O objetivo deste trabalho é a construção de uma pequena narrativa sobre o bairro turístico carioca de Santa Teresa.
Quando nos aproximamos desse bairro, no entanto, percebemos que mesmo uma pequena e despretensiosa narrativa se apresenta como uma tarefa metodologicamente bastante complexa. Essa complexidade decorre de que muitas singularidades interagiram de modo muito determinante na conformação de seus espaços e formas, por um período muito largo de tempo, para os padrões de uma cidade latino-americana.
Ocorre que esses muitos aspectos particulares são objeto de interesse, além da arquitetura e do urbanismo e de suas histórias e teorias, de um amplo espectro disciplinar, composto por disciplinas que se sobrepõe a essas e são dotadas de perspectivas metodológicas próprias.
Podemos dizer que o bairro é de evidente interesse geográfico, por razões topolíticas e topográficas, entre outras, pois seu território é adjacente ao centro histórico e com ele se confunde. Também porque é, a um só tempo, divisor topográfico de águas e fronteira política entre as zonas sul e norte da cidade. E, de modo semelhante, entre as favelas, em suas encostas ocupadas de modo informal e marginal, e as áreas mais planas da cidade baixa, com diversos tipos de ocupação formal. Também é de fulcral interesse para a geografia humana, visto que é território para o qual convergiu toda a diversidade étnica e cultural, cuja aplicação à produção do espaço territorial criou formas urbanas singulares e de intensa força poética.
Também é de forte interesse histórico, porque é um dos bairros mais antigos da cidade e foi objeto de diferentes e muito espaçadas ondas de ocupação. E porque tal amplitude e diversidade histórica ali depositou uma grande variedade de exemplares arquitetônicos e urbanísticos de grande interesse patrimonial. Tal interesse decorre de que tais ondas de ocupação refletiram movimentos migratórios de origem estrangeira, forçados e voluntários, e de origem interna, que marcaram a história política da nação e produziram intensos processos de miscigenação cultural, que se refletiram nas formas dos espaços urbanos e dos edifícios ali construídos.
Tal processo histórico mais geral se imbrica com fatos relativos à história da técnica e das tecnologias aplicadas à urbanística ― em particular às estruturas e infraestruturas ―, que determinaram de modo notável a implantação dos assentamentos urbanos e o próprio processo de ocupação, com destaque para o abastecimento de água da cidade, a partir de seus mananciais, com a execução de obras magníficas, como o aqueduto dos arcos da Lapa. Também no que diz respeito às tecnologias aplicadas aos transportes públicos com a utilização de sistemas sobre trilhos, como funiculares e linhas de bonde, e com a emergência da eletricidade, com a eletrificação desses sistemas. A própria estagnação do desenvolvimento do bairro está fortemente associada aos desenvolvimentos técnicos aplicados à construção dos grandes túneis urbanos, para a ligação das zonas norte sul da cidade, que antes se fazia pelas ruas do bairro.
A mais notável singularidade que marca o bairro, no entanto, é de natureza poética. Não apenas porque tão largo processo histórico se desenvolveu sobre as particularidades do território de modo muito pitoresco, para uma perspectiva contemporânea; mas também porque as formas urbanas e arquitetônicas que decorreram de tal sobreposição acabaram por determinar a identidade turística do bairro, muito marcada pelos trilhos do bonde, por suas ladeiras calçadas com blocos de granito, pelos altos muros de arrimo em cantaria de pedra típica dos períodos de urbanização, e pelo casario típico dos séculos 18 a 19, com estilos arquitetônicos muito representativos das origens culturais das diferentes ondas migratórias.
Desse modo, de antemão, se colocam três perspectivas disciplinares que parecem imprescindíveis: a geográfica; a histórica; a poética. Esta última, no sentido original da palavra grega poiesis, a qual traduzimos como produção, ou mesmo construção e, nesse sentido mais arquitetônico e urbanístico, como tectônica. Tal perspectiva, encontra amparo metodológico muito interessante e consistente na análise fenomenológica, como demonstraram autores importantes para a teoria arquitetônica, como Kenneth Frampton (1), Christian Norberg-Schulz (2), Marco Frascari (3), Vitorio Gregotti (4) e Juhani Pallasmaa (5). Todos estes, fortemente influenciados pela face da fenomenologia desenvolvida pelo filósofo alemão Martin Heidegger, em seus textos sobre a técnica, a arte e o significado do lugar.
A simples multiplicidade de perspectivas, envolvidas no fenômeno urbanístico, já caracteriza a complexidade do objeto, mas várias questões incidentes e particulares ao bairro produzem singulares dificuldades metodológicas. Dentre elas, se destaca o problema da representação ou, mais especificamente, do grau de intermediação, entre o sujeito e o objeto, que é realizado por meio de objetos representacionais de análise, no âmbito metodológico próprio a cada disciplina.
Análise
As narrativas construídas a partir dos âmbitos metodológicos da história e da geografia exigem essa intermediação do objeto representacional. São justamente as fontes documentais, os gráficos do historiográfico e do geográfico, que autenticam a veracidade, no sentido de validade científica, da narrativa. Mas o fenômeno poético não apresenta a sua verdade no âmbito do documental ou do representacional. É até mesmo discutível se, no âmbito em que se apresentam as obras de arte, não são, elas mesmas, de algum modo, formas de representação. Poderíamos ir além, e perguntar se não é nesse âmbito do documental, no qual os fenômenos históricos e territoriais se transformam no historiográfico e no geográfico, que as artes e as ciências encontram suas fronteiras metodológicas menos porosas.
