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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O presente artigo almeja compreender a noção bela arquitetura na filosofia de G.W.F. Hegel. Para tanto, traça-se um panorama passando dos conceitos de belo, arte a arquitetura, e à bela arquitetura.

english
This paper aims to comprehend the notion of beautiful architecture in G.W.F. Hegel’s philosophy. For this purpose, a panorama is outlined, moving from the concepts of beauty, art and architecture, to then understand the notion of beautiful architecture.

español
Este artículo tiene como objetivo comprender la noción de bella arquitectura en la filosofía de G.W.F. Hegel. Para ello, se traza un panorama, pasando de los conceptos de bello, arte a arquitectura y a bella arquitetura.


how to quote

BUTLER, Thomas Dylan. A bela arquitetura em Hegel. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 273.03, Vitruvius, fev. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.273/8697>.

“Para Hegel, tudo que é real é cognoscível. O mundo é dilacerado entre dois extremos: de um lado, as coisas, do outro, a ideia absoluta. Ao homem, cabe o trágico destino de ponte entre as coisas e o espiritual: ele é uma espécie de campo de batalha entre a natureza e Deus” (1).

A arquitetura é uma das artes particulares de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Ela se encontra na base deste sistema, sendo a arte originária, isto é, a arte que dá início a interiorização do espirito em direção ao absoluto, ao conhecimento concreto em detrimento ao conhecimento abstrato da natureza. Esse movimento ocorre quando pela primeira vez um povo transcende as questões meramente exteriores, do cotidiano, e infunde espirito na matéria bruta que, para Hegel, se dá na construção da Torre de Babel. A arquitetura, deste modo, é a mais ligada ao sensível e também a mais ligada a ideia de utilidade dentre todas as Artes: é sempre abrigo, mirante, via etc. Entretanto, na filosofia de Hegel as ideias, como arte e belo, são um autofim — são parte do absoluto, assim consideradas em si mesmo e para si mesmo, ou seja, recusam a noção de utilidade. São totalidades universais que não tem outra finalidade que não a religiosa: a da contemplação mesma das questões mais abrangentes sobre a existência humana. Logo, como compreender a bela arquitetura? Para tanto, examinaremos os conceitos de belo, de arte e, ao fim, de arquitetura, para compreender como essa pode ser e se torna bela.

O belo

O belo em Hegel está é uma Idea vinculado ao conceito de verdade. Pode-se dizer que a beleza é a exteriorização sensível da verdade. A verdade, por sua vez, seria o absoluto, A ideia, considerada em si, enquanto universalidade, existindo somente na interioridade do humano. Escreve Hegel:

“Existe uma diferença entre a verdade e a beleza. A verdade é a ideia enquanto considerada em si mesma, em seu princípio geral e pensada como tal. Porque não é sob sua forma exterior e sensível que ela existe para a razão, mas em seu caráter de ideia universal. Quando a verdade aparece imediatamente à consciência na realidade exterior, e a ideia permanece identificada e unida com sua aparência exterior, então a ideia não é somente verdadeira, mas bela. A beleza se define, portanto, como a manifestação sensível da ideia” (2).

Assim, compreendemos que o belo é a verdade representada através da matéria; é o infinito representado através do finito, a ideia representada através do sensível. O que nos leva a questão: o que é a ideia, o absoluto, para Hegel? Afinal, sem essa compreensão tanto a verdade quanto o belo carecem de suas fundações.

A filosofia hegeliana pode ser compreendida como dualista. O absoluto para Hegel é um tipo de expressão do divino, é a “realidade última que podemos conhecer através dos processos do pensamento” (3). Ou seja, é o que nos deparamos através do espírito — esse, a parte do ser humano que se ocupa com as questões universais. Em outras palavras, é um acesso ao absoluto, esse o tecido total da existência não sensível, ou seja, das ideias.

