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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Justapondo conceitos de Francesco Careri, Marc Augé e Eric Landowski sobre a percepção da vida e as coisas do mundo, trazemos um percurso entre estações na Grande Buenos Aires, para refletir sobre a apreensão de sentidos.

english
Juxtaposing concepts from Francesco Careri, Marc Augé and Eric Landowski about the perception of life and things in the world, we bring a journey between stations in Greater Buenos Aires, to reflect on the apprehension of meanings.

español
Yuxtaponiendo conceptos de Francesco Careri, Marc Augé y Eric Landowski sobre la percepción de la vida y las cosas del mundo, traemos un viaje entre estaciones del Gran Buenos Aires, para reflexionar sobre la aprehensión de significados.


how to quote

NUNES, Sandra Conceição; OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho e. Percurso de Retiro a Tigre. Experiências sensíveis em um não-lugar? Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 269.03, Vitruvius, out. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.269/8626>.

Inicialmente...

A proposta de examinar um percurso qualquer, mesmo embasados em autores que tenham estudos relacionados ao tema, aparenta nos colocar diante de um paradoxo: se um não-lugar, para Augé (1935_), não é passível de interações que façam sentido, como não apreendê-lo, o sentido, na perspectiva de Careri (1966_), que nos desafia a buscar os detalhes, as minúcias dos espaços urbanos, o quase invisível ao menos para a maioria, para então, a partir desses fragmentos da cidade, viver experiências estéticas? Viver experiências estéticas sem sentido? Estas teorias seriam irreconciliáveis?

Por seu turno, Landowski (1946_) nos traz uma semiótica renovada para se afastar das amarras estruturalistas e, ao afirmar que há cinquenta anos a disciplina estava estagnada (1), propõe uma outra acepção de semiótica, destituída de normalizações, mais sensível, mais orgânica, pulsante, dinâmica, enfim, mais viva, em movimento, em processo, adequada para acompanhar percursos, uma semiótica das situações e dos sentidos. Como tudo isto pode ser articulado — ou não — com as proposições dos demais autores? Nas palavras iniciais, acreditamos ter deixado algumas pistas.

Poderíamos dizer que existem dois estilos principais de viajantes — e, talvez, de indivíduo: os que se prendem a uma organização comedida, a um planejamento pré-concebido, sem surpresas desagradáveis, e assim se priva das agradáveis; e os que apreciam se aventurar, que vêm na quebra da continuidade do cotidiano uma oportunidade para encontrar prazer, emoções, aventuras, sentidos para a vida. Os primeiros, viajam em excursões; os últimos, com mochilas.

O viajante que gosta de descobrir lugares desconhecidos tem por intuito lançar-se no inesperado, seja em experiências eufóricas, positivas, ou disfóricas, isto é, negativas. Este é o sujeito do “regime de acidente”, usando a terminologia proposta por Eric Landowski (2).

Uns caminham pela cidade por seus pontos turísticos, pelos já demais conhecidos por visitantes anteriores ou por informativos, livros, internet; os outros, buscam lugares não evidentes para serem visitados, por serem mesmo desconhecidos, ou não divulgados, ou ainda não valorizados pela indústria de viagens, os que não constam dos guias turísticos. Os primeiros, buscam como que conferir a existência de ícones recomendados por entidades credenciadas, ou até mesmo por amigos mais viajados; os aventureiros, buscam brechas escondidas que se abrem apenas ao olhar ávido por encontrar o desconhecido e a sentir o que esses lugares têm a dizer. Apreciam a privacidade da descoberta, a interação com o acidente.

Usando a teoria de Landowski (3), os primeiros se encontram no regime de interação e de sentido da programação, onde não há surpresas e onde os processos de significação são restritos, porque era o esperado, enquanto que os segundos se expõem ao regime de interação e de sentidos do acidente, onde o inusitado marca, ensina e se torna inesquecível. São modos diferentes de se colocar diante de um percurso em uma estrada, em um voo, em uma estrada de ferro ou em uma trilha. Ou na vida. Talvez até, na escolha do modo de transitar. São modos de andar pelos muitos caminhos que nos são apresentados no cotidiano ou na trajetória de um ser humano pelo mundo.