Acerca desta questão, Heidegger comenta que as pesquisas históricas da arte fazem de suas obras objetos de uma ciência. Mas, sobre essa consideração, propõe a seguinte indagação: “mas, como tal, vêm as próprias obras ao nosso encontro?” (6). É evidente que não. Aquilo do que nos aproximamos, quando intermediados pelas formas científicas de representação, é apenas o conhecimento sobre o objeto, o que certamente não é pouco. Mas é, ainda assim, pouco e pálido frente à experiência da presença diante da própria obra. Nenhuma forma de representação, e nem mesmo o conjunto de todas elas pode substituir a experiência de estar imerso nos espaços da acrópole de Atenas, frente ao Partenon, quando ainda brilhavam suas cores e dourados. Ou mesmo agora, em ruínas e descolorido pelo tempo.
Tal questionamento, coloca o problema de uma disjunção metodológica necessária à abordagem do que é um ser histórico e geográfico por um lado, mas é, também, um ser poético por outro. Tal disjunção resulta de que o fenômeno poético é uma experiência de presença direta e concreta, frente à poiesis (produção) que a obra de arte, como objeto tecnicamente produzido, ou construído, é.
A técnica, segundo o filósofo Martin Heidegger, foi experimentada no saber grego como um "trazer-à-frente do ente", na medida em que “traz o presente como tal desde o encobrimento ao desencobrimento de seu aspecto”. O “elaborar” (her-stellen) da obra de arte, ou do utensílio, acontecem, segundo ele, naquele "trazer-à-frente" que, “de antemão, deixa o ente assomar a partir de seu aspecto em sua presença” (7).
Desse modo, a narrativa, como forma fenomenologicamente analítica de representação, deveria ser o relato da experiência cognitiva de uma forma não intermediada de presença diante da coisa relatada. Segundo Heidegger, se quiséssemos trazer a coisa à presença, deveríamos primeiramente remover tudo aquilo que, nas concepções e declarações sobre a coisa, quer-se interpor entre esta e nós. Só então, segundo ele, podemos “nos abandonar à presença (anwesen) não mascarada da coisa”. Ainda segundo ele, não temos de “nem primeiro que exigir e nem mesmo organizar esse deixar-vir-ao-encontro imediato da coisa”. Ele acontece de há muito. Naquilo que os sentidos da visão, da audição e do tato trazem consigo, nas sensações do colorido, sonoro, áspero, duro, “as coisas se nos movem sobre o corpo”. A coisa, nessa perspectiva, é, segundo ele, “o αισθητόν (aisteton), o perceptível pelas sensações dos sentidos da sensibilidade” (8).
O problema dessa perspectiva, segundo ele, é que, no aparecimento das coisas, nós nunca percebemos, como ela pretende, primeiro e genuinamente uma afluência de sensações, como, por exemplo, sons e ruídos. O que ouvimos é a tempestade a assoviar na chaminé, o avião que passa, o motor deste ou daquele carro que soa de forma diferente de outro. Segundo o filósofo, muito mais próximas de todas as sensações, estão-nos as próprias coisas. Ouvimos em casa a porta ao bater, nunca sensações acústicas, nem mesmo ruídos. Para ouvir um puro ruído, segundo ele, “teríamos de nos afastar da escuta das coisas, distrair nosso ouvido delas, o que é dizer, ouvir abstratamente” (9).
Desse modo, na presença das coisas, no seu vir ao nosso encontro, dificilmente nos colocamos abstratamente diante das sensações estéticas. No seu vir ao nosso encontro as coisas já são. E já são, porque já eram quando de nossa própria autocompreensão. Não somos os senhores de nosso próprio ser-aí (da-sein). Este mesmo não vem ao ser, mas, antes, já se encontra em meio ao ente e assim está para se assumir como já se encontra, situado entre as coisas que já são em nós quando vêm à nossa presença (10).
Nessa perspectiva, nos colocamos frente à coisa, com o objetivo de, acerca dela, em sua proximidade, construir uma narrativa. Para tal, procuramos nos afastar de representações pré-existentes da coisa, pois, quanto mais nos aproximamos e imergimos nas representações, mais nos afastamos da experiência em presença que só pode ser experimentada pela imersão na própria obra. Mas, a imersão na própria obra, no modo como ela se faz espacial e tectonicamente presente, é algo sempre geográfica e historicamente situado, pois aqui ocorre o que Heidegger designa como a “torrente da delimitação” que, “imperturbável em si, delimita cada presente em sua presença” (11).
A presença é sempre algo que se dá em um presente. Posso narrar a experiência de estar sob a cúpula de Santa Maria dei Fiori hoje. Mas a experiência de ali estar para um sujeito situado em Florença no renascimento é inapreensível. Posso me aproximar dela somente e apenas através de uma narrativa da época, grafada em um documento histórico.
