O debate em torno do conceito de cidade inteligente é reproduzido em diversas publicações (1) desde o início dos anos 2000 (2), em diferentes formatos de informação e inserido em variadas áreas do conhecimento. O significado básico da expressão se refere a implantação de Tecnologia da Informação e Comunicação — TIC, com desenvolvimento contínuo, que acelere e torne mais eficientes os serviços urbanos prestados e o desenvolvimento sustentável (3), todavia, passadas duas décadas de estudo, o conceito criou robustez e complexidade.
A fim de identificar a abrangência do conceito de cidade inteligente, foram realizadas rápidas buscas on-line, em diferentes plataformas, utilizando a palavra-chave “smart city”. A EBSCOhost, um banco de dados on-line que fornece acesso a conteúdo científico, apresenta 978 documentos utilizando a palavra-chave “smart city” entre os anos 2000 e 2021, considerando revistas e periódicos científicos. O Google Acadêmico, base de dados online de fácil acesso e com diversos tipos de documentos encontra até 14 mil itens para a busca “smart city” no título. Com a disseminação do termo e o aumento de pensadores utilizando e empregando a expressão, é possível pressupor mutações em seu significado, agregando novas definições e vertentes ao conceito.
Defende-se aqui que o significado de cada uma das palavras da expressão cidade inteligente pode facilitar seu entendimento global. Segundo o Oxford Languages, cidade pode ser descrita por uma concentração populacional não agrícola, com atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e/ou cultural ou também o governo e a administração de um território. Para Aieta (4) a cidade possui o dever de cumprir sua função social e fundamental de fornecer habitação, assegurar os direitos sociais e atender as necessidades humanas de sobrevivência, existência e felicidade. Caminhando de encontro a esses dois conceitos de cidade, entendendo-a como um bem comum gerido por uma entidade pública, o Estatuto da Cidade (5) entrega as normas de ordem, equilíbrio ambiental e regulação do uso do solo dentro do município, visando o bem coletivo, a segurança e o bem-estar dos cidadãos. Nesse cenário proposto pelo Estatuto da Cidade, o desenvolvimento e a execução de projetos de desenvolvimento urbano se dão a partir de uma gestão democrática, envolvendo poder público, iniciativa privada, associações representativas da sociedade e a participação popular. Em análise similar à anterior, a palavra inteligência exprime a faculdade de conhecer, compreender e aprender ou também a capacidade de resolver novos problemas e conflitos e de se adaptar a novas situações (6).
Da Silva (7) defende que cada pessoa possui um entendimento a respeito do conceito de Cidade Inteligente, alinhado à sua área de formação ou de conhecimento. Na sua visão, isso pode ser justificado pelos diferentes aspectos de inteligência relacionados ao coletivo de uma cidade, formado por seus cidadãos, que podem colaborar de forma simples e efetiva na construção de uma cidade, ou comunidade mais inteligente. Assim, quando o cidadão e o governo compreendem o potencial das tecnologias de informação e comunicação e tomam decisões conscientes para transformar o trabalho e a vida de forma significativa em sua região, a comunidade é inteligente (8).
O entendimento de Alexsandro Amarante da Silva (9) conversa com a produção de Howard Gardner, de 1983, um psicólogo e professor de Harvard que propôs a teoria das inteligências múltiplas, apontando a hipótese de que as pessoas possuem diversas competências intelectuais e independentes entre si. As inteligências propostas por Gardner são: linguística, musical, logico-matemática, espacial, corporal-cinestésica, intrapessoal, interpessoal, naturalista e existencial (10). Para Gardner, as competências individuais são influenciadas pela cultura, época e local da estrutura social em que se encontra, considerando que as múltiplas inteligências são associadas ao uso das habilidades para a resolução de problemas e criação de respostas valorizadas pelo indivíduo (11).
Valorizando o conceito de múltiplas inteligências, André Luiz Martins Lemos e de Nayra Veras de Araújo (12) ressaltam que cidades inteligentes contam com cidadãos inteligentes, que, em alguns casos, atuam como ativistas políticos, e em outros, apenas como fornecedor de informação. Este cidadão é alguém que vai captar e produzir informações ao longo de seu deslocamento pela cidade, utilizando aplicativos e/ou sites para o envio de informações ou acesso à serviços públicos.
