TURNER, Tom. City as Landscape: a post-postmodern view of design and planning. Oxford, Alden Press, 1996, p. 148.
2
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 483.
3
MEINIG, Donald William (Ed.). The interpretation of ordinary landscapes. Oxford, Oxford University Press, 1979.
4
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
5
MEINIG, Donald William (Ed.). Op. cit.
6
Idem Ibidem, p. 6. Tradução da autora.
7
COMITÊ INTERNACIONAL DO ICOM PARA CONSERVAÇÃO. Conservação. Icom Brasil <https://bit.ly/3TWBYpA>.
8
CONSELHO INTERNACIONAL DE MONUMENTOS E SÍTIOS [1980]. Carta de Burra. Iphan, Rio de Janeiro, s.d. <https://bit.ly/2U35Ssh>.
9
Idem, ibidem.
10
Idem, ibidem.
11
BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. 3ª edição. Cotia, Ateliê Editorial, 2008, p. 135.
12
Idem, ibidem, p. 135–136.
13
Idem, ibidem, p. 136–137.
14
MELBOURNE Strategy implementation. Urban conservation <https://bit.ly/3fpKn5N>.
15
ZANCHETI, Sílvio. Conservação integrada e planejamento urbano: uma revisão. Cadernos de Estudos Sociais, v. 19, n. 1, Recife, jan./jun. 2003, p. 107–124 <https://bit.ly/3FyguuS>.
16
Congresso Do Patrimônio Arquitetônico Europeu [1975]. Declaração de Amsterdã. Iphan, Rio de Janeiro, s.d. <https://bit.ly/3TU4gke>.
17
JUKILEHTO, Jukka. et al. Gestão do patrimônio cultural integrado. Recife, Editora UFPE, 2002, p. 11–19.
18
BRANDI, Cesare. Op. cit., p. 256.
19
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. São Paulo, Global, 2003.
20
HERMANNY, Renata. Patrimônio Cultural do Espírito Santo: arquitetura. Vitória, Secretaria de Estado da Cultura/Conselho Estadual de Cultura, 2009.
21
Idem, ibidem, p. 127.
22
MUNIZ, Maria Izabel Perini. Cultura e Arquitetura: a casa rural do imigrante italiano no Espírito Santo. Vitória, EDUFES, 1997.
23
Idem, ibidem, p. 49.
24
BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto. São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 71.
25
Idem, ibidem, p. 72–73. Grifo da autora.
26
GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Lei 2947/74, de 1974. Vitória.
27
GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Lei Complementar n. 391, de 2007.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (Ufes, 1991), mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) e doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada do Patrimônio Histórico (UFPE, 2008). Servidora pública municipal há trinta anos, atualmente trabalha na Coordenação de Revitalização Urbana da Secretaria Municipal de Desenvolvimento da cidade. Colaboradora e integrante do Corpo Editorial do periódico Arquitextos, publica neste portal desde o ano de 2004.