Mas não se trata somente de um deslocamento do sujeito da experiência cognitiva, diante do contexto cultural da cognição. A própria obra mantém uma relação tão complexa com o contexto no qual emergiu o seu ser obra, que este ser oscila e se transforma frente à sua situação. As esculturas de Égina da coleção de Munique, por exemplo, foram arrancadas de seu lugar essencial, os frontões do templo de Afaia, e estão em um museu em espaço fechado e coberto. Oferecem, aí, a experiência que ofereciam emolduradas pelo frontão e tendo o azul do céu mediterrâneo como fundo? Mesmo que, para contornar esse problema do deslocamento da obra de seu lugar essencial de emergência, como sugere Heidegger, em "A origem da obra de arte", fôssemos visitar o templo em Paestum, ou a catedral de Bamberg, ou as ladeiras e largos de Santa Teresa, o que perceberíamos é que o mundo dessas obras, que ali se apresentam em seu aspecto “coisal”, ruiu.
Subtração de mundo e ruína de mundo são fenômenos irreversíveis. As obras, segundo Heidegger, nunca mais serão aquelas que foram. Certamente são elas mesmas que vêm ao nosso encontro, mas “elas mesmas são aquelas que foram” (die Gewesenen). É como as que foram que, segundo Heidegger, elas vêm ao nosso encontro, nos domínios da tradição e da conservação. Daí em diante, segundo ele, as obras permanecem apenas como tais objetos (Gegenstäde). O seu vir ao nosso encontro (Entgegenstehen), segundo ele, “é por certo ainda uma consequência daquele antigo estar em si, mas não é mais esse mesmo. Esse lhes fugiu” (12).
A essência da verdade, como αλήθεια (aleteia), ou desencobrimento (Unverborgenheit), permanece, segundo Heidegger, desde o pensamento grego até a filosofia subsequente, impensada. O não-encobrimento é, para o pensar, o mais encoberto no ser-aí grego, mas, simultaneamente, é o que, desde cedo determina toda a presença do presente (13). Qualquer ente que “vem ao nosso encontro” (begegnet)” e que “nos acompanha” (mitgegnet) detém, segundo Heidegger, “esse estranho poder de oposição da presença, na medida em que ao mesmo tempo sempre se recolhe em um encobrimento” (Verborgenheit) (14).
E é este o limite da perspectiva ontológica da abordagem fenomenológica. O objeto da experiência da presença da obra não é, fora de situação, um ser, mas um haver sido. É uma experiência da presença de algo que, essencialmente, é ausente. Esse ser, ausente na presença da obra, é o histórico. Sob a forma da presença dessa ausência, a obra porta em si o histórico. Poderíamos dizer até que, nesse portar, a obra pode converter-se em documento. Em representação.
Desse modo, nos vemos envolvidos pelo problema da representação, em qualquer âmbito metodológico, a partir do qual se possa abordar o objeto, sobre o qual nos propomos a construir uma narrativa, a qual, em si mesma, como narrativa, será, necessariamente, uma representação do fenômeno poético que visa narrar.
É sobre esse pano de fundo que, como sujeitos da pesquisa, nos colocamos frente à complexidade do objeto, complexidade esta em grande parte decorrente da volatilidade desse, diante de sua situação espaço-temporal, ou geográfico-histórica. Evidentemente, a situação do sujeito da pesquisa não é, também, nunca, um ponto fixo no espaço-tempo. Não se trata, a narrativa proposta, de uma fotografia, capaz de fixar a impressão capturada pela objetiva a partir de uma certa posição no espaço e de um certo momento recortado no tempo. Mas, cabe esclarecer que, nesta pesquisa em particular, a relação espaço-temporal tem características especiais, que tendem a levar a relação entre sujeito e objeto a um certo grau de subjetividade.
Tal grau de subjetividade decorre de que o sujeito da pesquisa habita nos espaços e tempos do bairro. É um morador que aí se demora por um período histórico que se aproxima de meio século. Tão longa imersão espaço-temporal na presença da obra oferece uma perspectiva por um lado privilegiada, pois ampla o bastante para favorecer, pela passagem do tempo e de seus efeitos sobre a obra, um entendimento mais refletido sobre processos originários e prospecções baseadas na experiência. Por outro lado, desprovida de qualquer isenção, pois carregada dos afetos que se formam ao longo de laços tão prolongados entre o ser e o lugar, ou entre o sujeito e o objeto.
Por fim, considerando a complexidade do objeto e a impossibilidade de enquadrá-lo dentro do rigor metodológico das disciplinas envolvidas, em grande parte do recorte disciplinar proposto, bem como o objetivo definido da construção de uma pequena, mas disciplinarmente abrangente narrativa sobre o bairro, nos vemos movidos a tratar essa narrativa como uma poiesis, como uma produção composta de fragmentos colhidos em grande parte ao longo da experiência poética do habitar. Mas também em fontes documentais ou instrumentais capazes de ampliar, complementar e dar sentido à experiência existencial da habitação.
Do ponto de vista instrumental, procuramos construir a narrativa a partir dos dois meios gráficos mais tradicionais: o textual e o imagético. O texto conduz a narrativa e assume as formas que nos pareceram mais apropriadas a cada espaço disciplinar que percorre ao seu longo. Procura ser descritivo, quando aborda as faces geográficas e paisagísticas do objeto; narrativo, quando discorre sobre sua face histórica; analítico, quando busca o entendimento do fenômeno poético.