Maria Alexandra Cunha (13) aponta que é possível identificar uma cidade inteligente como aquela capaz de superar os desafios do passado para conquistar o futuro, utilizando a tecnologia para que os serviços urbanos sejam prestados de forma mais eficiente e que a venham melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Para isso, é preciso utilizar caminhos inteligentes, que comtemplem a implantação de iniciativas simples ou mesmo, que exigem o envolvimento do setor público, privado e do cidadão (14).
Compreendendo que o termo básico de cidade inteligente, vinculado à implantação de infraestrutura digital na busca pela eficiência dos serviços urbanos, está atrelado ao conceito de gestão participativa previsto no Estatuto da Cidade, onde o desenvolvimento, a implementação e o acompanhamento de projetos urbanos devem relacionar poder público, privado, associações e participação popular, surge uma reflexão: Qual é o papel do cidadão dentro dos processos de criação, implementação e acompanhamento de uma Cidade Inteligente?
Com o objetivo de analisar as publicações mais recentes sobre o tema, a fim de compreender a abrangência do termo, as suas mutações ao longo dos anos e as diferentes aplicações no meio acadêmico científico, foi definido o recorte temporal de 2017 até 2020. A base de dados mais utilizada foi Google Acadêmico e os critérios utilizados na escolha dos artigos a serem analisados foram: 1. artigos que contivessem um conceito descrito para o termo “cidade inteligente” e que mencionassem a participação popular; 2. autores e revistas relevantes para o tema e; 3. publicações entre os anos de 2017 e 2020.
Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é compreender o conceito de cidade inteligente, com o intuito de caracterizá-lo por meio de bibliografias, demonstrando as variações no significado da expressão, bem como entender o papel do cidadão na criação, implementação e acompanhamento de uma cidade inteligente. Dessa forma, o trabalho está dividido em cinco tópicos, sendo o primeiro a introdução, o segundo voltado a evolução do conceito de cidade inteligente, o terceiro apresenta a contextualização da cidade inteligente e do papel do cidadão por meio de referenciais teóricos, o quarto demonstra estudos de caso de cidades e inteligentes e o quinto, e último, apresenta as conclusões finais.
Cidade inteligente: a evolução do conceito
A expansão urbana no Brasil teve início na década de 1930, inicialmente associado às migrações internacionais financiadas pelo Estado e, a partir de 1950, impulsionada pela industrialização da economia brasileira, pela expansão dos sistemas de transporte, meios de comunicação em massa e pelas migrações internas (15). Tais movimentos populacionais buscavam, de modo geral, retorno econômico e promoveram impactos profundos nas cidades do país. A alta concentração urbana impacta diretamente a mobilidade urbana, o saneamento básico, a oferta de água potável, a segurança e a resposta a desastres das cidades, em especial quando esta ocupação ocorre de forma desordenada. Esse processo de expansão urbana ocorreu em diversos países do mundo, em épocas diferentes (16).
Fausto Brito e Joseane de Souza (17) identifica que desenvolver uma cidade integrada e sustentável é um desafio desde 1970, devido à grande influência do crescimento populacional sobre o meio ambiente e a qualidade de vida da população (18). A partir dessa data, a métrica usada para o entendimento do desenvolvimento socioeconômico das cidades, até então composta predominantemente por indicadores econômicos, começa a ser remodelada (19). Partindo do pressuposto de que cidades estão em constante transformação, devido as diferentes formas de interação social que nela acontecem, se torna claro que apenas indicadores econômicos não são suficientes para se compreender o comportamento de um território e de sua população (20).