Através dele é que o pensamento acessa as questões ontológicas com as quais o humano se depara ao se aventurar nas entranhas de sua subjetividade ou interioridade: quem somos, por que somos, como somos, o que é a beleza, a verdade etc. O absoluto é o tudo em si e para si: é “o todo formado pelo conceito, [que] agarra conceitualmente [be-greift] tudo em si” (4). Assim considerado, este existe apenas como universalidade, como ideia; não possui manifestação sensível e só é passível de ser acessado através da razão interiorizada, da subjetividade contemplativa: Ou seja, através espírito. Em outras palavras, o espírito é o agente mobilizador da razão, este nosso instrumento de acesso ao absoluto, por sua vez o tecido constitutivo de onde se depreendem as ideias, que assim compreendidas se tornam a simplificação ideal dos fenômenos reais. Assim, uma pirâmide egípcia é um fenômeno real, e o triangulo, que pode ser utilizado para representar uma pirâmide em elevação, uma ideia. Pois o triangulo é para a razão parte constitutiva de toda pirâmide, e ao mesmo tempo um fenômeno inexistente na realidade sensível — mesma reflexão se aplica ao triangulo (instrumento) em contraponto ao triangulo (da razão).

Entendemos que a verdade é o absoluto universal tornado conceito particularizado. Diz Hegel:

“Só a verdade é conceituável, pois só ela se fundamenta no conceito absoluto, ou, mais exatamente, na ideia. Ora, sendo a beleza um certo modo de exteriorização e representação da verdade, por todas as suas faces ela se oferece ao pensamento conceitual” (5).

Ou seja, a verdade é uma parte do absoluto feita apresentável ao mundo sensível (e.g. através da escrita ou da conversa) pelo espírito através da razão. Este movimento é possível justamente pois o absoluto tem de ser independente, e para Hegel ele o é, do mundo sensível. Assim, o que lastreia a verdade enquanto verdadeira é justamente o caráter absoluto — independente de qualquer fato mundano — do qual o absoluto e suas partes dispõe.

Belo, então, seria aquilo que consegue expressar no sensível parte dessa totalidade do absoluto — parte essa que denominamos verdade — em uma forma, uma exterioridade, na qual se é possível perceber a ideia, para que depois, na interioridade o espírito através da razão possa o apreender em sua forma plena. Na interioridade, a forma sensível não constringe a Ideia, que lá pode se desvelar em sua magnitude plena, absoluta. Afirma Han a respeito desse fluxo entre totalidade e unidade para Hegel: “no conceito, tudo está in-cluso, in-begriffen. Belo é essa reunião, essa congregação no um que permite “centenas de singularidades retornar[em] de sua dispersão para se concentrarem em uma expressão e uma figura” (6). Belo é aquilo que consegue paradoxalmente imbuir o limitado com o ilimitável, pois do belo a razão extrai o ilimitavel a partir do limitado. Quando o belo se realiza no sensível, o espírito se encontra na camada mais superficial o possível, ou seja, o belo é o local mais acessível à razão em direção ao absoluto, pois as ideias nele se encontram em harmonia com a forma. Assim, um belo objeto dá acesso a uma ou mais ideias verdadeiras. Todavia, de um objeto não belo a razão não extraí verdade.

O belo é, na linguagem de Hegel, em si e para si, não se submete a nenhuma funcionalidade. Formula Han:

“O belo é um autofim. [...] Não se submete a um para que, nenhuma conexão de uso externa a ele, pois está ali sua própria vontade. Repousa em si. Para Hegel, nenhum objeto de uso, nenhum objeto de consumo, nenhuma mercadoria, seriam belos. Falta-lhes a independência interior, a liberdade que diferencia o belo” (7).

À essa consideração há de ser lembrado que historiografia da arquitetura só veio a entender como arquitetura as construções anônimas e não monumentais após a vida de Hegel. Assim, a arquitetura que hoje se apresenta como uma disciplina indissociável da noção de uso, não era compreendida nesses termos em 1835, data da publicação primeira dos cursos de estética e, dependendo do autor consultado, momento mais ou menos incipiente da Revolução Industrial que reposicionou as noções de uso, forma e função dentre a disciplina e prática arquitetônica. Por este motivo ela pôde sustentar o sistema estético hegelino lastreado na noção de belo.

O belo no sensível é uma ponte material ao imaterial: é uma infusão do transcendental no sensível que nos permite extrair o absoluto, tornando possível que as mais profundas reflexões sobre o existir sejam alçadas por matéria bruta; essa e que intrinsicamente nada teria de espiritual mas que é embebida do espírito pelo homem, isto é, pelo artesão que encontra a forma adequada à expor a verdade.