Não quer dizer que só o desconhecido possa suscitar surpresas. Acidentes de sentido podem se apresentar revisitando locais que, pela banalidade do transitar diário, não tenha significado nada mais do que um mero corredor de passagem para chegar a algum lugar. Ou um não-lugar.

Errâncias

Imbuído da proposta de Francisco Careri, conforme proposto no seu trabalho intitulado Walkscapes: o caminhar como prática estética (4), esses não-lugares podem ser também prenhes de significações e sentidos, mais especificamente, atos de construção de práticas estéticas. São trajetos que possibilitam ao indivíduo não apenas descobrir, mas mesmo revisitar lugares da própria cidade que habita, tão conhecida, mas, com um olhar atento aos detalhes, busca perceber o que não havia sido visto antes e surpreende-se.

Isto pode leva-lo não apenas a constatar as mudanças que se operam nas camadas sobrepostas da urbe, mas criar novos mundos, como o fez Marco Polo, o célebre viajante e mercador veneziano, em cujos relatos de viagens do século 12 se observa ter acrescentado ficcionalmente novas paisagens e lugares inexistentes. E que foi a marca de outro ancestral da errância sensível, a figura do flâneur criada pelo escrito francês Baudelaire no século 19, que além de caminhar, observava e imaginava situações sobre a urbe.

É possível percorrer lugares diferenciados, desde a área central muito movimentada de uma metrópole até seus arredores, campos, montanhas ou praias desertas, passando por caminhos nunca antes percorridos, para rever lugares conhecidos. Caminhar pela cidade ou pelos seus entornos é enfrentar os medos, medos particulares e medos sociais. Careri afirma que

“É preciso aprender a perder tempo, a não buscar o caminho mais curto, a deixar-se conduzir pelos eventos, a dirigir-se a estradas impraticáveis onde seja possível ‘topar’, talvez encalhar-se para falar com as pessoas que se encontram ou saber deter-se, esquecendo que se deve agir. Saber chegar ao caminhar não intencional, ao caminhar indeterminado” (5).

Isto não seria um perder tempo, como fala Careri, mas um ganhar, no tempo, significações e aprendizados, na interação sensível com pessoas e paisagens. Aí se percebe que a proposta de Careri pode ser articulada com o pensamento de Landowski, diferindo do fato de que Careri apõe seu foco sobre a percepção do acaso, por seu potencial como experiência estética; e Landowski, além da percepção, defende a ideia de que no acaso — ou no inesperado — é que se dão as experiências mais significantes, mais ricas em apreensão de sentidos, na medida da união com o outro, pessoa ou coisa, ajustando-se mutuamente. Trata-se da experiência estésica. Outra importante diferença, a qual, igualmente, não torna ambas as teorias incompatíveis, é o fato de que Careri delimita seus estudos sobre a experiência perceptiva às caminhadas, em sentido amplo, pelas cidades, ao passo que as experiências de interação pelos sentidos objeto das teorias semioticistas de Landowski são vistas por ele como inerentes a todas as interações vividas entre pessoas, entre elas e objetos, eventos, situações e, inclusive, o ambiente.

Embora não pretendendo fazer um histórico sobre as experiências estéticas e estésicas nas práticas de percursos pela cidade ou fora dela, relacionando-as ao estudo da visualidade no contexto da arte ou melhor, considerando-as, em si mesmas, ações artísticas, é preciso destacar ainda alguns registros de intervenções realizadas anteriormente à contemporaneidade. Os dadaístas, pautando-se pela ideia de uma antiarte, organizavam as visitas-excursões pelos lugares comuns de Paris nos anos 1920, descobrindo nesse ato um componente onírico e surreal que foi definido por eles como uma “deambulação, uma escrita automática no espaço real, capaz de revelar as zonas inconscientes e o suprimido da cidade” (6).