A partir da década de 1990, acompanhando o desenvolvimento tecnológico mundial, surgem os primeiros aspectos do que viria a se transformar no conceito de smart city, onde o desenvolvimento urbano estaria fortemente atrelado à tecnologia, inovação e a globalização (21). Podem ser considerados termos embrionários ao conceito de cidade inteligente a expressão smart community, utilizada no Vale do Silício em 1993, que remetia a uma “associação direta com a otimização, desenvolvimento sustentável e positivo de uma cidade ou região” (22) e a expressão intelligent city, usada por Heng & Low, também em 1993, se referindo ao uso de tecnologia e infraestrutura de comunicação na área comercial de Singapura (23). O termo conhecido atualmente como cidade inteligente foi citado pela primeira vez na publicação “Smart cities: the Singapore case”, de Arun Mahizhnan (24), estudo sobre a iniciativa de Singapura em se tornar uma cidade focada na tecnologia. A partir de então, o conceito passa a estar presente em publicações científicas e as suas aplicações debatidas por diversos autores.
Um destes autores são Rocco Papa, Adriana Galderisi, Maria Cristina Vigo Majello e Erika Saretta (25), que explicam que o conceito de cidade inteligente foi inserido na ciência nos anos 2000, vinculado fortemente a uma abordagem tecnológica, adquirindo, por volta de 2005, a importância do capital humano e social no desenvolvimento urbano inteligente ao seu entendimento. Com o estudo de Rudolf Giffinger, Christian Fertner, Hans Kramar, Robert Kalasek, Natasa Pichler-Milanović e Evert Meijers (26), que apresentou um método para medir e comparar as inteligências das áreas urbanas, o conceito ganhou espaço no meio científico e caminhou para 2010 com o entendimento de cidade de alto desempenho a partir de seis características: economia inteligente; pessoas inteligentes, governança inteligente, mobilidade inteligente, ambiente inteligente e vida inteligente. Yunita Arafah e Haryo Winarso (27), defendem que o desenvolvimento do conceito de cidade inteligente pode ser dividido em três grupos principais, começando pela chamada cidade digital em 2000; em seguida a cidade social inclusiva em 2005; e em 2010, com foco em ambos, formando a Cidade com alta qualidade de vida.
Elvira Ismagilova, Laurie Hughes Dwivedi Yogesh Kumar e K. R. Raman (28) identificam diversos autores que propuseram a categorização da inteligência dentro da cidade, como Rudolf Giffinger, Christian Fertner, Hans Kramar, Robert Kalasek, Natasa Pichler-Milanović e Evert Meijers (29), também citado por Rocco Papa, Adriana Galderisi, Maria Cristina Vigo Majello e Erika Sarett (30), e Dimitri Schuurman, Bastiaan Baccarne, Lieven de Marez e Peter Mechant (31).
Avançando ainda mais nas dimensões da inteligência de uma cidade, Andrea Caragliu, Chiara Del Bo e Peter Nijkamp (32) e Md Ileas Pramanik, Raymond. Y. K. Lau, Haluk Demirkan e Md Abul Kalam Azad (33) mencionam ainda sistemas de segurança inteligente, prédios inteligentes, turismo inteligente e estilo de vida inteligente. Os autores apontam que, a partir de 2012, os estudos sobre o tema reafirmam a categorização da cidade inteligente proposta em 2007, tornando o entendimento de dimensões da inteligência comum a diferentes publicações.
A partir dos entendimentos destes autores é possível montar uma linha do tempo para o conceito de cidade inteligente, demonstrando alguns consensos que foram identificados desde o surgimento do termo até 2015. Desta forma, é levantado o questionamento: o que o pode ser entendido como um consenso de cidade inteligente em 2020?
Alexsandro Amarante da Silva (34) avança para além das tecnologias quando aponta que as comunidades, regiões e cidades inteligentes são responsáveis por criar o ambiente apropriado para aprimorar as habilidades de aprendizado, cognitivas e de inovação de seus habitantes. Dessa forma, surge um ambiente colaborativo à coletividade, que propõe inúmeras combinações de sistemas de informações e habilidades individuais que operam de forma criativa nos espaços digitais e reais das cidades (35).
