O espaço em que se vive e onde se convive é um dos fatores que influencia e atua sobre o desenvolvimento da criança. Quando falamos de espaço urbano, a variedade de práticas pode ser vasta: desde crianças às quais o espaço público é negado, até aquelas em que o espaço público é a própria casa. Nessa perspectiva, adotar um modelo ou recortes mais ou menos genéricos, como a faixa etária ou a classe social, para se abordar a questão da infância na cidade compromete a construção de um panorama sobre a infância na cidade brasileira do século 21.
O presente artigo parte de uma construção teórica realizada numa pesquisa acadêmica em vistas de ampliar os horizontes da temática criança e cidade. Na nossa discussão sobre a cidade, numa perspectiva das infâncias, o conceito de lugar é essencial. A compreensão e o entrelaçar de tais conceitos — a cidade, as infâncias e o lugar — nos permitirão avançar no debate da problemática urbana a partir da criança. O objetivo principal deste artigo é defender a importância de pensar a cidade a partir da criança, sob a ótica da nova sociologia da infância, sendo este campo teórico considerado como categoria social estruturante e a criança enquanto agente social ativo. Também a partir da noção de lugar, que denota a qualificação conferida ao espaço a partir da prática do indivíduo.
As práticas do espaço pelas crianças na cidade podem ser múltiplas e variadas, tanto quanto são esses sujeitos e os contextos espaciais em que vivem. Por isso, alguns autores do campo da sociologia, como Manuel Jacinto Sarmento e Manuel Pinto (1), remetem ao termo infâncias nos seus estudos sobre a criança, admitindo as múltiplas realidades que produzem processos de desenvolvimento distintos e permitem diferentes experiências de cidade.
Como ponto de partida, consideramos a criança enquanto agente social ativo e criativo (2), e adotamos o entendimento da infância como categoria estrutural da sociedade (3), tanto quanto gênero, classes sociais e etnias. Com isso, compreende-se que a criança é capaz de assimilar a cultura da sociedade adulta, e que produz cultura entre os seus pares, a partir da reprodução interpretativa (4).
Desta maneira, as brincadeiras, as práticas sociais e expressões linguísticas utilizadas pelas crianças em determinado espaço, como culturas reproduzidas, poderão ser compreendidas com maior evidência nas próximas décadas, quando as crianças da atualidade protagonizarem papéis com voz e poder de decisão na sociedade. Entretanto, Sarmento e Pinto (5) afirmam que há realidades sociais protagonizadas pelas crianças, cabendo a nós demonstrar interesse em escutar e enxergar suas ações e intenções, para que possamos acessá-las. A partir desse ponto de vista, observamos que a criança não apenas representa o cidadão do futuro, mas sobretudo um agente ativo e criativo da sociedade no presente.
A opção por utilizar a abordagem da reprodução interpretativa se deu em vistas de embasar a construção teórica no entendimento da criança como sujeito com participação ativa e criativa na cidade. Apesar das inumeráveis conquistas teóricas e práticas que promovem melhorias na relação entre criança e cidade, as contribuições teóricas, por vezes, assumem posicionamentos contraditórios: pautados na valorização da criança ativa e cidadã, mas embasando o olhar em perspectivas adultocêntricas.
Acerca da relação com o espaço urbano, é possível afirmar que as infâncias vivenciadas nesse espaço são marcadas por uma série de fatores de insegurança, risco ou restrição, tendo em vista as desigualdades que marcam a distribuição de renda e de espaços no contexto brasileiro, além do elevado grau de segregação socioespacial observado em nossas médias e grandes cidades. Dados do Relatório Mundial das Cidades de 2022, publicado pela Organização das Nações Unidas — ONU, revelam que 68% da população mundial viverá em cidades até 2050. Contudo, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística —IBGE (6) revelam que apesar de 84% da população brasileira já viver em espaços urbanos, cerca de 47% não se sente segura em sua cidade. Ou seja, o aumento da população urbana muito pouco nos diz sobre como serão nossas cidades nas próximas décadas, menos ainda o que tais cidades irão oferecer às crianças e aos jovens.