Existiram caminhadas objetivando uma intervenção direta no espaço natural realizadas pelos artistas da Land Art da década de 1960 que, aos poucos, permitiram perceber que os percursos deixavam de materializar objetos e tornavam-se potência enquanto ação. Em 1967, Richard Long realiza A Line Made By Walking, ao caminhar pelo campo deixando seu percurso marcado no terreno, uma linha que materializa a ausência do objeto escultórico e marca o caminhar como forma de arte autônoma. Robert Smithson, no mesmo ano, em A Tour of the Monuments of Passaic, apresenta o relato de sua viagem à cidade onde nasceu, Passaic no Estado de Nova Jersey, e descreve ora as imagens impressas no jornal comprado antes do início da viagem e o que observa pela janela. Careri salienta sobre essa obra que

“É a primeira viagem pelos espaços vazios da periferia contemporânea. A viagem entre os novos monumentos leva Smithson a fazer algumas considerações: a relação entre arte e natureza mudou, a natureza mudou, a paisagem contemporânea produz os seus próprios lugares autonomamente, no suprimento acham-se os futuros abandonados produzidos pela entropia” (7).

No contexto brasileiro, na década de 1960, Hélio Oiticica em suas errâncias pelo espaço urbano do Rio de Janeiro circulava de ônibus para verificar seu destino, indo até os pontos finais, mas também andava a pé pela cidade, subindo alguns morros e vagando durante a noite. Ele ia ao encontro dos lugares marginais, que considerava plenos de possibilidades, ou seja, de significados e sentidos, apenas à espera de serem descobertos.

O não-lugar

Para sentir, em ato, o que propõem as teorias de Francesco Carer (8), Marc Augé (9), Louise Ganz (10), Paola Berenstein Jacques (11), Nelson Brissac Peixoto (12), dentre outros, foram realizadas caminhadas em Florianópolis, Santa Catarina, como parte de uma disciplina do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina — Udesc, ministrada pela professora e artista visual Sandra Fávero. O centro urbano foi explorado, bem como praias e trilhas. Foram experiências de tal modo surpreendentes que despertaram o desejo de realizá-las em uma cidade desconhecida, como forma de intervenção urbana como prática estética, conforme Careri (13) convida, no título de sua obra, na qual ele desenvolve suas proposições.

A cidade de Buenos Aires, na Argentina, foi a escolhida. Estar em uma cidade como viajante já nos coloca em situação diferente de quem faz o percurso em uma cidade conhecida, o que poderíamos considerar um olhar estrangeiro. Diversos percursos foram realizados pela cidade durante três dias, quase todos caminhando por bairros da cidade em diferentes horários. Um deles foi o escolhido para ser relatado neste ensaio, qual seja, o percurso entre Retiro e Tigre. Destaca-se que este trajeto, ao contrário dos demais, não foi feito a pé, pois se trata de um deslocamento de trem pela linha Retiro a Tigre (Línea Mitre), ou seja, um percurso entre duas estações de transporte público, a Estação Retiro, na área central de Buenos Aires, e a Estação Tigre, localizada em uma pequena cidade homônima.

Os 33 quilômetros de distância que separam as duas cidades foram percorridos em aproximadamente cinquenta minutos, nos quais se captaram as imagens aqui apresentadas e outras retidas na memória. Para estar ali, foi necessário fazer um contrato, algo concreto, como destaca Augè (14), materializado na passagem adquirida previamente.

A Estação Retiro, ponto inicial do percurso, era formada pelo conjunto de duas construções bem distintas — uma que recebia os passageiros do metrô (subterrâneo) e a outra do trem de superfície. A arquitetura do local causou o primeiro acidente no percurso (regime de interação e de sentido do acidente), pois era evidente o contraste entre as edificações — uma clara, imponente, frenética, com a predominância de superfícies brilhantes e lisas; outra mais escura, evidenciando o cimento e o ferro, aparentemente mais tranquila — o tempo ali parecia passar mais lentamente, talvez pelo fato de não ter tanta frequência nas partidas e chegadas de trens. Estar naquele local, mesmo que por poucos minutos, permitiu perceber a ação dos sujeitos em uma estação, ou seja, em deslocamento, algo muitas vezes feito mecanicamente, sem dar tempo para perceber o ambiente como um todo (regime de interação e de sentido da programação).