Também as imagens se dividem em três grupos, segundo o âmbito disciplinar. Para o da geografia, optamos por imagens extraídas a partir do programa Google Earth, eventualmente editadas para destacar aspectos específicos da narrativa. O que se produz a partir desse programa não são nem mapas, nem fotografias, mas representações bidimensionais de um modelo virtual e tridimensional do globo terrestre. Este, é construído a partir de um mosaico de imagens de satélite e aerofotogramétricas obtidas de fontes diversas e compostas no ambiente de um sistema de informação geográfica tridimensional (GIS 3D), por meio de procedimentos computacionais que facilitam e ampliam o poder de análise, gestão e representação de informação geográfica. Os resultados são toscos do ponto de vista estético, mas bastante satisfatórios do ponto de vista analítico.
O segundo grupo é o da iconografia histórica, em particular a partir da reprodução de documentos de época, como cartazes, ilustrações de revistas, fotografias, desenhos e pinturas. Entendemos que tais imagens tem o condão de aproximar o fato histórico da perspectiva fenomenológica pois, junto com o que representam, apresentam uma certa maneira de representar, historicamente situada no presente do fato representado. Poderíamos dizer que expressam um certo espírito de época. Nesse sentido, aquilo que é expresso pelo conceito de “mundo da vida” ou “mundo vivido”, Lebenswelt, no idioma do filósofo alemão Edmund Husserl, professor de Heidegger e criador da fenomenologia (15).
Por fim, um terceiro grupo, formado por fotografias, tomadas pelo próprio autor ao longo dos últimos anos. A fotografia é o testemunho da presença de um presente, por assim dizer instantâneo, diante da obra. É uma impressão que situa o sujeito da pesquisa em um ponto de vista particular sob certas condições de luminosidade que, associados, oferecem uma certa perspectiva espaço-temporal. Tal perspectiva busca cobrir, do ponto de vista do conjunto de imagens apresentadas, a perspectiva disciplinar da poética.
Santa Teresa e suas excentricidades: marcos conceituais
Geografia física, política e humana. Urbanismo, o território da episteme
Santa Teresa é um dos bairros centrais mais excêntricos e de maior atrativo turístico do Rio de Janeiro. Essa característica decorre principalmente da feliz sobreposição de uma rica e variada herança arquitetônica e urbanística sobre um território geográfico muito peculiar. Essa peculiaridade se expressa, por um lado, através de sua contiguidade topológica com o centro histórico, a partir do qual se desenvolveu, e ao redor do qual ainda orbita. Por outro, devido às características naturais deste território, marcado por um relevo topográfico acidentado e coberto por uma secular e densa mata tropical.
Mas esse atrativo deriva também de uma certa singularidade que caracteriza a população que o habita e aos tipos humanos que atuam nas cenas de suas vidas cotidianas, das quais as paisagens do bairro são o cenário pois, da cidade, o que sempre permanece, como afiança Milton Santos, é o território, como lugar de vida de uma população (16).
O território é uma forma composta por formas, porém, quando usado, se compõe de objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado (17). O habitante é o sujeito da relação teleológica entre território e uso, através da qual se forma o primeiro e para a qual se determina a forma. Porém, essa relação não é estritamente mecânica e a forma expressa não só a adequação ao uso, mas também a simbolização das identidades.
A forma que adquire o território, utilizado como espaço urbano, também é uma obra de arte, como sugere Argan em “a história da arte como história da cidade” (18) e uma obra de arte é símbolo, como esclarece o filósofo Martin Heidegger em “a origem da obra de arte” (19). Os artistas, que dão forma a uma obra de arte como um bairro e seu território, são seus habitantes, por meio dos usos que atribuem sentido e significado às coisas. E isso sucede mesmo quando arquitetos, urbanistas, engenheiros, paisagistas e trabalhadores mediam a relação técnica entre os usuários e a obra de arte, na qual o lugar se constitui. Isso ocorre porque o espaço urbano e seus elementos constitutivos não conformam nunca um produto individual completo e acabado. Ele é formado pela sobreposição e composição, que sempre está inacabada e em processo, que resulta de todas as ações e intervenções humanas, cuja expressão permanece presente ao longo do tempo histórico.
Por essa razão, sempre é interessante, na análise de formas urbanas, considerar aspectos identitários daqueles que as usam e vivem nos espaços por elas conformados. No caso de Santa Teresa, esse aspecto pode alcançar uma importância muito significativa, pois o bairro sempre foi o lugar de uma população um tanto quanto excêntrica e cheia de contrastes. Inicialmente, ali viveram, além de quilombolas, beatos e beatas, figuras importantes da história política e atores relevantes da vida cultural da cidade. Tal fato se reflete amplamente na literatura brasileira. Nas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Aloísio Azevedo e muitos outros escritores há muitos personagens de ficção que vivem no bairro. É o caso de Iaiá Garcia, da novela homônima, Sofia de Quincas Borba, Aurélia de Senhora, Amâncio, de Casa de Pensão.
Essa população agitou a vida social do Rio, com seus saraus e viradas que reuniam grandes nomes da literatura, da música e das belas artes. Por esta razão, se converteu em um bastião de intelectuais, músicos e artistas, principalmente a partir de meados do século 19. Devido à sua contiguidade com a Lapa, as prostitutas, proxenetas e outros personagens da vida noturna habitavam também suas franjas mais orientais e a reputação de um bairro perigoso, devido à presença de população percebida como marginal, inicialmente de quilombolas e atualmente de moradores das comunidades faveladas, sempre marcou sua identidade.