Sabe-se, no entanto, que a prática social no espaço é fundamental para a criança. Segundo Jean Piaget (7), a criança vivencia um processo progressivo de socialização no estágio pré-operatório, entre os dois e os sete anos de idade, quando passa a dispor de maior autonomia. Nesse sentido, o espaço público assume um papel fundamental no que tange à relação criança-espaço urbano e sociedade. As estruturas e usos que caracterizam nossos espaços públicos, por sua vez, têm um grande protagonismo na construção da experiência urbana das crianças. Sem dúvida, isso se deve, como coloca Fernando Carrión (8), à importância que tem o espaço público na produção da cidade, como também na geração de integração social e de práticas de respeito ao outro. Além do que, segundo Fernanda Müller e Brasilmar Ferreira Nunes (9), “cada lugar ocupado no espaço social detém maiores ou menores possibilidades de se apropriar do espaço urbano, inclusive pelas crianças”.
Apesar de ser indiscutível o papel e a importância da dimensão lúdica para a prática do espaço pelo indivíduo, cada vez mais se intensifica um processo de espacialização seletiva, que consiste na oferta de espaços destinados à infância como sistemas fechados. Esse processo, decorrente da concepção da infância enquanto categoria social secundária, tem afastado as crianças, em diversos contextos socioespaciais, dos espaços públicos. Atrelado a um processo de negação da rua, entendida enquanto ambiente hostil e violento, tal afastamento reflete diretamente no modo como percebemos e nos apropriamos deles, relegando-os no inconsciente coletivo como malquistos e de menor função. Segundo Lúcia Leitão (10) esse processo de negação se dá em função de uma dicotomia enraizada na sociedade brasileira, entre o ambiente individual privado e o espaço coletivo público.
Em muitas das grandes cidades brasileiras, o processo de conformação do tecido urbano partiu da premissa de resguardar o espaço privado em detrimento do coletivo. Logo, uma consequência natural tem sido a ruptura (público-privado) e o desprezo pelo espaço público, desdobrando-se em uma série de problemáticas corriqueiras, como a crescente violência urbana, a mobilidade urbana deficitária e a ineficiente gestão do uso do solo. Ainda que de modos diferentes, tais problemáticas afetam diretamente a experiência cotidiana de crianças na cidade.
Por sua vez, Carrión (11)afirma que esse processo de negação e desprezo pelo espaço público confere à cidade uma perda da participação social, da tolerância e da alteridade, provocando e alimentando os seguintes problemas: fragmentação socioespacial, segmentação de grupos sociais distintos, dispersão do tecido urbano, insegurança social e privatização dos espaços públicos. Ao lançar olhares para as práticas individuais da criança no espaço em cidades brasileiras, podemos identificar a presença de todos esses problemas. A cidade do Recife, por exemplo, embora esteja na primeira etapa do Programa Cidades Amigas das Crianças, e já disponha de programas locais de saúde e educação como o Brinqueducar, o Chegando Junto e o Mãe Coruja (12), ainda está longe de oferecer uma experiência segura e acolhedora à criança, tanto nas áreas centrais, quanto nas periféricas.
Um estudo realizado pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento — ITDP na capital pernambucana, em 2018, demonstra uma percepção coletiva de violência urbana. Ao entrevistar grupos de mães com filhos na primeira infância (zero a seis anos), observou-se que “a rua é um espaço ‘proibido’ para as crianças. Quando não estão na creche ou escola, elas ficam confinadas dentro de casa, assistindo televisão ou jogando com o celular” (13). Ainda assim, a presença de espaços e equipamentos públicos de qualidade afeta positivamente o cotidiano das crianças e das mães que residem em bairros onde essa infraestrutura é ofertada, o que não é maioria entre as entrevistadas.
Outra pesquisa realizada no contexto da capital pernambucana destaca, entre classes mais abastadas, o transporte escolar privado como parte de um sistema de vigilância e controle em torno da criança e seus deslocamentos pelo espaço, repleto de restrições (14). Nesse sistema, a criança se desloca entre ambientes programados, condicionados e, por vezes, simulados para a infância: a escola, o playground, os parques infantis. Segundo Mayumi Souza Lima (15) “o espaço, nesse processo, entra como mais um elemento ativo de condicionamento da criança para o futuro adulto, conforme padrão desejado pelo sistema”.
Em ambos os contextos socioeconômicos, a criança é privada de vivenciar uma prática do espaço, de apreender e apropriar-se da cidade. As infâncias, mesmo em diferentes contextos, apresentam pontos de fragilidade na relação com a cidade. Resguardadas as diversas heterogeneidades que permeiam a experiência da criança no ambiente urbano, é possível afirmar a existência de vulnerabilidades que afetam todas elas, inibindo o potencial ativo e criativo que a criança dispõe perante a sociedade. Seja por privar e distanciar a criança do espaço público, por oferecê-lo através de sistemas controlados, ou ainda pela completa desconsideração às necessidades das infâncias.