Estação Retiro em Buenos Aires, acesso aos trens de superfície
Foto das autoras

Ainda que se trate de duas cidades turísticas, a intervenção artística, ou a prática estética, de acordo com Careri, não consistia em perceber as duas cidades em si, mas o que estava no trajeto entre as duas estações, esse entre lugares, os espaços intersticiais, à margem e periféricos, aquilo que não consta do que os guias turísticos propõem conhecer aos visitantes das cidades. Era preciso sair dos espaços praticados de Michel de Certeau e perceber o não-lugar de Marc Augé. De acordo com Michel Certeau (15), o espaço praticado é aquele no qual os sujeitos interferem diretamente em um dado lugar, animando os seus elementos e dando sentido a eles, “assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres”, diferentemente do não-lugar de Augé, que é sem identidade, pois se alguém passa por um shopping center, um aeroporto, ou um terminal ferroviário ou rodoviário, se não se ativer a onde está, pode se imaginar em qualquer cidade ou país.

Com a urbanidade do final do século 20, período em que Marc Augé denomina como supermodernidade, identificam-se espaços na cidade desprovidos de história e de identidade, os quais ele define como não-lugares. Embora considere as proposições de Michel de Certeau sobre espaço e lugar para tecer sua teoria, o lugar de Augé não é o de Certeau, uma vez que ele o percebe como

“O lugar de sentido inscrito e simbolizado, o lugar antropológico. Naturalmente, é preciso que esse sentido seja posto em ação, que o lugar se anime e que os percursos se efetuem, e nada proíbe falar de espaço para descrever esse movimento. Porém, esse não é nosso propósito: incluímos na noção de lugar antropológico a possibilidade dos percursos que nele se efetuam, dos discursos que nele se pronunciam e da linguagem que o caracteriza” (16).

Assim, os não-lugares são espaços concretos, mas invisíveis como marco identitário, social e histórico, gerando relações de isolamento, ou seja, uma barreira para a existência de interações, incluindo-se no rol desse tipo de espaço outros exemplos além dos já citados, como os hipermercados, estações de metrô, praças secas, que são aquelas modernas e contemporâneas onde há espaços vazios multifuncionais, estacionamentos subterrâneos, terminais bancários, vias expressas, resorts e hotéis de cadeias internacionais, entre outros. São espaços de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. Apesar de serem espaços diferentes, possuem algumas características comuns, como é o caso da existência de uma relação contratual, materializada no bilhete de um trem, na passagem aérea, ou no ticket de estacionamento, por exemplo. E a transitoriedade, pois sempre há pessoas, mas não são as mesmas pessoas. Embora perceba a coexistência e diferenças, Augé não contrapõe qualitativamente o lugar ao não-lugar.

Vista do trem entre a Estação Retiro e a Estação Tigre
Foto das autoras

Vista do trem entre a Estação Retiro e a Estação Tigre
Foto das autoras

Vista do trem entre a Estação Retiro e a Estação Tigre
Foto das autoras

Vista do trem entre a Estação Retiro e a Estação Tigre
Foto das autoras

Uma experiência

Estar em um trem é perceber que aquilo que é imóvel adquire movimento, criando uma miscelânea de imagens a partir de suas janelas. Olhar traiçoeiro! Casas e prédios de tempos distintos, construções abandonadas que trazem a memória impregnada em suas formas, vegetação de portes diversos, pessoas, muros pichados, automóveis, máquinas, tudo se mistura momentaneamente ao olhar. O percurso, aparentemente retilíneo, mascara a sinuosidade do trajeto, uma vez que as linhas aparentemente retas do trilho não deixam perceber os diversos contornos que o trem faz na paisagem percorrida. Não é permitido o toque, sentir os cheiros, ouvir as vozes do exterior, só o puro exercício da visão do que está do outro lado do vidro — o lado de fora.

A linha de um trem, ou de outro transporte público, já tem seu trajeto definido, ou seja, uma sucessão de pontos ou paradas, que possibilitam a vivência do que seja uma linha gráfica, pois eles também fazem seu desenho diário na superfície da cidade. Cabe ao passageiro optar em descer em uma das paradas determinadas e continuar seu percurso até seu local efetivamente de destino, ou rumo ao desconhecido, pois as estações são pontos intermediários. Diferentemente das caminhadas, que permitem a escolha da trajetória — por aqui e não por lá, em uma linha de trem as mudanças de percursos passam por suas estações.