Em estudo produzido pela Fundação Getúlio Vargas — FGV chamado: “Smart Cities: transformação digital de cidades”, é apontado que as capacidades tecnológicas das empresas de sistemas e/ou a visão dos gestores urbanos, não podem ser os únicos meios para se basear uma cidade inteligente. É preciso gerar compromisso com o cidadão, de modo a unir a cidade e os grupos de interesse, criando envolvimento e comprometimento em um projeto de cidade comum a todos. Dessa forma, a visão e o ritmo de evolução dos processos de implantação e gestão de uma cidade inteligente precisam ser definidos em conjunto com as lideranças do município, as empresas, as universidades, a administração pública e os cidadãos, a fim de promover a democracia e o sentimento de pertencimento (36).
O papel do cidadão dentro da cidade inteligente
É possível observar que o fator “participação da comunidade” dentro de um projeto de cidade inteligente é mencionado por diversos autores, apresentando um panorama para 2020. A participação do cidadão passa pela educação ambiental e consciência de cidadania, valorizando a prática dos direitos e deveres da vida em sociedade e estimulando o envolvimento do indivíduo com a sua comunidade. Cidadania, para além de seu significado jurídico, envolve tomar para si o poder de participar e influenciar as decisões dos governantes sobre a sua região. Sob essa perspectiva, a tabela “Comparativo de conceitos para o termo cidade inteligente e para o papel do cidadão dentro dela, em publicações de 2017 a 2020, de diferentes revistas e plataformas” foi desenvolvida com o intuito de comparar conceitos e identificar como o cidadão é visto dentro da cidade inteligente de diferentes autores.
Nota-se a relevância do cidadão na construção de uma cidade inteligente para os diversos autores mencionados, que compartilham o entendimento de que a cidade deve ser inteligente para sua população, garantindo a participação efetiva, acessível aos munícipes e durante todas as etapas do processo. Erminia Maricato, Paolo Colosso e Francisco de Assis Comarú (37) reafirmam a importância da participação social ao apontar a necessidade de desenvolvimento de um projeto para as cidades brasileiras pautado no protagonismo de movimentos sociais, universidades, entidades técnicas e profissionais, que visem a construção de espaços urbanos mais justos em termos socioespaciais, ambientalmente sustentáveis, economicamente dinâmicas e culturalmente plurais. Referenciando Paulo Freire: “o conhecimento pode ser um instrumento de libertação” (38) e as universidades são essenciais na produção de conhecimento a fim de alcançar a realidade da região e a adesão popular.
O Estatuto da Cidade, lei de 2001, que rege os instrumentos da política urbana no Brasil, enfatiza no artigo n. 45 a participação popular “na formulação, execução e acompanhamento de plano, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (39). Tal premissa apresenta-se como uma retórica importante dentro do planejamento urbano até os dias atuais, favorecendo a apropriação dos espaços públicos e a promoção do sentimento de pertencimento dos moradores com as suas comunidades. Apesar dos quase vinte anos de diferença entre a publicação da Lei n. 10.257 e as publicações presentes na tabela “Comparativo de conceitos para o termo cidade inteligente e para o papel do cidadão dentro dela, em publicações de 2017 a 2020, de diferentes revistas e plataformas”, a temática da participação popular continua sendo abordada, agora no contexto das cidades inteligentes, como uma premissa fundamental para o sucesso de todos os seus processos de criação, implantação e funcionamento.
Apesar de existir o consenso de que a participação popular é de suma importância dentro de uma Cidade Inteligente, Raquel Rolnik (40) analisa com cautela a reprodução rasa dessa abordagem. Para ela, as smart cities são acompanhadas de um marketing sobre cidades inclusivas e democráticas, que oferecem ao cidadão a possibilidade de interagir com o governo e melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados às pessoas. Entretanto, essa não é a realidade em muitos casos. Quando as pessoas utilizam a internet, seu percurso revela suas preferências e os dados produzidos são apropriados por empresas, que bombardeiam os usuários com propagandas específicas, provocando o que se chama de “mineração de dados” ou “marketing segmentado”. Caso essa apropriação de dados entre em disponibilização e articulação com os sistemas públicos de informação, como dados judiciais, policiais e outros, pode ocorrer uma intensificação da segregação nas cidades (41).