No entanto, considerar as práticas do espaço no contexto urbano pode nos dar indícios sobre o modo como este participa das memórias e afetos, e como é interpretado e qualificado pelo indivíduo (16). É a partir dessa qualificação que o espaço se transforma em lugar. Compreender a qualidade e o impacto dessas práticas individuais pode nos auxiliar a compreender outras formas de vivenciar e projetar os espaços urbanos na melhoria da qualidade de vida urbana coletiva.
Rumo à conquista de cidades para todos, para que se assegure de não esquecer ninguém, Francesco Tonucci (17) propõe começar a partir dos mais novos. Nesse sentido, lançar olhares sobre a constituição de lugares a partir da prática do espaço, sobretudo pelas infâncias, pode nos revelar novas perspectivas sobre as nossas cidades.
O lugar remete, nesta investigação, à importância que a prática do espaço tem para o desenvolvimento da criança. Segundo Lima (18), para a criança, todo espaço praticado é qualificado. Apoiamo-nos pois, no conceito de lugar proposto por Yi Fu-Tuan (19), enquanto espaço qualificado. Além disso, a ideia de lugar aponta para contribuições aos estudos da relação da criança no espaço, lançando vistas aos significados que lhes são atribuídos a partir das práticas. Ou seja, aponta para possíveis formas de construções e elaborações das crianças acerca dos seus espaços de vida.
A prática do espaço pela criança é de grande relevância para a sua socialização (20), tanto quanto é a sociabilidade para a cidade (21). Como um traço comum entre ambos os processos, versaremos brevemente sobre o conceito de espaço público, visto que ele nos permite estudar a participação da criança na cidade sob formas de experiências coletivas, segundo práticas da interação social. Contudo, devido à dimensão da discussão que esse artigo permite, bem quanto ao nível de aprofundamento dos nossos estudos, escolhemos centrar a análise na construção da prática do espaço pela criança na perspectiva do lugar.
Para desenvolvimento dessa reflexão, a metodologia utilizada foi uma revisão de literatura a partir das contribuições de alguns dos principais autores destas categorias, como William Corsaro, Jens Qvortrup e Manuel Sarmento, por seu aporte no delineamento de uma nova sociologia da infância, articuladas às contribuições de Marc Augé, com suas reflexões sobre o lugar, Yi-Fu Tuan, pelas reflexões acerca do lugar a partir da perspectiva da prática, e Fernando Carrión, por analisar o espaço público como lócus da sociabilidade no contexto urbano. Além de teóricos interdisciplinares que abordam a relação entre criança e cidade, cujos estudos têm favorecido e fomentado o pensar a cidade a partir da criança no contexto socioespacial brasileiro, como Mayumi Lima, Cláudia Oliveira e Fernanda Müller.
Alguns projetos de cidade para as crianças
Dispor de uma agenda urbana que valorize a dimensão humana e que conceba a cidade como uma construção coletiva, onde todas as pessoas tenham voz, perpassa, também, pela escuta e pela inclusão das crianças nos processos de planejamento. No contexto de projetos internacionais, e que foram aplicados às cidades brasileiras, podemos citar dois exemplos: a Carta das Cidades Educadoras (22), que promove políticas públicas de valorização à diversidade e ao potencial educativo que a cidade possui, celebrado em Barcelona (1990) e revisto em Bolonha (1994), Génova (2004); e o Programa Cidades Amigas das Crianças, que estruturou diretrizes por cidades melhores para todas as pessoas (lançado pela Unicef, em 1996).
A Carta das Cidades Educadoras estabelece compromissos que visam a valorização do potencial educador de que a cidade dispõe, possibilitando a inclusão, a participação cidadã e a qualidade de vida para todos os cidadãos, em todas as etapas da vida. Para que um município integre a rede de Cidades Educadoras é necessário associar-se e assumir o compromisso de implementar os princípios da primeira Carta. No Brasil há 25 cidades associadas, quase todas elas nas regiões Sul e Sudeste, com exceção dos municípios Horizonte, no Ceará, e Vitória de Santo Antão, em Pernambuco (23).