As duas estações estabelecidas para a ação, Retiro e Tigre, ficavam nos limites da linha que passava pelas estações Lisandro de la Torre, Belgrano C, Núñez, Rivadavia, Vicente López, Olivos, La Lucila, Martínez, Acassuso, San Isidro, Beccar, Victoria, Virreyes, San Fernando e Carupá, ou seja, estações de saída e chegada, que são o ponto inicial e final da viagem, ou vice-versa, dependendo do sentido do trajeto.

Itinerário da linha Retiro-Tigre, interior do trem
Foto das autoras

Apesar de os nomes próprios que os lugares receberam, Certeau entende que consistam em características questionáveis, devido à ausência da identidade do lugar propriamente dito, uma vez que “esses nomes criam um não-lugar nos lugares: mudam-nos em passagens” (17). Os nomes dados aos logradouros públicos, ruas e praças, principalmente, nos mais diversos países, podem se referir a tradicionais designações dos locais mas, ao sabor das mutações políticas, podem ter seus nomes trocados para os de supostos heróis que, muitas vezes, são líderes impostos, sem quaisquer relações com a história do local. É sabido que, quando se trata de nomes de estações de metrôs ou trens, eles recebem o nome do logradouro mais próximo, para situar o usuário, reiterando esses nomes, reforçando o caráter de não-lugar não apenas à estação, mas ao próprio lugar.

Os nomes das referências urbanas podem impulsionar movimentos, trajetos, pois orientam os transeuntes e são assim capazes de modificar os percursos anteriormente definidos. Entretanto, esses nomes são usados como informação objetiva e não como uma apropriação da identidade do lugar. Durante o trajeto Retiro-Tigre, embora tenham despertado curiosidade, os nomes das estações consistiram em apenas uma sucessão de nomes, pois não foi permitido perceber a relação deles com a estação e o entorno dela, evidenciando o Regime de Programação.

A atenção à paisagem era frequentemente interrompida pelos sons que vinham de seu interior, falas dos passageiros, artistas de rua fazendo suas performances, dos que pediam algum tipo de ajuda financeira ou dos vendedores dos mais diversos produtos — meias, alimentos, relógios, entre outros. Trata-se de experiências de regime de interação e de sentido da manipulação, embora essas tentativas dos enunciadores nem sempre tenham sido bem-sucedidas — alguns sujeitos fingiam não perceber, outros conversavam rapidamente, mas não compravam ou contribuíam de forma espontânea aos artistas ou pedintes.

Na rotina dos que fazem esse deslocamento diariamente, porque trabalham em Buenos Aires mas moram na periferia, alguns podem não perceber as mudanças na paisagem, porém era evidente que ela estava em transformação. O cotidiano dessas pessoas faz do percurso momentos do regime de programação, de acordo com Landowski, pois os acidentes que o roteiro oferece não são percebidos, dada a anestesia que os assola. Eles não percebem, por exemplo, muitos trechos onde existiam trabalhadores fazendo algum tipo de adequação no entorno da linha férrea, para ajustar as marcas deixadas por ela.

Mesmo para um passageiro disponível às experiências, a velocidade do trem não deixava perceber as camadas da paisagem e o que se via se tornava ficções entre olhar e paisagem. É importante destacar o Augé diz acerca da paisagem que o viajante vê:

“Ele nunca tem senão visões parciais, ‘instantâneos’, somados confusamente em sua memória e, literalmente, recomposto no relato que ele faz delas ou no encadeamento dos slides com os quais, na volta, ele impõe o comentário a seu círculo” (18).

Tudo o que foi visto durante o trajeto de trem não foram escolhidos, pois foi contratado a priori quando se adquiriu a passagem. No percurso Retiro-Tigre não existiu uma relação mais direta com os lugares vistos. É por isso que Augé (19) considera o espaço do viajante como o arquétipo do não-lugar. Entretanto, é preciso saber ver, compreender tais aspectos ao partir para a viagem. Foi o que foi feito. E o que se viu? Cortes e marcas profundas de uma sociedade que invade e crava suas marcas. Buscou-se transitar pelo não-lugar para ver que imagens seriam encontradas, imagens em sentido ampliado — visuais, sonoras, entre outras. Camadas, sobreposição, junção e disjunção, continuidade e descontinuidade, sentidos: uma realidade que se manifesta na experiência da solidão da maioria dos passageiros.