Assim, as formas que o belo toma Hegel denomina de arte.

Arte

Na teoria de Hegel, temos três etapas para o absoluto: a arte, a religião, e a filosofia. A arte é o primeiro intermediador da subjetividade humana em direção ao absoluto — cabe a ela espiritualizar o sensível. A religião supera seu alcance espiritual, pois nela o absoluto é mediado pela representação interior dispensando formas sensíveis como invólucro. Isto é, na reflexão religiosa a forma não tem constrições, não tem limites, não é física, e assim tem a possibilidade de se apresentar em toda sua magnanimidade, se mostrar em toda sua universalidade, e por isso, em sua particularidade. Cabe a ela a “captação interior daquilo que a arte faz contemplar como objeto exterior” (8). A arte, ao contrário da religião, sofre da “dor de parir o infinito no finito”. A filosofia, seria como uma “síntese entre as duas” (9).

Por excelência, a arte expõe conteúdo religioso no sensível, pois este seria o espiritual. Ela se hierarquiza da forma mais ligada a matéria, ao sensível, à menos: em ordem, temos arquitetura, escultura, pintura, música e, por fim, poesia. É uma progressão em direção ao mais adequado ao espírito, ao absoluto e, por isso, é também uma progressão em direção às artes mais ligadas aos sentidos teóricos — visão e audição —, que permitem “o interior dos objetos vir a ser para o interior mesmo” (10). Ou seja, são aqueles sentidos que, para Hegel, conseguem adequadamente transmitir o conteúdo espiritual, que não são excessivamente dependes e ligados ao material — como o tato, com o qual “o indivíduo singular e sensível, relaciona-se meramente com o singular e sensível e com a sua gravidade, dureza [...] mas a obra de arte não é algo meramente sensível, e sim o espírito como ele aparece no sensível” (11). Isto é, a visão e a audição dão acesso as coisas mesmas enquanto os outros sentidos se reportam em demasia às percepções materiais e por isso não teriam acesso as verdades do espírito, ou até mesmo induziriam ao seu oposto, a não verdade. É somente com a audição e a visão que conseguimos nos distanciar do sensível através do qual o espírito nos é apresentado e compreendê-lo como tal. Com elas, constitui-se um fluxo no qual esses sentidos penetram a matéria em direção ao conteúdo espiritual, as coisas mesmas, retornando ao sujeito reflexivo que se distancia de si em direção a sua subjetividade interiorizada, essa agora capaz de acessar o absoluto alçado pela arte. De acordo com Hegel, o início da arte é caracterizado por um fluxo análogo a esse.

A arte vem a ser quando um povo se distancia das questões mais materiais, conseguindo desenvolver práticas para além do quotidiano e da sobrevivência, e encontra na matéria “um ponto de referência para seu próprio espírito”: o sujeito começa a moldar o exterior em sua própria imagem, sendo assim “uma atividade que define ela mesma o espírito como um sujeito em busca de si mesmo” (12). Logo, representa o momento em que o humano primeiramente consegue fazer com que a partir de informações naturais, brutas, não humanas ou humanizadas, seja sorvido à consciência conteúdo espiritual e que esse processo fosse exposto na matéria: o exterior é interiorizado e depois o interior é novamente exteriorizado, imbuindo matéria bruta de espírito. A matéria é espiritualizada pois representar artisticamente requer que o humano extraia, dentre a infinidade de estímulos que a natureza provém, aquilo que é verdade, e o represente à sua maneira, efetivamente humanizando o natural na forma material, fazendo surgir do fato natural e indiferente um produto do espírito. Escreve Hegel:

“A arte arranca à aparência e a ilusão inerentes a este mundo mau e passageiro daquele verdadeiro conteúdo dos fenômenos e lhe imprime uma efetividade superior, nascida do espírito. Longe de ser, portanto, mera aparência, deve-se atribuir aos fenômenos da arte a realidade superior e a existência verdadeira, que não se pode atribuir à efetividade cotidiana” (13).