O Programa Cidades Amigas das Crianças visa contribuir com a implementação dos direitos promulgados pela Convenção dos Direitos da Criança a nível local a partir da criação de políticas públicas para o bem estar de todos, mas sobretudo das crianças, além de promover vínculos entre diversas instituições e atores estratégicos. Esse Programa está embasado em quatro pilares: a visão global da criança, sua participação social, a adoção da Convenção dos Direitos da Criança e a análise de impacto. Para integrá-lo, é necessário que o município implemente, em nível local, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, estabelecida em 1989.
Sobre o Programa Cidades Amigas das Crianças, existem 1902 municípios da Amazônia e do Semi-árido inscritos no Selo Unicef, uma das etapas do Programa voltada à redução de desigualdades na infância. Além dessas, há outras dez cidades onde a Plataforma para Centros Urbanos — PCU, que tem como objetivo o monitoramento da infância intra-urbana, foi implementada.
Apesar de notáveis avanços no âmbito das políticas públicas no sentido de promover cidades mais acolhedoras às crianças, observamos que, existem ainda muitas lacunas no campo teórico que precisam ser investigadas para que o processo de produção do espaço e o desenvolvimento urbano enxerguem, escutem e considerem de fato a criança.
A criança como ponto de partida
Debates recentes no campo da sociologia indicam possibilidades de compreensão da criança enquanto sujeito ativo e criativo, dotado de direitos de participação, tanto capaz de assimilar quanto de produzir cultura. Nesse sentido, a nova sociologia da infância — termo que se refere a um conjunto de pesquisas e produções de estudiosos da Europa e América do Norte entre os anos 1970 e 1990 — propõe que a cultura produzida pelas crianças influencia seus pares bem como repercute na cultura dominante (24). Logo, a partir desta concepção é possível qualificar a criança como cidadã dotada de direitos e deveres. Entretanto, as raízes culturais em torno da infância nos levam a questionar até que ponto, de fato, podemos falar dessa conquista de direitos sem superar a concepção estabelecida.
A etimologia da palavra infância tem sua origem no latim infantia (in= advérbio de negação, fans= fala), concepção esta que nos revela um entendimento da criança enquanto sujeito sem voz, sem espaço de fala diante da coletividade. Por muito tempo a criança limitou-se a um adulto em formação, ou um adulto com limitações, sobretudo em função das visões tradicionais de socialização, em sua maioria pautadas em uma compreensão comportamentalista do desenvolvimento infantil. Por vezes ausente ou presente de forma discreta e secundária nos estudos sociológicos, a criança era vista como sujeito passivo. Segundo Cláudia Oliveira (25) a criança ocupa, historicamente, uma das posições mais frágeis da sociedade.
Foi, então, a partir da ascensão das teorias construtivistas na psicologia do desenvolvimento, sobretudo a tese cognitiva de desenvolvimento de Piaget e a abordagem sociocultural de Vygotsky, que o papel ativo e criativo da criança foi revelado e valorizado. Entretanto, William Corsaro (26) identifica que o foco em resultados, presente nessas teorias, acabou desvalorizando os diversos campos que complexificam a relação entre a infância e as demais categorias estruturais da sociedade, assim como as relações interpessoais para a socialização das crianças e sua posição na coletividade.
Sendo assim, o conceito de reprodução interpretativa, proposto por Corsaro (27) a partir de um modelo de teia global, supera os modelos de desenvolvimento linear, cujo foco é o desenvolvimento individual da criança. Este modelo incorpora aspectos coletivos do desenvolvimento, como os campos culturais, econômicos e comunitários. Desse modo é possível compreender que tais transformações e singularidades que diferenciam as infâncias são, no tempo e no espaço, não apenas produto e consequência das transformações sofridas em outras categorias sociais, mas também contributo das próprias crianças. Essas, por sua vez, recriam novas combinações em suas relações socioespaciais.
Segundo Jens Qvortrup (28) a infância consiste em uma categoria social estrutural permanente, assim como as classes sociais, etnias e gênero, concernente à estrutura etária. Logo, não consiste em uma fase do indivíduo até atingir a idade adulta, quando suas capacidades estarão desenvolvidas. Nesse sentido, a criança pode ser compreendida como o sujeito que, provisoriamente, vivencia a infância. Infância esta que, assim como as demais categorias sociais, estão em constante transformação.