Estação Núñez com seus passageiros solitários, vistos do trem
Foto das autorasFoto das autoras

Augé (20) identifica duas realidades que se complementam, mas não se confundem, no não-lugar. Uma refere-se à constituição desses locais, pela relação com sua finalidade — transportar, comercializar, transitar; a outra é a relação dos sujeitos com tais locais, que o autor considera como uma “tensão solitária”. O não-lugar é um espaço de mediação, consigo mesmo e com os sujeitos que o utilizam, segundo Augé. Neste aspecto pode haver um paralelo com as interações conforme propostas por Landowski, pois para ele a experiência que “faz sentido” prescinde de mediação. Mas seria possível a interação direta com o não-lugar? O não-lugar é um espaço sem sentido? Considerando o não-lugar como segmento de uma Programação, as teorias não são incompatíveis pois, para Landowski, a Programação é o regime da insignificância.

Percebe-se ainda que os não-lugares estão carregados de textos verbais e visuais que indicam como utilizá-los; percebemos as sinalizações, indicações de proibições, que geralmente se dão não apenas através de textos, mas também de ícones. Isso é visto, por exemplo, nas placas indicativas de “proibido fumar”, placas de trânsito, sinalização dentro do trem indicando quais as próximas estações, ou quando aparece as frases impessoais como “obrigado pela visita” ou “boa viagem”, além de placas indicativas das agências financiadoras das obras, construção ou reforma, ao longo da rota. Também se percebe uma diversidade de informações publicitárias, ou seja, mesmo no curto espaço de tempo de presença programado para o sujeito permanecer nesses espaços, existe uma diversidade de convites ao consumo de bens, principalmente.

Os dizeres das diversas placas e toda a programação visual dos não-lugares são indispensáveis, uma vez que sempre existe uma condição para seu uso, supostamente neutra, ao menos impessoal, pois destina-se a qualquer segmento de público. Em um aeroporto, por exemplo, é comum encontrar pessoas que usam os trajes característicos das suas etnias, às vezes de diferentes etnias, e todos estão lá obedecendo ao mesmo fluxo, comandados pelos letreiros e painéis indicativos. Muitas indicações são icônicas, como a identificação de banheiros, buscando incluir mesmo analfabetos, pessoas cujo idioma não está contemplado na placa ou possibilitar uma leitura mais rápida. E por mais que seja considerado um não-lugar, e por mais padronizados até internacionalmente, tais espaços estão impregnados de mensagens e, consequentemente, de sentidos.

No transporte coletivo como em um trem, as relações diretas entre as pessoas desaparecem, cada qual mergulhando em seus pensamentos, cochilando, lendo um livro, ou ouvindo música com fones de ouvido. Mas o sujeito disponível para vivenciar o inesperado, volta-se à paisagem exterior e percebe que a linha do trem é contornada pelas fachadas das edificações, muros, grades, ruas e por uma escassa vegetação. Percebe-se, ao atravessar os lugares cortados pela estrada de ferro, a intimidade cotidiana daqueles que vivem no entorno da linha férrea: é a roupa no varal, uma aparição na varanda da casa, o lavar a roupa, o parar calmamente para degustar o café da manhã ou o chimarrão, o sentar-se na porta de casa, o cultivo das plantas escolhidas para compor o jardim suspenso do apartamento, narrativas que mostram um pouco sobre os que ali vivem. A vida privada se torna pública. Quais seriam os limites entre público e privado no caso do espaço urbano? Querendo ou não, por meio da exposição de formas, figuras ou pela existência de elementos bi ou tridimensionais nas fachadas e nos espaços externos, ou mesmo nas janelas, as propriedades privadas se tornam públicas. Em alguns lugares é comum encontrar objetos nas janelas ou sacadas que falam de seus moradores, mas falam também da cidade e, até mesmo, do país.