Porém os usos, e inclusive as populações que os exercem, por sua vez, dependem, e de algum modo se sentem atraídos, por alguma vocação, por alguma forma de compatibilidade, que já está presente ali, inclusive antes que se estabeleçam quaisquer formas de assentamentos. Esses usos estão, em considerável medida, determinados pelas características fisiográficas e topopolíticas do território em suas relações com seu contexto territorial. Neste sentido, a relação de contiguidade espacial e histórica, entre Santa Teresa e o centro original da cidade, acabou por deixar o bairro em uma posição de grande centralidade. Esta, é sua característica topopolítica. Seu relevo topográfico e o clima mais ameno de suas áreas mais altas, mais próximo ao clima das regiões dos habitantes de origem europeia, e mais saudável que o das regiões que conformam a cidade baixa, onde se desenvolveu o centro histórico, constituem suas características fisiográficas mais notáveis.
O Morro de Santa Teresa, nas encostas do qual se desenvolveu o bairro, encontra-se no extremo noroeste do Maciço da Tijuca, que penetra profundamente e é envolvido pela zona ocidental do centro da cidade. Sua extensa crista se desdobra para o sudoeste e, paralelamente a ela, está implantada a longa rua Almirante Alexandrino. Nas áreas lindeiras a esta rua, desenvolveu-se a primeira onda de ocupação profunda do território do bairro. Da mesma maneira, na mesma direção e em períodos históricos muito coincidentes, flanqueando as franjas noroeste e sudeste do maciço, se desenvolveu a cidade, e se formaram as suas atuais zonas geográficas norte e sul.
Desse modo, o relevo topográfico do maciço associou-se com a posição topológica do bairro, em relação ao centro da cidade, para atribuir a Santa Teresa condições topográficas e geopolíticas de divisor, a um só tempo, das águas que correm em seus relevos e regiões, e do território que, desde suas ruas e encostas, revela-se em paisagens urbanas e naturais de textura complexa e amplitude espetacular.
No entanto, e apesar de sua centralidade topológica, o bairro é um centro completamente excêntrico, tanto no espaço quanto no tempo. Essa excentricidade se deve, desde o ponto de vista espacial, à situação produzida por sua implantação nas cristas e encostas do maciço e às dificuldades de acesso devidas ao seu pronunciado relevo topográfico. Tais dificuldades acabaram por isolar o bairro, impedindo que fosse utilizado como espaço de trânsito entre as áreas norte e sul da cidade. Desse isolamento, resultou que, à medida em que essas áreas se desenvolveram, e foram gradualmente interconectadas por túneis, o desenvolvimento imobiliário do bairro praticamente se estancou. Daí, resultou que suas características, e a escala de seus espaços e edifícios permaneceram, na maioria de suas ruas, sem mudanças, durante todo o tempo em que o resto da cidade adquiriu as formas, a escala e a aparência que marcam uma grande metrópole contemporânea.
Daí resulta que, um visitante atento, que caminhe pelas ruas do bairro, terá a estranha sensação de estar, simultaneamente, fora e dentro do Rio. De estar fora, porque a ocupação urbanística e arquitetônica à pequena escala, e os espaços acolhedores e envolventes, dispõem-se nas ladeiras cobertas por um lindo e denso bosque tropical em um ambiente típico de um bairro periférico, ou de uma pequena vila histórica. De estar dentro, porque a implantação do bairro à cavaleira da cidade oferece, desde o espaço de suas estreitas ruas, becos e pequenas praças, perspectivas muito amplas da paisagem, a partir das quais é possível perceber-se rodeado por uma imensa metrópole, que se desenrola até muito mais além do mais distante horizonte.
Essa situação oferece impressionantes vistas panorâmicas de quase toda a região metropolitana, do centro e das zonas norte e sul da cidade, a partir da qual se desdobram a Baía de Guanabara, o Oceano Atlântico, e as montanhas da Serra do Mar, em composições paisagísticas carregadas de dramaticidade. Porém, para ascender a muitas dessas amplas vistas, amiúde atravessa-se becos estreitos, com pavimentos antigos em blocos irregulares de pedra e desenho tortuoso. Ao caminhar pelas ruas e pequenas praças e largos do bairro, em poucos passos, se passa, a todo momento, de uma sensação de acrópoles a outra de claustro. Em tais circunstâncias, é notável o impacto produzido pela sequência de imagens, que se apresentam ao olhar do caminhante. Isso ocorre porque, como explica Gordon Cullen, ao discutir o conceito de visão serial, em seu clássico Paisagem urbana, o cérebro humano reage aos contrastes, isto é, às diferenças (20).
A todos esses contrastes de natureza espacial, devem-se somar aqueles de natureza estilística, legados pelo longo processo histórico em que se desenvolveu a ocupação do território. Tão extenso período produziu uma grande variedade de obras arquitetônicas e composições urbanísticas e paisagísticas que se associam em uma poética de delicado ecletismo. Tais obras cristalizaram, nos tempos e espaços do território, o testemunho do estado e das origens culturais das populações que ali habitaram. E que, nesse ato de habitar, expressaram a si mesmas e ao seu ethos.