A noção da infância enquanto categoria estrutural pressupõe uma concepção de desenvolvimento distinta daquela que se refere à aquisição de habilidades e capacidades. Poderíamos exemplificar essa ideia observando a infância de uma criança de oito anos de idade em um bairro de elite de uma grande cidade brasileira. A infância desta não é semelhante à de outra criança, de mesma idade, vivendo numa pequena cidade do sertão. Assim como a desta última não é semelhante à de uma criança de mesma idade, no mesmo contexto socioeconômico e cultural, há cinquenta anos atrás.
Nesse sentido, a condição social é homogênea tanto quanto é heterogênea. É homogênea por se tratar de uma categoria social geracional, o que confere uma série de semelhanças aos indivíduos que a vivenciam, como os picos de crescimento, a troca de dentes e a puberdade, entre outros processos, muitos deles fisiológicos. Mas também é heterogênea, por ser permeada por outras categorias sociais, que acabam por conferir diferentes condicionantes às infâncias, como citado anteriormente. Segundo Sarmento e Pinto (29) tais condicionantes conferem singularidades que estabelecem muitas e desiguais infâncias dentro de uma mesma cidade.
Apesar de tais concepções, Sarmento e Pinto (30) destacam que a percepção limitada da infância apenas como homogênea, dotada de traços de negatividade, ou da negação das características de um indivíduo maduro e completo, firma a noção de criança e infâncias sob uma perspectiva adultocêntrica de mundo. Esse quadro leva à consideração da criança como um indivíduo não-adulto, inacabado e incompleto.
Entretanto, o traço da incompletude, ou do inacabamento, são apontados por Paulo Freire (31) como inerentes à condição humana, independente da idade. Segundo o autor, é essa condição que nos inclina à curiosidade, ao desejo da descoberta, do aprendizado. Rompendo com a espacialização seletiva de espaços infantis, admitimos que o aprendizado, na infância, não pode ser limitado aos ambientes escolares. Claudia Oliveira (32) propõe como espaços de aprendizado todos aqueles que permitem a realização de experiências lúdicas e a socialização. Nesse sentido, cabe retomar o conceito de cidades educadoras, sendo este um convite à concepção de um projeto comum de cidade. Projeto este no qual são acolhidas e valorizadas pessoas de todas as idades, tendo em vista fomentar, promover e desenvolver, em paralelo às outras demandas socioeconômicas, a função educadora que o espaço urbano pode exercer sobre elas.
O espaço enquanto lugar
O espaço é a dimensão na qual estabelecemos relações com o mundo físico, com os outros, e com os símbolos e significados que permeiam a vida mental humana. Existe uma discussão acerca da categoria conceitual espaço que, em alguns autores, o define a partir da definição da categoria de lugar. Segundo o antropólogo Marc Augé (33), por exemplo, o espaço é “eminentemente abstrato”, podendo ser aplicado “a uma extensão, a uma distância entre duas coisas ou dois pontos [...] ou a uma grandeza temporal”. Para o autor, o lugar (antropológico) é uma categoria essencial, definido como "espaço identitário, relacional e histórico" (34). Essa é uma concepção semelhante à de Tuan (35) no campo da geografia, para quem à medida em que o spaço abstrato é praticado, ele se particulariza, transformando-se em lugar.
Acerca da prática do espaço, Certeau se refere como a “experiência jubilosa e silenciosa da infância”. Experiência esta que, em Não Lugares, Augé (36) descreve como “a experiência da primeira viagem, do nascimento como experiência primordial da diferenciação, do reconhecimento de si mesmo e com o outro, que reitera a do andar como primeira prática do espaço”. Tuan (37), por sua vez, afirma que o espaço apenas é praticado quando é possível se mover. Para este autor, o caminhar está na base da prática do espaço, e permite sua qualificação em lugares. De acordo com esses autores, adotamos essa perspectiva conceitual do lugar enquanto espaço praticado.
Ainda segundo Tuan, o recém nascido não tem mundo, visto que ao nascer não temos a capacidade de diferenciar o nosso organismo dos estímulos externos, tudo parece fazer parte do nosso eu. O espaço, para o indivíduo, começa com os sentidos, depois se estende aos cuidadores primários, e vai se ampliando e consolidando à medida que é praticado. Especialmente na primeira infância, entre os zero e os seis anos de idade, 90% das conexões cerebrais são estabelecidas permitindo uma sensorialidade intensa (38). Logo, a vivência espaço-temporal é mais intensa a uma criança que a outros grupos etários. Segundo Lima (39), a prática do espaço pela criança acontece de forma intensa, visto que, para esta, não há espaço físico destituído de significado. Não há espaço que não seja qualificado.