Entendemos assim que a arte é a maneira primeva que o humano encontrou de extrair a verdade do natural, e no sensível exteriorizar essa verdade. Com isso, distingue-se a ideia do ideal: “a ideia é a própria realidade, a essência profunda da realidade”, o “ideal, que é a beleza, [é] a verdade exteriorizada no sensível e no concreto” (14). Esse ideal, “justamente por ser manifestação do infinito na finitude e na rigidez da forma sensível, dirige-se a intuição” (15). Mas, Hegel nos alerta, não é qualquer expressão no sensível que é arte, que nos comunica a forma do absoluto na matéria: “a beleza como obra do espírito [geistwerk] [...] necessita inclusive para os seus inícios já de uma técnica formada, de múltiplas tentativas e de exercício” (16). Não é o singelo rabisco da criança, o esboço das proporções do homem, a pedra rudemente talhada, que transmitirá o belo, a verdade no sensível, ou seja, que será arte. Logo, a arte compreende uma maneira de se vislumbrar as questões do espírito através da intuição, e para tanto é necessária a adequação da forma ao conteúdo.

Como se observa, para Hegel a arte, assim como o belo, é algo conceituável. Racionalista, ele insere a arte e o belo dentro do sistema das artes particulares, o qual é radicalmente submetido a intenção originária do filósofo de responder a seguinte questão: “qual é a necessidade que moveu o espírito a produzir obras de arte e como cada uma das artes é uma consequência específica desta necessidade” (17)? Vemos então que a preocupação é compreender a arte enquanto si e para si. Isto é, tomada como conceito, como parte das buscas do espírito. Sua filosofia não intenta predizer o porvir; a questão é compreender as transformações do espírito ao longo do tempo, como esse chega e se manifesta no seu presente.

Para circunscrever arte como conceito, Hegel radicalmente rejeita qualquer finalidade utilitária que a arte possa ter — se porventura o tiver, é, no máximo, aspecto secundário. Explica Hegel:

“A arte se particulariza da seguinte maneira. A totalidade simples é o ideal, o belo. Num primeiro momento é um sujeito espiritual em sua autonomia infinita inteiramente por si mesmo. Ele, enquanto sujeito, deve ter diante de si uma natureza inorgânica, tal como cada homem, cada ser vivo, tem diante de si uma natureza inorgânica. Esta natureza inorgânica não é apenas aquela com a qual o ideal se relaciona de modo prático, mas também de modo teórico. É um entorno, uma envoltura exterior; para que seja digno do ideal, deve ser belo” (18).

Ou seja, a arte existe como parte do absoluto, sendo sujeito em si e para si, considerado autonomamente, considerada em seu princípio geral e pensada como tal. Mas, toma forma através do e no sensível, e portanto, “a arte procura pois, de acordo com Hegel, inserir o espírito naquilo que é material” (19).

Para se tornar arte particular ela “deixa sair o seu conteúdo na existência [dasein] efetiva para uma existência [existenz] determinada, torna-se uma arte particular, e por conseguinte apenas agora podemos falar de uma arte real e, com isso, do início efetivo da arte” (20). Ela transita de sua existência como totalidade, parte do absoluto, e imbui-se no sensível, na particularidade. Justamente por essa sua natureza ontológica possui um caráter ambivalente: “a arte é ‘uma forma mais direta de atingir a ideia’ [...]. Mais direta, porém mais grosseira e simples, inferior, portanto, à religião e a filosofia, porque, ao contrário delas, tem ‘que pedir formas à natureza” (21). Ou seja, ela “nos abre os horizontes das manifestações dessas potências universais, tornando-as aparentes e sensíveia” (22), mas, constringida ao sensível é impossibilitada de revelá-las em toda sua potência infinita enquanto ideia, enquanto parte do absoluto.

Mas não é porque ela é limitada que tem seu valor reduzido ou deixa de ter um papel importante na filosofia hegeliana ou para a condição do homem: “o conflito inerente à condição humana [de ponte entre o sensível e o espiritual], só no absoluto se resolve; mas a beleza é uma das armas mais poderosas de que o homem dispõe para superar a angústia e o seu destino trágico” (23).

Com isso, vejamos então como Hegel entende a arquitetura, a primeira de suas artes particulares, aquela que dá início à espiritualização do homem, e assim, edifica essa nossa condição de trágica ponte entre o efêmero e o que sempre será.