As origens do processo histórico de ocupação
Escravos e beatas, o território livre do quilombo e a capela do Menino Jesus
Até a chegada dos europeus, e a fundação da cidade em 1565, as áreas no entorno da baía foram habitadas sucessivamente por índios dos troncos linguísticos macro-jê e tupi, procedentes da Amazônia. Quando ali se instalaram os portugueses, tais áreas eram habitadas pelos tamoios (21). Após 1550, quando se deu o início do tráfico negreiro para o Brasil, os primeiros habitantes do Morro do Desterro, posteriormente Morro de Santa Teresa, foram os escravos fugitivos, que se estabeleceram ali em quilombos, comunidades de homens e mulheres livres. Existem registros dessas fugas e da presença de fugitivos nas matas do Desterro. Durante mais de dois séculos, a presença de quilombolas deu ao morro a reputação de lugar perigoso.
A personagem central da saga do bairro foi Jacinta Pereira Alves, nascida em 1715, no dia do bicentenário da santa espanhola Teresa de Ávila, fundadora da Ordem Carmelita Descalça. Dedicada a uma vida monástica, se mudou com sua irmã para a Chácara da Bica, localizada na Ladeira do Desterro. Ali, em 1742, construíram uma pequena capela dedicada ao Menino Jesus. Em torno dessa capela, foi construído posteriormente o convento das Carmelitas de Santa Teresa, que legou seu nome ao bairro. A capela, e o atual convento, estavam onde está hoje a Ladeira de Santa Teresa. A princípios do século 17, a parte da ladeira que dava para o centro já era o lugar de festas populares e procissões religiosas (22).
O século 19: darwinismo social e febre amarela
A imigração europeia, o Aedes aegypti e a fuga da cidade baixa: o território da saúde
O século 19 foi marcado por uma mudança conceitual abrupta e radical nas diretrizes que ordenaram a força de trabalho na economia brasileira. Essa mudança produziu um impacto decisivo nos fluxos migratórios para o país. Tal fato deve ser contextualizado pela emergência da Revolução Industrial (1760) e pelas crescentes dificuldades impostas ao tráfico e comércio de escravos de origem africana, por parte das economias avançadas no processo de industrialização e pelos interesses envolvidos nesse processo (23).
Muitos registros documentais demonstram a consolidação do branco como uma prioridade, na definição do tipo de indivíduo que se desejava e aceitava na sociedade da época. Inicialmente, não era qualquer branco. Era o católico branco. Porém, a questão religiosa gradativamente passou a segundo plano (24).
Um evolucionismo social darwinista propunha uma análise da sociedade e da diversidade humana no campo da biologia. A partir desse momento, as pessoas foram classificadas e julgadas segundo seu pretenso grau de evolução biológica. Caberia aos povos mais evoluídos levar o progresso aos mais primitivos. Esse tipo de pensamento justificou as missões de civilização, as políticas discriminatórias e constituiu-se como o núcleo para a compreensão de porque se elegeu o europeu como aquele que era apropriado ao projeto de construção da nação brasileira no século 18. Seria o mais apto para construir uma nação branca, moderna e civilizada (25). Desse projeto, derivou a imigração europeia que, à época, constituiu as populações que acabaram, por razões sanitárias, por povoar Santa Teresa.
Em 1850, um surto de febre amarela provocou um processo intenso e acelerado de desenvolvimento do bairro. Tal processo se constituiu na primeira expansão urbana externa ao núcleo inicial de assentamento português. A população que, nesse momento, possuía os meios para fazê-lo, abandonou a cidade baixa e subiu o morro de Santa Teresa, para escapar dos mosquitos que transmitiam a doença (26).
Essa onda de ocupação foi feita, inicialmente, em parte por uma aristocracia portuguesa decadente e, em outra, por uma burguesia ascendente, composta principalmente pelos imigrantes brancos de origem europeia, que preferiram viver em Santa Teresa, um bairro em que era possível refugiar-se do torvelinho e das ameaças sanitárias da cidade baixa, com seus amplos banhados, e onde era possível encontrar um clima mais temperado, mais próximo ao de suas regiões de origem (27).
Dessa mestiçagem cultural, surge a babel estilística que marca a produção arquitetônica do bairro do século 19 ao 20. Porém, há também muitos exemplos de estilos norte europeus, como os românticos chalés em estilo enxaimel, referências de climas mais frios, e até mesmo alguns raros exemplares em que podem ser percebidas as emergentes influências dos movimentos art nouveau, dèco e moderno.
O impulso das transformações tecnológicas
O aqueduto, o funicular, o bonde, as mulas e a eletricidade: o território da técnica
Inicialmente, além do aqueduto, dois vetores de caráter técnico determinaram a ocupação do território do bairro. O primeiro teve lugar ao largo das franjas do Morro do Desterro, desde a Lapa, através de becos tortuosos e belas escadarias e nas áreas lindeiras a rua Monte Alegre, a rota habitual das diligências. Em 1872 foi implantado o primeiro segmento das linhas de bonde, que hoje caracteriza a identidade do bairro. Inicialmente tracionado por mulas, circulava somente no alto do morro (28).
Uma forte contribuição à chegada dos novos residentes foi a implantação do funicular, que iniciou operações em 13 de março de 1877 e funcionou até 1926. Em 7 de novembro de 1892 foi firmado o contrato, entre a Companhia Carioca de Ferrocarril e o Município, para a exploração, por trinta e cinco anos, dos serviços de transporte por bondes. Tal contrato trazia cláusulas específicas, que requeriam que o percurso se fizesse por sobre o aqueduto dos Arcos da Carioca, atualmente da Lapa, e que o sistema de tração elétrica fosse implantado até 1896 (29).