Contudo, sabemos também que a qualidade ambiental pode tanto nos provocar sensações de conforto, segurança e intimidade, quanto de desconforto e insegurança, por exemplo. Somados ao fator cultural, os atributos do ambiente influenciam diretamente nas maneiras como os qualificamos. É desse modo que se estabelecem relações recíprocas de atribuição de significado entre o sujeito e o espaço que, enquanto lugar, participa da construção da noção de cidade para a criança.
Além disso, as características das qualidades ambientais do espaço interferem no processo de orientação da criança no espaço, visto que suas habilidades sensoriais se desenvolvem concomitantemente ao desenvolvimento do corpo infantil. Segundo Oliveira, este processo é fundamental para um desenvolvimento adequado dos circuitos neurais. Logo, é a partir da vivência do corpo no espaço que a criança desenvolve habilidades motoras, autonomia, senso de equilíbrio e tomada de decisões.
Considerando a criança enquanto assimiladora e produtora de cultura, é inegável assumir que aspectos culturais influenciam diretamente no processo de atribuição de significado ao espaço. Em se tratando do espaço público, podemos ampliar essa influência para o exercício da alteridade, considerando os encontros, os conflitos e as trocas que acontecem nesse espaço. Carrión defende que os espaços públicos tendem a ser lugares na cidade, justamente por possibilitar a vida coletiva urbana e reunir os aspectos simbólicos da coletividade.
“Se a cidade é o espaço que concentra a heterogeneidade social de um grupo populacional grande e denso, são necessários espaços de encontro e contato, tangíveis (praças) ou intangíveis (imaginários), que permitam aos diversos reconstruir a unidade na diversidade (a cidade) e definir a cidadania (democracia). Esses lugares são justamente os espaços públicos” (40).
A sociabilidade e o espaço das crianças na cidade
"É a cidade um mundo? Ou o mundo se converte em uma cidade?" (41). Em Por uma antropologia dos mundos contemporâneos, Augé apresenta essa dupla interrogação. Na verdade, o autor aponta para vários mundos. Ele o faz quando coloca a busca por compreender as singularidades dos espaços de vida contemporâneos, ou seja, dos lugares, partindo de diversas escalas, da experiência, do cotidiano. No nosso estudo, admitimos que a relação da criança com o espaço passa por essa relação com o mundo, um mundo que lhe envolve, que lhe é dado, e que é por ela construído. O espaço urbano pode, assim, ser tomado como fruto do ordenamento do mundo, do qual participam uma ordem íntima e outra social, as experiências individuais e coletivas. A cidade é esse mundo, aqui explorado segundo duas perspectivas do lugar (afetivo/ emocional) e do espaço público (social, da alteridade), pois é nesse jogo, entre interior e exterior, individual e coletivo, comunidade e sociedade, que a cidade emerge.
Se compreendermos o lugar enquanto um espaço praticado e qualificado (42),e adotarmos o entendimento de que os espaços públicos tendem a ser lugares (43), observamos que a importância da prática do espaço para o desenvolvimento e a sociabilidade, na infância, se entrelaça à importância do espaço público para a cidade. Ambas cumprem funções estruturais, uma para o indivíduo, a outra para o contexto urbano.
A partir da abordagem de Carrión (44), identificamos ser possível superar as concepções tradicionais dominantes de espaço público, quais são: da perspectiva das teorias do urbanismo operacional, o que acaba por classificar o espaço público como um espaço residual perante os demais usos do solo; da perspectiva jurídica, que o compreende enquanto oposto ao espaço privado, e, com isso, configurando-o como espaço de atuação da gestão pública; ou o de uma perspectiva filosófica mais generalizada, que o situa enquanto espaço da liberdade. Tais concepções, por sua vez, apenas reforçam o processo de ruptura e negação que dificultam uma transformação da relação criança-cidade a partir do espaço público.
Ambas as concepções estão tão enraizadas em nossa sociedade que, apesar de dispormos de projetos de cidade para crianças, com elevado potencial de transformação, acabamos por reproduzir e perpetuar problemas como a violência urbana, uma mobilidade urbana deficitária, a espacialização seletiva que atinge infâncias em diversos cenários e o consequente enfraquecimento da participação social. A partir das contribuições de Carrión, podemos conceber o espaço público como espaço da alteridade e heterogeneidade dentro da cidade, superando aspectos formais, o que nos permite investigar diversos contextos urbanos. Contextos que vão desde espaços como praças e ruas de um loteamento, até becos e barreiras de uma favela, entre diversas outras configurações, presentes em diversas infâncias.