A Organização da Nações Unidas — ONU (42), estima que em 2030 a população mundial contará com 41 megalópoles com mais de 10 milhões de habitantes. Estes espaços urbanos são locais em que, muitas vezes, a pobreza extrema se concentra, as desigualdades sociais aumentam e a violência acaba sendo uma consequência das desinteligências no acesso pleno à cidade. Portanto, a construção e a gestão dos espaços urbanos precisam ser transformadas de maneira significativa para que seja alcançado o desenvolvimento sustentável. Dentre os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — ODS, ao menos três possuem relação direta com os sistemas urbanos das cidades: o sexto objetivo, que pretende garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos; o sétimo objetivo, que busca assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível, à energia; e o décimo primeiro objetivo, que almeja tornar as cidades e os assentamentos humanos seguros, inclusivos, sustentáveis e resilientes. Tais objetivos caminham ao encontro da cidade inteligente do futuro: uma cidade feita pelas pessoas e para as pessoas, de forma justa, democrática e efetiva (43).
A vivência da cidade inteligente é uma realidade em Songdo, na Coréia do Sul e em Masdar, no Emirados Árabes. Ambas são estudo de caso sobre o tema e apresentam falhas e acertos em relação a participação popular e adaptação dos moradores a um modelo diferenciado de cidade.
Songdo, na Coréia do Sul, é uma cidade totalmente planejada, concebida nos primeiros anos do século 21, em quase 1.500 hectares de terra, recuperados do Mar Amarelo. O intuito era ser uma cidade de alta tecnologia, totalmente sustentável, com um futuro sem poluição, sem carros e sem espaços superlotados. As ruas são equipadas com sensores que medem o uso de energia e a quantidade de tráfego, os parques possuem sistemas de irrigação autossustentáveis, o lixo residencial segue por tubos até uma central, onde é separado de forma automática em resíduos recicláveis e resíduos a serem queimados, as casas possuem aplicativos de celular que controlam de ar-condicionado a iluminação. Entretanto, o uso extensivo desses métodos levou vários habitantes e críticos a afirmarem que viver em Songdo é “frio” e “desértico”. Tais críticas podem ser justificadas pela falta do sentimento pertencimento dos moradores pela cidade, que demonstra uma valorização extrema da tecnologia ao invés do indivíduo. Tal exemplo reafirma a valorização do indivíduo dentro da cidade inteligente, na busca por promover o uso da tecnologia para melhorar a qualidade de vida da população ao invés de apenas torná-la digital (44).
Já a Cidade de Masdar, nos Emirados Árabes, foi projetada para ser a cidade mais sustentável do planeta e investe em estratégias que visam seu desenvolvimento a longo prazo. Ainda em construção, a cidade valoriza uma arquitetura simples, com edificações baixas, ruas estreitas e sem carros circulando pela cidade. Com previsão de conclusão até 2030, a proposta promete um ritmo de construção lento, a fim de evitar a rápida expansão e favorecer o desenvolvimento de estudos sobre seu crescimento (45). Ainda que incerto seu sucesso ou fracasso, a proposta vai de encontro a diversas consensos do planejamento urbano, como a valorização peatonal, e busca a qualidade de vida em todos seus sentidos, não apenas pelo lado tecnológico. Porém, Masdar ainda falha na participação popular, já que possui menos de 10% dos originais 50 mil habitantes previstos para a cidade.
Wilson Levy e Carlos Leite (46) ressaltam que o debate em torno de cidades inteligentes apresenta inúmeros desafios práticos e conceituais, que devem ser enfrentados pela universidade, comunidade de especialistas e todos os receptores de inovações relacionadas ao tema. É pouco cabível reduzir o conceito de cidades inteligentes à aplicativos tecnológicos que formam uma cidade conectada, com letreiros luminosos e pessoas que caminham apressadamente, mergulhadas em seus smartphones. É necessário compreender “inteligência” como um elemento diferencial, sendo a chave para o início deste debate, a fim de que seus significados possam evidenciar o alcance das smart cities na sociedade, e reposicioná-la frente ao urbanismo e a política urbana (47).