Vistas do trem entre a Estação Retiro e a Estação Tigre
Foto das autoras

Vistas do trem entre a Estação Retiro e a Estação Tigre
Foto das autoras

A velocidade do trem se alternava com frequência, indicando, quando era reduzida, que em breve iria adentrar áreas mais povoadas ou que uma estação se aproximava. Também se via que o trajeto daquelas pessoas que precisavam cruzar a linha férrea era interrompido por alguns minutos pela passagem do trem. É nesse momento que podemos ser observados, ou não, gerando empatia, ou não; e é onde surge a oportunidade da interação com alguém, passageiro, diretamente, ou transeunte através do vidro, a partir apenas do gestual, como um sorriso.

A parada em cada estação, quando os passageiros passam pelos corredores, saindo ou entrando, é o momento propício para parar e apreciar o entorno pela janela — ou para olhar calmamente para os aplicativos dos dispositivos móveis de telefonia, enquanto o trem interrompe momentaneamente seu trajeto. São dois modos de usar o tempo e o espaço: afastando-se da realidade, rumo a outros lugares, refugiando-se na virtualidade; ou buscando o que há escondido na paisagem, o “indeterminado” de que fala Careri, ou o “inesperado” de Landowski, acerando-se do sensível. A cidade habitada é caracterizada por uma espécie de “cegueira” naqueles que a praticam, nos alerta Certeau (21), análogo ao estado que Landowski considera “anestesia”.

Quando o trem para na estação, com seus nomes próprios cravados em placas, também se recebe uma informação sonora e visual no seu interior e é o momento de tentar descobrir alguma marca característica daquela estação, talvez alguma relação entre seu nome e o entorno — tentativa sem sucesso. Sabe-se apenas que a estação final se chama Tigre, a cidade se chama Tigre e fica à beira do Rio Tigre.

Retornando ao trem, que retoma o movimento, vê-se muros, paredes e outras superfícies repletas de pichações e grafites. A arte das ruas encontra ali um locus para se materializar e fazer circular formas, códigos e, consequentemente, sentidos, ao mesmo tempo em que assinalam uma postura política, questionando a propriedade desses locais, o que, de certo modo, também pode questionar o não-lugar, pois essas imagens dotam-no de uma identidade. Buscam chamar a atenção dos que estão no trem, intenção nem sempre bem-sucedida, pois a velocidade do trem, bem como a fuga para o sono, a leitura, ou a música dificultam a percepção dessa presença visual característica das periferias que buscam, exatamente, uma identidade.

Algumas estações tinham um fluxo de passageiros maior, outras nem tanto; poucas tinham algum tipo de comércio; existiam aquelas que as pessoas continuavam sentadas à espera do próximo trem; e outras que após o trem partir ficavam completamente vazias. Aqueles que esperavam raramente trocavam palavras entre si, cada um em seu espaço — ou fora dele. São diversas camadas para se pensar acerca da vida urbana.

Estabelecimento comercial na Estação Victoria
Foto das autoras

Ao realizar o percurso, um dos fatos que mais chamou a atenção foi a falta de relação entre as pessoas. O viajante dificilmente consegue uma informação sem buscar os sinais em algum ponto, nos diferentes textos verbais e visuais que se manifestam no trajeto ou dentro do trem. As pessoas se isolam em seus mundos. Muitos daqueles que estão no interior do trem usam fones e constroem muros imaginários ao seu redor; quem ousaria ultrapassar essa barreira? O que se vê é uma mediação que não é feita por sujeitos, mas sim por textos em seu sentido ampliado, marca dos não-lugares. Acerca disso, Marc Augé ressalta:

“O único rosto que se esboça, a única voz que toma corpo, no diálogo silencioso que ele prossegue com a paisagem-texto que se dirige a ele como aos outros, são os seus — rosto e voz de uma solidão ainda mais desconcertante porque evoca milhões de outras. O passageiro dos não-lugares só encontra sua identidade no controle da alfândega, no pedágio ou na caixa registradora. Esperando, obedece ao mesmo código que os outros, registra as mesmas mensagens, responde as mesmas solicitações. O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude” (22).

A principal característica do não-lugar é a de ser um local de passagem, pois é momentâneo para aqueles que transitam por ele, mas percebe-se a diferença de o que significam tais espaços catalogados como não-lugares para quem trabalha neles, pois para estes os não-lugares se tornam lugares, seu local de trabalho. Ou seja, no caso do trem e das estações, eles não são não-lugares para o maquinista e para os comerciantes que ali operam. Estar em um não-lugar, viajante, visitante ou passageiro, é saber que em breve se chegará ao lugar praticado — ao espaço; ao contrário, os trabalhadores estarão no dia seguinte, novamente, naquele lugar que, para ele, é fixo.