Ao debater e valorizar os espaços de heterogeneidade e de alteridade no contexto urbano, na figura dos lugares e dos espaços públicos favorecemos a integração social entre pessoas diversas em contextos diversos, e oferecemos condições para que as crianças vivenciem práticas sociais saudáveis com autonomia e experienciem o espaço urbano de forma afetiva, segura e enriquecedora.
Considerações finais
Diante da abissal desigualdade socioeconômica que permeia todas as esferas da sociedade brasileira, admitimos ser inviável debater a relação criança e cidade considerando uma só infância, mas senão considerar as diversas infâncias. Tampouco podemos generalizar infâncias no contexto de uma cidade, pois são múltiplas as cidades, tanto quanto as infâncias, dentro de um mesmo contexto urbano. Nesse sentido, investigar a perspectiva do lugar enquanto espaço qualificado para as infâncias apresenta um potencial para que possamos identificar que cidades são ofertadas às crianças no contexto brasileiro.
Entretanto, adotar esta perspectiva como paradigma para pensar e debater nossas cidades demanda um esforço anterior de desconstruir e repensar nossas concepções de infância, com todas as suas nuances. É necessário ir além da visão simplista que se ocupa da produção de espaços que valorizam e que definem contextos adequados à infância, na ideia fixa e generalista que temos desta. Essa desconstrução demanda, primeiro, que busquemos meios de escutar e compreender as múltiplas infâncias, e que consideremos o potencial que têm os seus pontos de vista sobre as suas próprias práticas do espaço urbano em nos apresentar problemas e potencialidades invisíveis das nossas cidades.
A perspectiva teórica da infância a partir da reprodução interpretativa nos permite compreender que a relação de aprendizado com o espaço, identificada com maior intensidade na infância, representa também uma ação ativa e criativa que pode influenciar a sociedade, tanto quanto é influenciada por ela.
O lugar, por sua vez, enquanto espaço constituído de significado, pode exercer sobre nós uma função educadora. Aprender com o espaço vai muito além de tomar ciência das formas e estruturas físicas, é aprender sobre o outro, e consequentemente sobre nós mesmos. Entretanto, é necessário voltarmo-nos às práticas do espaço, pois o que define a nossa experiência não é apenas a geografia do território, mas as relações que ele possibilita.
Embora haja projetos e ações de planejamento urbano notáveis no sentido de cidades pautadas na dimensão humana, as concepções ainda dominantes de espaço público (45) demonstram, por vezes, um entendimento incapaz de promover cidades educadoras e acolhedoras a todas as pessoas. A presença constante do risco nos espaços urbanos, seja pelo trânsito de alta velocidade, seja pela violência urbana, pela a ocupação desordenada, entre tantas outras situações, conferem à infância uma série de vulnerabilidades que podem ser lidas aqui como fatores que ameaçam a construção da experiência do lugar pela criança.
Quais são as infâncias constituídas nos diversos contextos em meio ao espaço urbano? Qual é o impacto dos fatores de vulnerabilidade, que geram inseguranças, riscos ou restrições, na relação entre a criança e a cidade? Que soluções projetuais de espaço público podem atenuar tais fatores? Lançar olhares sobre estas questões pode nos dar indícios dos fatores socioespaciais urbanos que constituem ameaças à experiência da criança no lugar, ou ainda nos indicar o que configura práticas do espaço satisfatórias e insuficientes. É, pois, trilhando esses caminhos, em busca das experiências particulares e coletivas das crianças no espaço urbano, que poderemos vislumbrar cidades de fato educadores e acolhedoras no contexto brasileiro.
notas
1
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças: contextos e identidades. Braga, Universidade do Minho/Centro de Estudos da Criança, 1997.
2
CORSARO, William. A sociologia da infância. Porto Alegre, Artmed, 2011.
3
QVORTRUP, Jens. A infância enquanto categoria estrutural. Educação e Pesquisa, v. 36, n. 2, São Paulo, mai./ago. 2010, p. 631-643 <https://bit.ly/3GWRWul>.
4
Conceito abordado por William Corsaro (2011) para analisar o modo como as crianças produzem e atuam entre os seus pares a partir da interação com os adultos.
5
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. Op. cit.
6
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: PNAD: microdados. Rio de Janeiro, IBGE, 2009.
7
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 24ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999.