Considerações finais
Na busca pela compreensão do conceito de cidade inteligente, o estudo identificou que, ainda que em construção e aplicável a diversas vertentes, de modo geral, o conceito de cidade inteligente permanece atrelado a Tecnologias de Informação e Comunicação — TICs quando aplicadas a infraestrutura municipal, participação social, desenvolvimento urbano e sustentabilidade. Tais tecnologias necessitam de inteligência para coletar e ler dados, visando a compreensão da cidade e de suas dinâmicas, enquanto as mesmas acontecem, e não de modo estático e isolado, facilitando assim a tomada de decisão dos gestores.
Quanto ao papel do cidadão na criação, implementação e acompanhamento de uma cidade inteligente, é constante a menção à participação social dentro desses modelos de desenvolvimento, por vários estudos. A revisão bibliográfica deixa claro que não existe cidade inteligente sem a participação social, já que uma está diretamente vinculada a outra: a tecnologia só será inteligente e capaz de compreender as dinâmicas da cidade se houver dados para processar e muitos desses dados são coletados diretamente com os moradores da cidade. A democracia dentro da cidade e o direito de todos os cidadãos de serem ouvidos são características fundamentais para que o ciclo da tecnologia inteligente se complete sem aparas. É ponto chave impedir a segregação da cidade, evitando a participação de apenas uma parcela dos habitantes e/ou atores diretamente envolvidos com o processo, mas sim atrair todas as classes sociais por meio de tecnologias fáceis, acessíveis e com respostas as suas demandas, aproximando a coleta de dados da realidade vivida pelo município.
Dessa forma, as autoras identificaram um consenso dentro do conceito de cidade inteligente para 2020, que vem sendo construído por meio de diversas publicações anteriores a esta data. Pode-se dizer que uma cidade inteligente é aquela feita para todas as pessoas, por meio da participação ativa dos munícipes, utilizando tecnologias que melhorem a qualidade de vida a partir de elementos da própria cidade, garantindo a inclusão social e o envolvimento do cidadão em todas as etapas do processo. Sem a participação de todas as classes sociais na criação, implementação e acompanhamento da cidade inteligente, não existirá, de fato, Inteligência na cidade.
notas
1
PAPA, Rocco; GALDERISI, Adriana; VIGO MAJELLO, Maria Cristina; SARETTA, Erika. Smart and resilient cities. A systemic approach for developing cross-sectoral strategies in the face of climate change. TeMA Journal of Land Use, Mobility and Environment, Napoles, v. 8, n.1, abr. 2015, p. 19–49 <https://bit.ly/3U39ud6>; EREMIA, Mircea; TOMA, Lucian; SANDULEAC, Mihai. The smart city concept in the 21st century. Procedia Engineering, v. 181, Romenia, 2017, p. 12–19 <https://bit.ly/3fgpqdl>; ISMAGILOVA, Elvira; HUGHES, L; DWIVEDI, Y. K; RAMAN, K. R. Smart cities: Advances in research—An information systems perspective. International Journal of Information Management, n. 47, University of Bradford, 2019, p. 88–100 <https://bit.ly/3Dmo6xK>.
2
MAHIZHNAN, Arun. Smart cities: the Singapore case. Cities, v.16, n. 1, Grã-Betanha, 1999, p. 13–18 <https://bit.ly/3fcr2Ff>.
3
WEISS, Marcos Cesar; BERNARDES, Roberto Carlos; CONSONI, Flavia Luciane. Cidades inteligentes como nova prática para o gerenciamento dos serviços e infraestruturas urbanos: a experiência da cidade de Porto Alegre. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 7, n. 3, set./dez. 2015, p. 310–324 <https://bit.ly/3gTxpO5>.
4
AIETA, Vania Siciliano. Cidade inteligentes e o pacto dos prefeitos: uma proposta de inclusão dos cidadãos rumo à ideia de" cidade humana". Revista de Direito da Cidade, v. 8, n. 4, nov. 2016, p. 1622-1643 <https://bit.ly/3Uc9gRb>.
5
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, Câmara dos Deputados, 10 jun. 2001 <https://bit.ly/3DraWPN>.
6
Oxford Languages <https://bit.ly/3sHcaBP>.