Arquitetura

A arquitetura, para Hegel, constitui o início da arte. Se utiliza da matéria bruta como ela se apresenta no exterior, na qual o espírito dá o primeiro passo em direção ao sensível, configurando-a como “forma onde conhece a si mesmo” (24). O humano antes puramente exterioridade principia sua jornada para se tornar um ser espiritual, interiorizado e subjetivo através da arquitetura. Todavia, essa é demasiada ligada ao sensível, à matéria bruta, e por conseguinte o “conceito fundamental da arquitetura autêntica consiste no fato de que o significado espiritual não se encontra exclusivamente na construção mesma, que desse modo se torna um símbolo autônomo do interior, mas que este significado, inversamente, já adquiriu fora da arquitetura a sua existência livre” (25). Na arquitetura autêntica, o espírito não está exclusivamente na sua expressão sensível, como nas outras artes, mas também pode estar dentro de seu invólucro. Como visto pela adjetivação de autêntica, não é toda arquitetura que cumprirá esse conceito fundamental. As que o fizerem, farão quando acolherem em si obras de arte de “maior alcance” (26) espiritual — como a escultura e a pintura —, quando o homem acessar sua subjetividade, seu espírito, no espaço definido pela arquitetura, e quando seu invólucro, o edifício propriamente falando, tornar-se símbolo desta migração do espírito ao interior. Todavia, em cada momento do espírito desta arte, ela assume diferentes características dessa arquitetura que Hegel chama de autêntica. E mesmo na sua expressão de maior alcance espiritual ainda é limitada.

Percebe-se o porquê de sua conceituação como princípio da arte: a arquitetura é uma arte do exterior para o exterior e “pela limitação da matéria sensível que escolheu para si, ela é simbólica segundo a sua natureza” (27). Ou seja, como símbolo, apresenta pelo menos um ponto de tangência entre conteúdo e forma — não se limitando, necessariamente, a um. Por causa dessa limitação, será apenas aparentada ao espírito; a forma arquitetônica é inábil em encontrar uma forma adequada ao conteúdo espiritual, que ainda não lhe é inteiramente consciente.

A primeira arquitetura seria a mítica Torre de Babel, primeiro edifício que não existiria por e pelo seu aspecto puramente funcional — e.g. um teto para proteção contra o sol, paredes para proteção contra o vento e o frio, piso para regularizar o chão etc. Representaria um empreendimento espiritual: “o surgimento da arquitetura está associado a uma mudança radical na organização dos povos, pois o elemento espiritual sai da mera inconsciência abstrata do sujeito mergulhado na natureza e realiza o primeiro passo em direção ao conhecimento concreto” (28). O conhecimento concreto, absoluto, principia, tendo uma representação exteriorizada que atesta ao fato; a comunidade, como coletivo, agora não mais lida apenas com o imediato, com a sobrevivência e o cotidiano, mas tem acesso à subjetividade, e à meios de a exteriorizar.

Um monumento, a torre representa o deslocamento de massas humanas a uma nova localidade, e um esforço coletivo para que se construa algo de tamanhas dimensões. Mais do que uma edificação com fins práticos, esse edifício é primeiramente simbólico; a utilidade que houver é secundária: a Torre de Babel se “torna um referencial externo, a manifestação exterior do vínculo” desta comunidade que a construiu, algo que “só pode ser explicado pelo sagrado” (29). O coletivo foi movido pelo espírito. Vê-se, então, na gênese da arquitetura, a gênese também disso que será característico da arte, que é a representação do absoluto, das buscas do espírito nos confins de sua interioridade, na exterioridade — o belo. Não só pedra empilhada: um monumento ao divino.

Para que se transcenda a mera construção e venha à tona a arquitetura, há necessidade da rejeição da funcionalidade e da submissão à finalidade mundana, e da transformação desta em autofim — assim como são o belo e a arte — a despeito do fato que

“A arquitetura, além de procurar, como as outras artes, a criação da beleza, possui sempre um objetivo de destinação prática e dependente, mais do que qualquer outra, de condições alheias à vontade livre do artista, pois a obra a fazer, o prédio a construir, deverá servir de moradia, de templo, de fábrica etc., de modo que nela, até as condições sociais da comunidade interferem, de maneira mais direta e forte, no trabalho de criação” (30).