Essa verdadeira revolução técnica criou importantes instalações de transporte e reduziu drasticamente o tempo de viagem entre o centro histórico e o bairro, acelerando o processo de ocupação do território do bairro. A partir daí o caráter mais rural do lugar foi se transmutando em urbano. As grandes chácaras foram gradativamente parceladas em lotes urbanos, com a implantação de grandes mansões, inicial e principalmente nos lotes à montante das vias. Posteriormente, em lotes menores à jusante, logo surgiram as casas menores ou pequenos prédios de uso multifamiliar, ocupados pela ascendente burguesia urbana, que surgiu nas últimas décadas do Império.
Rua Almirante Alexandrino: relevo topográfico, história e destino
A produção dos lugares pela história: o território do tempo e o tempo do território
O segundo vetor de ocupação desenvolveu-se ao largo da rua Almirante Alexandrino, que cruza o bairro paralelamente à crista do morro, desde o seu extremo nordeste, onde está situado o largo do Curvelo, até o seu extremo ao sudoeste, onde ficava a Estação Silvestre, onde estavam os mananciais que abasteciam o aqueduto. Ao longo da crista, e nas encostas ao noroeste desta, a rua desdobra-se em uma sucessão de curvas apertadas e pequenas retas em uma rampa quase imperceptível, necessária ao fluxo das águas provenientes do manancial. Tal implantação sinuosa, acompanhando a cota topográfica de nível, determinou uma seção transversal mais ou menos típica, que segue grande parte de seu traçado.
O lado à montante da via sempre está delimitado por muros de arrimo, feitos de cantaria rústica, muitas vezes canjicada. Pouco acima, não muito afastadas dos muros, estão implantadas grandes mansões, em cota de altura bem mais elevada. Por entre as mansões e acima destas, abrem-se as perspectivas para as encostas do morro, que sobem até a crista, sempre recobertas por uma exuberante mata tropical.
Para o lado à jusante da rua, e por sobre o baixo topo dos muros de arrimo que a sustentam, para o observador situado em seus passeios, abrem-se amplas perspectivas panorâmicas do centro e zona norte da cidade, já nos primeiros planos da paisagem. Nos planos posteriores, desdobram-se os fundos da Baía de Guanabara com suas ilhas, e os bairros mais afastados da região metropolitana, seguidos pelas cristas da Serra do Mar, que fecham o último horizonte da composição.
Os lotes à jusante dos segmentos mais altos da rua foram ocupados durante o período compreendido entre os séculos 19 e 20. Encontram-se ali desde pequenas casas até edifícios multifamiliares de cinco ou seis pavimentos; três deles do nível da soleira para cima e os demais para baixo. Trata-se de um tipo de implantação muito característico desse tipo de situação, com um pátio de ventilação e iluminação que se forma entre o muro de arrimo e o plano de fachada do edifício, que, por sua vez, afasta-se alguns metros da testada do lote.
Essa configuração espacial, quase sempre sob a sombra de frondosas árvores, é um dos traços característicos da poética da rua Almirante Alexandrino. Outro, é a presença do próprio bonde, com seus ruídos característicos e seus trilhos de desenho sinuoso, assentados sobre o piso, ora revestido por blocos de pedra, ora por capa asfáltica. O plano do teto, sub divo, entrecortado pelos cabos das redes elétricas e de telefonia, que cruzam a vista do céu em múltiplas direções, de forma quase caótica, completa a poética desses espaços. Trata-se, aqui também, de uma situação na qual a forma topográfica do relevo associou-se, por um lado com o processo histórico na destinação dos espaços aos seus usos atuais e, por outro, na determinação das formas urbanísticas e arquitetônicas que lhes são características.
O nascimento das favelas cariocas: a terceira onda de ocupação
A Guerra de Canudos e a guerra às drogas: o território do estado de exceção
As várias favelas implantadas sobre as encostas ao noroeste do morro, também formam parte da poética do bairro. São um testemunho das desigualdades socioeconômicas historicamente acumuladas. São as sucessoras dos assentamentos quilombolas dos séculos anteriores. Como esses o foram antes, são agora a causa da má reputação do bairro e de sua fama de lugar perigoso. Mas, apesar disso, e talvez até por isso mesmo, delas emana uma beleza trágica, a um só tempo multicolor e descolorida.
Ao contrário do processo centenário de ocupação das encostas adjacentes ao centro, a ocupação das encostas e partes baixas voltadas para o noroeste ocorreu em umas poucas décadas. Teve lugar a partir do final da Guerra de Canudos em 1897, quando os soldados que regressaram ocuparam parcialmente seus espaços. Essa ocupação se intensificou desde os primeiros anos do século 20, quando uma ambiciosa reforma urbana, conduzida pelo então prefeito, engenheiro Francisco Pereira Passos, sob pretextos higienistas, e sob forte influência do barão Geroges-Eugène Haussmann e de sua reforma de Paris, expulsou os setores mais pobres da população dos cortiços do centro, remanescentes da urbanização colonial. Também contribuíram com essa onda de ocupação os intensos processos de imigração de populações originárias do nordeste do Brasil. Tais populações, que foram de lá expulsas por sucessivas secas e pelos interesses latifundiários, foram atraídas para o Sudeste, pelo processo de industrialização que então se verificava na região (30).