8
CARRIÓN, Fernando. Espacio público: punto de partida para la alteridad. In Espacios públicos y construcción social. Hacía un ejercicio de ciudadanía. Santiago, Ediciones SUR, 2007, p. 79-97.
9
MÜLLER, Fernanda; NUNES, Brasilmar Ferreira. Infância e cidade: um campo de estudo em desenvolvimento. Educação e Sociedade, v. 35, n. 128, Campinas, jul./set. 2014, p. 669 <https://bit.ly/3D8vEEV>.
10
LEITÃO, Lúcia. Quando o ambiente é hostil: uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e Mucambos e outros ensaios gilbertianos. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009.
11
CARRIÓN, Fernando. El espacio público es una relación, no un espacio. In La reinvención del espacio en ciudad fragmentada. Cidade do México, UNAM/Instituto de Investigaciones Sociales, Programa de Maestría y Doctorado en Urbanismo, 2016.
12
Prefeito Geraldo Julio apresentou experiências do Recife na primeira infância durante conferência internacional Urban 95. Prefeitura Municipal do Recife <https://bit.ly/3Ho5G2H>.
13
INSTITUTO DE POLÍTICAS DE TRANSPORTE E DESENVOLVIMENTO. O acesso de mulheres e crianças à cidade. Rio de Janeiro, ITDP Brasil, 2018, p. 35.
14
CORDEIRO, Adriana Tenório. A Big Friendly Giant In Brasil?. Tese de doutorado. Recife, CCSA UFPE, 2019.
15
LIMA, Mayumi Souza. A cidade e a criança. São Paulo, Nobel, 1989.
16
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983.
17
TONUCCI, Francesco. Ciudades a escala humana: la ciudad de los niños. Revista de Educación, n. extraordinario, Madrid, 2009.
18
LIMA, Mayumi Souza. Op. cit.
19
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983.
20
OLIVEIRA, Cláudia. O ambiente urbano e a formação da criança. São Paulo, Aleph, 2004.
21
CARRIÓN, Fernando. Op. cit.
22
Lançada no 1º Congresso Internacional das Cidades Educadoras, em Barcelona (1990), fundamentada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Convenção sobre os Direitos da Infância (1989), na Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) e na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001).
23
Rede Brasileira de Cidades Educadoras <https://bit.ly/3kBKQEg>.
24
CORSARO, William. Op. cit.
25
OLIVEIRA, Cláudia. Op. cit.
26
CORSARO, William. Op. cit.
27
Idem, ibidem.
28
QVORTRUP, Jens. A infância enquanto categoria estrutural. Educação e Pesquisa, v. 36, n. 2, São Paulo, mai./ago. 2010, p. 631-643 <https://bit.ly/3HoDRHC>.
29
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. Op. cit.
30
Idem, ibidem.
31
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
32
OLIVEIRA, Claudia. Op. cit.
33
AUGÉ, Marc. O lugar antropológico. In Não-lugares introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus, 1994, p. 77.
34
Idem, Ibidem, p. 77.
35
TUAN, Yi-Fu. Op. cit.
36
AUGÉ, Marc. Hacia una antropología de los mundos cotidianos. Barcelona, Gedisa, 1998. p. 127. Tradução das autoras.
37
TUAN, Yi-Fu. Op. cit.
38
FUNDAÇÃO MARIA CECILIA SOUTO VIDIGAL. Primeira Infância em Pauta. São Paulo, FMCSV, s/d <https://bit.ly/3iU0z0M>.
39
LIMA, Mayumi Souza. Op. cit.
40
CARRIÓN, Fernando. Op. cit.
41
AUGÉ, Marc. Op. Cit.
42
TUAN, Yi-Fu. Op. cit.
43
CARRIÓN, Fernando. Op. cit.
44
Idem ibidem.
45
Idem ibidem.
sobre as autoras
Julieta Maria de Vasconcelos Leite é arquiteta e urbanista (UFPE, 2003), tendo cursado um ano na Universidade do Porto (2001). É mestre em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2006) e doutora em Sociologia (Université René Descartes/Sorbonne, 2010). Atualmente é professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE, e membro do Núcleo de Estudos da Subjetividade na Arquitetura, grupo de pesquisa cadastrado no CNPq.
Maya Neves de Moura Araújo é arquiteta e urbanista (Ufal, 2019) e mestre em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2022). Possui experiência em planejamento urbano, projetos participativos, e produção gráfica para educação urbana e patrimonial.