7
DA SILVA, Alexsandro Amarante. Cidade inteligente e cidadãos participativos–uma proposta de transformação contínua da cidade através da ação colaborativa dos cidadãos. Revista Tecnologia, v. 39, n. 1, 2018, p. 1–17.
8
Idem, ibidem.
9
Idem, ibidem.
10
GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das múltiplas inteligências. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.
11
MATIAS, Marcia Athayde. Relação entre características empreendedoras e múltiplas inteligências: um estudo com contadores de Minas Gerais. Tese de doutorado. São Paulo, FEA USP, 2010.
12
LEMOS, André Luiz Martins; ARAÚJO, Nayra Veras de. Cidadão sensor e cidade inteligente: análise dos aplicativos móveis da Bahia. Revista Famecos, v. 25, n. 3, ago. 2018 <https://bit.ly/3UgT5Ch>.
13
CUNHA, Maria Alexandra; PRZEYBILOVICZ, Erico; MACAYA, Javiera Fernanda Medina; BURGOS, Fernando. Smart Cities: transformação digital de cidades. Coleção FGV Eaesp — Gvceapg — Livros. São Paulo, Programa Gestão Pública e Cidadania — PGPC, 2016 <https://bit.ly/2WitgEk>.
14
Idem, ibidem.
15
BRITO, Fausto; SOUZA, Joseane de. Expansão urbana nas grandes metrópoles o significado das migrações intrametropolitanas e da mobilidade pendular na reprodução da pobreza. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 4, out./dez, 2005, p. 48–63 <https://bit.ly/3TKYlhv>.
16
BOUSKELA, Maurício; CASSEB, Márcia; BASSI, SSilvia; DE LUCCA, Cristina; FACCHINA, Marcelo. Caminho para as Smart Cities. Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2016, p. 148 <https://bit.ly/3h2mge0>.
17
BRITO, Fausto; SOUZA, Joseane de. Op. cit.
18
Idem, ibidem.
19
MARINO, Pedro de Barros Leal Pinheiro; SOARES, Rômulo Alves; LUCA, Márcia Martins Mendes de; VASCONCELOS, Alessandra Carvalho de. Indicadores de governança mundial e sua relação com os indicadores socioeconômicos dos países do Brics. Revista de Administração Pública, v. 50, n. 5, Rio de Janeiro, jul. 2016, p. 721–744 <https://bit.ly/3WjIhor>.
20
LEFEBVRE, Henri. La production de l'espace. 4ª edição, Paris, Editions Anthropos 2000, p. 516.
21
RIZZON, Fernanda; BERTELLI, Janine; MATTE, Juliana; GRAEBIN Rosana Elisabete; MACKE, Janaina. Smart City: um conceito em construção. Revista Metropolitana de Sustentabilidade, v. 7, n. 3, dez. 2017, p. 123–142 <https://bit.ly/3DrKQMG>.
22
LINDSKOG, Helena. Smart communities initiatives. Proceedings of the 3rd ISOneWorld Conference, v. 16, Las Vegas, abr. 2004, p. 2 <https://bit.ly/3TTZSSp>.
23
ARAFAH, Yunita; WINARSO, Haryo. Redefining smart city concept with resilience approach. IOP conference series. Earth and Environmental Science, v. 70, n. 1, Malang, mar. 2017, p. 012065 <https://bit.ly/3DO1s2M>.
24
MAHIZHNAN, Arun. Op. cit.
25
PAPA, Rocco; GALDERISI, Adriana; VIGO MAJELLO, Maria Cristina; SARETTA, Erika. Op. cit.
26
GIFFINGER, Rudolf; FERTNER, Christian; KRAMAR, Hans; KALASEK, Robert; PICHLER-MILANOVIĆ, Natasa; MEIJERS, Evert. Smart Cities: Ranking of European Medium-Sized Cities. Centre of Regional Science (SRF), n. 1, Vienna, Vienna University of Technology, out. 2007 <https://bit.ly/3FyyZz8>.
27
ARAFAH, Yunita; WINARSO, Haryo. Op. cit.
28
ISMAGILOVA, Elvira; HUGHES, Laurie; DWIVEDI, Yogesh Kumar; RAMAN, K. R. Op. cit.