Essa manobra de rejeição do princípio utilitário tem a função de submeter a arquitetura ao conceito de arte, segundo qual cada um dos gêneros deve ter existência autônoma. Essa contradição de termos leva a uma das aparentes dificuldades de caracterizar a arquitetura como bela, como parte das artes. Como vimos antes, a arquitetura é limitada por sua natureza simbólica, mas, atinge seu potencial quando abriga em si o espírito e se torna símbolo autônomo deste. Mas, são em diferentes momentos do espírito humano, ou seja, em diferentes épocas, que a arquitetura exterioriza em si e para si partes desse potencial. Nos é instrutivo, então, compreender a divisão que Hegel faz da arquitetura em simbólica, clássica e romântica — esta última momento em que a arquitetura finalmente expressa seu conceito fundamental.

A arquitetura simbólica ou oriental — a dos egípcios, persas, indianos... — é a primogênita, isto é, é a Torre de Babel. Ela, assim como as artes simbólicas num geral, expõe “apenas significados abstratos, ainda não essencialmente individualizados em si mesmos [na sich selbst], cuja configuração imediatamente ligada a eles é tanto adequada quanto inadequada” (31). Das três categorias que a arquitetura recebe de Hegel, a arquitetura simbólica é a que mais incorpora essa inadequação para exteriorizar o absoluto. Ou seja, ela exterioriza excessivamente significados ainda muito ligados ao natural e a natureza, que Hegel chama de conhecimento abstrato, em oposição aos conhecimentos do espírito, do absoluto, que ele chama de conhecimento concreto. Explica o filósofo:

“Os significados, a saber, que são tomados como conteúdo, permanecem, como no simbólico no geral, por assim dizer, representações universais informes, abstrações elementares da vida natural, diversamente particularizadas e embaralhadas, misturadas com pensamentos da efetividade espiritual, sem ser reunidos idealmente [ideel] como momento de um sujeito. Esta ausência de vínculo os torna extremamente múltiplos e mutáveis, e a finalidade da arquitetura consiste apenas em tornar visível para a intuição ora este, ora aquele lado, simbolizá-los e permitir que se tornem representáveis por meio do trabalho humano” (32).

Assim, vê-se que por simbólico se entende que essa arquitetura incorpora a natureza mesma do símbolo, de poder expor uma multiplicidade de significados, e, assim, seu conteúdo ser pouco determinado à intuição; esta que ora extrai uma parte do significado espiritual, ora outro diferente, a partir da mesma exterioridade sensível — a forma aqui não é plenamente adequada ao conteúdo. Logo, compreendemos por que a “ausência de aspiração pelo belo que caracteriza a arquitetura oriental” (33). Por ainda estarem carentes de estarem propriamente ligadas à concepção de verdade, às ideias do absoluto com sua forma abstrata e simbólica, das quais a intuição não consegue imediatamente nem plenamente extrair o conteúdo espiritual à subjetividade, não é possível, para Hegel, definir a arquitetura oriental, aquela que ele chama de simbólica, como bela: o conteúdo religioso aqui não possui forma adequada. Todavia, para mérito desse momento do espírito, Hegel compreende-a como uma expressão autônoma:

“Uma obra arquitetônica que deve manifestar um significado universal para os outros não existe para nenhuma outra finalidade senão a de expressar em si mesma este superior, e por conseguinte é um símbolo autônomo de um pensamento pura e simplesmente essencial, válido universalmente, numa linguagem existente por causa de si mesma, mesmo que seja inaudível para os espíritos” (34).

Mesmo que a multiplicidade de significados possíveis prejudique que o absoluto seja plenamente e claramente exposto no sensível, a arquitetura simbólica é dotada desse intuito de representar o infinito no finito, e tem isso como sua finalidade — não qualquer possível uso funcional da construção mesma. Ela almeja comunicar a verdade, mesmo que não de forma plenamente adequada. Logo, é autônoma.