Estação Tigre
Foto das autoras

O que se vê, em um não-lugar, é sempre uma realidade momentânea, residual, matéria passível de construção ficcional. Foi o visto! As imagens registradas no percurso nada mais são do que fragmentos. As que foram escolhidas para serem apresentadas compõem uma bricolagem, e se articulam inclusive pela ausência de outras imagens, em uma relação de luz e escuridão, em que uma é tensionada pela ausência da outra. A experiência do não-lugar oferece questionamentos, pois o é fato que ele está cheio de sentidos. Mesmo estando no anonimato, solitário na multidão, o transeunte, embora passageiro, imprime no seu momento de ali transitar, sentidos, pois ele está com interação, mesmo sem a intencionalidade.

Os sinais indicam que Tigre é a próxima estação e é hora de sair, de assumir de volta a identidade e colocar os pés a caminhar. O que restou desse percurso?

Inicialmente foram reiteradas as muitas potencialidades de tal percurso como experiência(s) estética(s), estésica(s), ou seja, fonte de sentidos. Além disso, suscitou muitas indagações: o não-lugar o é per si, ou são os seus sentidos que não são percebidos por parte dos transeuntes que, simplesmente, passam? Assim, não são as pessoas que fazem dele um não-lugar? Há modos diferentes de interagir com os não-lugares? Um sujeito em regime de interação de programação não lhe atribuirá sentidos. Mas para aquela pessoa que viaja pela primeira vez, de avião ou de trem, teria a mesma relação com o aeroporto ou com a estação ferroviária? Muitas questões se abrem para discussão.

notas

1
LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom. Paris, Presses Universitaires de France/PUF, 2004, p. 1.

2
LANDOWSKI, Eric. Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa. Documentos do Centro de Pesquisas Sociossemióticas. São Paulo, Edições CPS, 2005; LANDOWSKI, Eric. Interações arriscadas. São Paulo, Estação das Letras e Cores/Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2014; LANDOWSKI, Eric. Com Greimas: interações semióticas. São Paulo, Estação das Letras e Cores/Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2017.

3
Idem, ibidem.

4
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo, Gustavo Gili, 2013.

5
Idem, ibidem, p. 171.

6
Idem, ibidem, p. 29.

7
Idem, ibidem, p. 30.

8
Idem, ibidem.

9
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus, 1994.

10
GANZ, Louise. Imaginários da terra: ensaios sobre a natureza e a arte na contemporaneidade. Rio de Janeiro, Quartet/Faperj, 2015.

11
JACQUES, Paola Berenstein. Experiência errática. ReDObRa, n. 9, ano 3, Salvador, 2012, p. 192–204.

12
PEIXOTO, Nelson Brissac. Mapear um mundo sem limites. In NOVAES, Adauto (org.). Muito além do espetáculo. São Paulo, Editora Senac, 2005, p. 276–297.

13
CARERI, Francesco. Op. cit.

14
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (op. cit.).

15
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 14ª edição. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 202.

16
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (op. cit.), p. 76–77.

17
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer (op. cit.), p. 156.

18
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (op. cit.), p. 80.

19
Idem, ibidem.

20
Idem, ibidem, p. 87–89.

21
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer (op. cit.).

22
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (op. cit.), p. 94.

sobre as autoras

Sandra Conceição Nunes é doutora (PPGAV Udesc) e atua desde 2013 como Coordenadora de Artes Visuais da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes/Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Juventude, na capital catarinense. Desde 2015, é membro da Comissão Municipal de Arte Pública de Florianópolis.

Sandra Regina Ramalho e Oliveira é professora e pesquisadora (Udesc), doutora em Comunicação e Semiótica (PUC SP) e realizou pós-doutorado na França, em Semiótica Visual. Publicou Imagem também se lê; Moda também é texto; Sentidos à mesa e Diante de uma imagem e organizou, em coautoria, dez outros livros. Atualmente é professora visitante na Universidade de Girona, Espanha.

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