29
GIFFINGER, Rudolf; FERTNER, Christian; KRAMAR, Hans; KALASEK, Robert; PICHLER-MILANOVIĆ, Natasa; MEIJERS, Evert. Op. cit.
30
PAPA, Rocco; GALDERISI, Adriana; VIGO MAJELLO, Maria Cristina; SARETTA, Erika. Op. cit.
31
SCHUURMAN, Dimitri; BACCARNE, Bastiaan; DE MAREZ, Lieven; MECHANT, Peter. Smart ideas for smart cities: Investigating crowdsourcing for generating and selecting ideas for ICT innovation in a city context. Journal of Theoretical and Applied Electronic Commerce Research, v. 7, n. 3, Talca, dez. 2012, p. 49–62 <https://bit.ly/3TSE7CB>.
32
CARAGLIU, Andrea; DEL BO, Chiara; NIJKAMP, Peter. Smart cities in Europe. Journal of Urban Technology, v. 18, n. 2, ago. 2011, p. 65–82, ago. 2011 <https://bit.ly/2sPz1vB>.
33
PRAMANIK, Md Ileas; LAU, Raymond. Y. K.; DEMIRKAN, Haluk; AZAD, Md Abul Kalam. Smart health: Big data enabled health paradigm within smart cities. Expert Systems with Applications, n. 87, , jun. 2017, p. 370–383 <https://bit.ly/3Doutk6>.
34
DA SILVA, Alexsandro Amarante. Op. cit.
35
Idem, ibidem.
36
CUNHA, Maria Alexandra; PRZEYBILOVICZ, Erico; MACAYA, Javiera Fernanda Medina; BURGOS, Fernando. Op. cit.
37
MARICATO, Erminia; COLOSSO, Paolo; COMARÚ, Francisco de Assis. Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública. Saúde em Debate, v. 42, 2018, p. 199-211.
38
Idem, ibidem.
39
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Op. cit.
40
ROLNICK, Raquel. Smart cities, possibilidades e pesadelos para a democracia. ArchDaily, São Paulo, ago. 2018 <https://bit.ly/3zw2pdf>.
41
ROLNICK, Raquel. Op. cit.
42
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável. ONU, Brasília, 2021 <https://bit.ly/3U9oBlq>.
43
Idem, ibidem.
44
OVERSTREET, Kaley. Building a City from Scratch: The Story of Songdo, Korea. ArchDaily, Nova York, jun. 2021 <https://bit.ly/3zzWeoD>.
45
CAINE, Tyler. Por dentro da Cidade de Masdar. ArchDaily, São Paulo, jul. 2014 <https://bit.ly/3h2qnXu>.
46
LEVY, Wilson; LEITE, Carlos . Interação, democracia e governança urbanas. Um ensaio sobre o conceito de cidades inteligentes. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 237.01, Vitruvius, fev. 2020 <https://bit.ly/3zvlah7>.
47
OVERSTREET, Kaley. Op. cit.
sobre os autores
Ana Carolina Teichmann é arquiteta e urbanista (Univali, 2016), especialista em arquitetura sustentável (PUC PR, 2019) e mestra em Ciência e Tecnologia Ambiental (Univali, 2022).
Ariana Cipriani de Sá é engenheira civil (Univali, 2018), especialista em estruturas e fundações (Ipog, 2020) e mestra em Ciência e Tecnologia Ambiental (Univali, 2022). Secretária da CE de Revisão da ABNT NBR 14931 (2017–2021), suplente (Acii, 2021) no colégio de delegados de Revisão do Plano Diretor de Itajaí SC e secretária do Núcleo de Jovens Empreendedores de Itajaí SC (Acii, 2020–2021).
Silvia Santos é engenheira civil (UFSC, 1994) e doutora em Engenharia Civil (UFSC, 2006). Professora titular do curso de Engenharia Civil (Univali, 2000_), ocupou a coordenação do curso (2006–2012); é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia Ambiental (Univali, 2019_), na área de cidades sustentáveis; e consultora junto à Eletrosul — Centrais Elétricas S.A (2010–2013).