Ao passar de simbólica à clássica, a arquitetura sofre uma mudança, pois agora intenciona à beleza do ideal clássico. Para tanto, ela serve ao absoluto: “agora [na arquitetura clássica] o espiritual, seja por meio da arte, seja em existência viva imediata, existe por si mesmo isoladamente da construção, e a arquitetura se coloca a serviço deste espiritual, que constitui o significado autêntico e a finalidade determinante” (35). Para a arquitetura ser bela ela perde sua autonomia como arte, tendo o espírito como inquilino de seu interior. Lá, o absoluto está presente em outras formas, sendo estas a iconografia religiosa, o culto, ou o humano e sua subjetividade; ou seja, a construção é apenas invólucro e o espírito migra ao seu interior. Diferentemente da arquitetura simbólica, da clássica podemos dizer que é bela. Isso se dá pois, apesar desse caráter utilitário, este não é sua única finalidade: “como arte, porém, ela possui a determinação do aprazimento [gefälligkeit]” (36).

A arquitetura clássica se atém demasiadamente ao conhecimento abstrato. Como sua peça fundamental, a coluna, que “não tem nenhuma outra determinação a não ser a de sustentar” na qual “importa sobretudo que a coluna conserve em relação à carga que repousa sobre ela o aspecto de conformidade a fins e, por isso, não seja nem forte demais, nem fraca demais, nem apareça comprimida uma junto à outra, nem se erga tão alto e leve nas alturas, como se apenas jogasse com a sua carga” (37), sua forma expressa muito mais fatos naturais — a gravidade, os momentos fletores, a integridade da estrutura etc... — e o desafio de os vencer do que espirituais. Na exteriorização da coluna “é expresso o princípio correto da coluna” (38), não conhecimento concreto, espiritual, do absoluto. Mas isto também tem seu benefício: “os gregos caracterizavam-se pela conformidade a fins correntes, por completude artística na nobreza, na simplicidade, bem como na ornamentação leve de suas decorações” (39). Por essa nobreza, “poderíamos dizer sem receio que o homem encontra sua justa medida na arquitetura clássica” (40).

Todavia, como Hegel reitera múltiplas vezes, o conteúdo religioso é o conteúdo próprio da arte. Na arquitetura é a romântica, mais precisamente a catedral gótica, que alcança essa vocação em sua mais possível plenitude. Esta pode ser entendida como se fosse uma síntese da arquitetura oriental e a clássica — apesar de Hegel insistir que não se trata de uma “fusão das formas arquitetônicas do oriental e do grego” (41): assume para seus fins a autonomia que se expressa no monumento oriental e a servilidade que se expressa no templo grego (42). Ela encontra em si a forma adequada para o conteúdo espiritual, religioso, sendo, diferentemente das outras arquiteturas, voltada ao interior: a coluna que separa planos na clássica é integrada na parede em um invólucro total, que se curva abobadado em direção aos céus, e a luminosidade é reduzida. São templos do recolhimento em si, da interiorização, do espírito, os quais suas formas, seus invólucros, simbolizam esse recolhimento em si. Seu interior também recebe o olhar do artista tanto quanto o exterior, pois artes de maior alcance estão lá presentes e integradas ao templo além de nele se realizarem tanto o culto quanto outras diversas atividades da comunidade — casamento, batismo etc.

Dentro da catedral gótica, ilumina não a luz abstrata, mas a luz concreta; a arquitetura aqui encontra sua mais elevada expressão do belo, pois interior e exterior simbolizam ao humano a elevação sobre tudo que é singular e finito, em direção à totalidade e ao infinito — ao absoluto. a catedral gótica

“Tem e indica uma finalidade determinada, mas se eleva em sua grandiosidade e repouso sublime acima do que é meramente conforme a fins, em direção a infinitude em si mesma. [...] Do outro lado, a particularização [partikularization] superior, dispersão e diversidade ganham justamente aqui primeiro o espaço mais pleno, sem todavia deixar a totalidade se decompor em meras particularidades [besonderheiten] e singularidades casuais” (43).

Ou seja, nela temos a mais sincrônica expressão de forma e conteúdo dentre os momentos da arquitetura, na qual a intuição claramente apreende o espírito, dirigindo o humano a interioridade, ao infinito absoluto; seja ao participar das atividades dentro do templo, seja através da contemplação das outras artes mais aptas ao espírito contidas na catedral, seja contemplando a bela forma sensível do templo, a qual transmite à intuição a verdade. Na arquitetura romântica é possível simultaneamente apreciar “o que é peculiarmente conforme a fins ao culto cristão, bem como a concordância da configuração arquitetônica com o espírito interior do cristianismo” (44). Somos capazes de absorver, através dessa exteriorização sensível, o universal e o particular, o infinito e o finito; vemos o objeto artístico como um fim em si e para si; vemos o infinito no finito, que nos retorna ao infinito; vemos a adequação da forma ao conteúdo; o ideal; a verdade. Vemos o belo.

Conclusão

Para Hegel, a arquitetura sempre será uma arte defasada por sua limitação intrínseca enquanto aparentada à matéria. Não encontraremos, por exemplo, arquitetura que borra os limites entre a arte e a filosofia, como o faz a poesia de Goethe. Pelo mesmo motivo ela não consegue revelar o absoluto em sua mais potente forma: o finito constringe o infinito. É a religião o meio por excelência de se entrar em contato com a interioridade, com o espirito, com o absoluto. Apesar de ser possível entrar em contemplação religiosa como individualidade, o templo é o local por excelência onde isso transcorre. E o templo é arquitetura.

Pode-se dizer que a arte da início a religião, já que a primeira dá início a subjetivação do homem, e que, estabelecida a superioridade da religião forma de contemplar o absoluto, é a arte por meio da arquitetura que a catalisa: ela provém o espaço, mesmo que esse seja apenas adorno, onde a comunidade coletivamente atinge sua mais alta vocação espiritual: a arquitetura provém o espaço no qual o homem consegue, mesmo que momentaneamente, se reconciliar com o absoluto. o belo templo, a bela arquitetura, é morada sensível do espírito. Fica então a inquietação. Se, para Hegel, é próprio da filosofia ser reescrita de modo a compreender o momento atual do espírito e suas manifestações, o que, hoje, seria a bela arquitetura? Tem o templo, a catedral, ainda a primazia de morada material do espírito? Ou terá esse migrado a outro invólucro? É possível compreender a Beleza como exteriorização da verdade em um mundo após o moderno, que tem uma tendência a rejeitar o conceito, a ideia? É o belo ainda o belo? A bela arquitetura certamente ainda existe; como compreendê-la parece uma tarefa digna às inquietações do espírito.

notas

1
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. 15a edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, p. 85-86.

2
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich [1954]. Apud SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 83.

3
Do original: “ultimate reality that we can come to know trough pure thought processes alone”. George Wilhelm Friedrich Hegel. Stanford Encyclopedia of Philosophy, Stanford, 9 jan. 2020 <https://stanford.io/2RRH0re>.

4
HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Petrópolis, Vozes, 2019, p. 77.

5
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich [1954]. Apud SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 83.

6
HAN, Byung-Chul. Op. cit., p. 77.

7
Idem ibidem, p. 82.

8
SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 85.

9
Idem, ibidem, p. 85.

10
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura. São Paulo, Edusp, 2017, p. 76.

11
Idem, ibidem, p. 75.

12
TOLLE, Oliver. Apresentação. In HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 27.

13
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In Cursos de estética I. São Paulo, Edusp, 2001, p. 33.

14
SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 83.

15
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 27.

16
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 67.

17
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 27.

18
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In Caderno de Aschenberg. Apud TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 46.

19
SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 174.

20
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 87.

21
SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 173.

22
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In Esthétique, p. 42. Apud SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 173.

23
SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 86.

24
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 42.

25
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 139.

26
Idem, ibidem, p. 139.

27
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 33-34.

28
Idem, ibidem, p. 48.

29
Idem, ibidem, p. 43.

30
SUASSUNA, Ariano. Op. cit., p. 241.

31
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In Cursos de estética II, p. 37. Apud TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 47.

32
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 101.

33
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 54.

34
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 99-100.

35
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In Cursos de Estética III, p. 64. Apud TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 52.

36
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In Caderno de Hotho, p. 222. Apud TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 54.

37
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 146.

38
Idem, ibidem, p. 155.

39
Idem, ibidem, p. 168.

40
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 55.

41
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 172.

42
TOLLE, Oliver. Op. cit., p. 56.

43
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A arquitetura (op. cit.), p. 172-173.

44
Idem, ibidem, p. 172.

sobre o autor

Thomas Dylan Butler é graduando em arquitetura e urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

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