Ao longo desses segmentos da rua Almirante Alexandrino os tecidos das cidades formal e informal se interpenetram, em uma confrontação muito direta e próxima. Ocorre uma forte permeabilidade visual entre a cidade legal, cujas formas sempre estão de alguma maneira determinadas pelo poder do Estado sobre o uso do território e a cidade marginal, cujo território é ocupado pelos excluídos da primeira.
Essa exclusão proporciona um significativo grau de independência no que diz respeito à organização social e comunitária no interior de seus territórios. Daí resulta que esses estão sempre politicamente hegemonizados pela força dos mais fortes, que se organizam ora como facções criminosas, ora como milícias. Disso, resulta a impotência do Estado para aplicar seu poder normativo na determinação das formas urbanísticas e arquitetônicas. Como explica Giorgio Agamben (31), o banido, o posto de bando, o bandido, é precisamente o livre. E a liberdade é o que só se pode encontrar fora dos limites territoriais da ação política ordenadora do poder soberano do Estado.
Como consequência, tais proximidade e permeabilidade só fazem com que as distâncias e diferenças se destaquem. Do ponto de vista morfológico, onde os alinhamentos e gabaritos de altura característicos da cidade formal sempre expressam alguma forma de racionalidade e ordem reconhecível, tal contraste é impactante. A organicidade, complexidade, rugosidade e irregularidade dos espaços no território informal lembram, tipologicamente, os da cidade medieval europeia. Porém, o contraste escalar e a pobreza material revelam claramente outro território, muito além do que se poderia definir como contiguidade, dos pontos de vista dos tecidos socioeconômico e geopolítico da cidade.
Os limites entre os territórios das cidades formal e informal mantêm diferentes graus de porosidade. Do ponto de vista do acesso da população aos espaços de um ao outro, essa porosidade é distinta. A população residente nas favelas geralmente vende sua força de trabalho no território da cidade formal e cruza as fronteiras dessa diariamente, embora sempre sob a ostensiva vigilância de unidades policiais situadas nas cercanias dos becos e ruelas onde se faz a passagem. Por outro lado, por causa das frequentes e muito violentas incursões policiais no território das favelas, esses espaços de acesso também se mantêm sob a ininterrupta vigilância do crime organizado. Esse, por sua vez, é refratário à presença de pessoas que não pertencem à comunidade, em particular pelo temor de que sejam olheiros da polícia ou de facções adversárias, que se mantêm em ininterrupta guerra, pela conquista dos territórios, onde se situam os pontos de vendas de drogas criminalizadas que, a partir dali, são comercializadas para as populações da cidade formal.
Porém, há áreas onde a impermeabilidade é absoluta e resulta de fatores físicos, alguns de origem histórica. Foi das encostas de Santa Teresa que foram extraídas as pedras com as quais foi edificado o centro histórico do Rio. As pedreiras a céu aberto dão testemunho sobre esse fato. Elas são feridas não suturadas nem cicatrizadas que continuam expostas à paisagem. A ocupação desordenada de seus limites seguidamente coloca as fronteiras do território das favelas nas bordas de precipícios absolutamente insuperáveis. Tais situações são o signo das contradições que presidiram a forma em que, no processo histórico e em seu tecido sociotécnico, a sociedade estratificou-se dentro de si mesma, e relacionou-se com os espaços urbanos e a paisagem.
O relevo topográfico da cidade e o desenvolvimento dela ao redor do Maciço da Tijuca, associado com a ocupação de suas encostas pelas populações marginalizadas, causou esse estranho e paradoxal fenômeno urbano, que se manifesta topologicamente no fato geográfico da interioridade e centralidade do que é social e economicamente periférico. E é precisamente essa centralidade do periférico que traz à presença e esclarece, sem mascaramento possível e de maneira particularmente reveladora, as contradições de uma sociedade partida e de uma elite oligárquica desavergonhada de suas origens racistas e escravocratas, e de suas práticas históricas do capitalismo mais predador e selvagem.
Parque Nacional da Tijuca: a floresta ressuscitada
Paisagens naturais e naturezas artificiais: o território da contradição
Após a Favela dos Prazeres, a direção geral da rua Almirante Alexandrino sofre uma inflexão ao sudeste, penetrando na Floresta da Tijuca, onde se localiza o parque nacional homônimo. A própria via é o limite da face mais oriental do parque. Trata-se de uma exuberante e muito densa mata tropical, onde se fazem presentes inúmeros espécimes da fauna e da flora característica da Serra do Mar. Mas não é uma floresta original.
Já no século 19, a exuberante Mata Atlântica, que recobria as montanhas do Maciço da Tijuca, fora dizimada pelo corte de madeiras nobres, pela extração de lenha para os engenhos de cana, e pelos desmatamentos para o cultivo de milho, mandioca e café, que faziam a base da economia fundada na força escrava de trabalho que predominava na região. No entanto, à medida em que eram devastadas as matas, escasseava a água que abastecia a região central da cidade. Em vista disso, em 1861 o então Imperador do Brasil, Dom Pedro II, criou, a Floresta da Tijuca, iniciando um ambicioso programa de recuperação da vegetação. Sob o comando do Major Archer, e ajuda de cinco escravos, mais de 100 mil árvores nativas foram plantadas em treze anos.
É essa floresta, regenerada pela ação do homem e da natureza, que compõe o Parque Nacional da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo. Criado em 1961 o Parque tem cerca de 4000 hectares. Possui 1550 espécies vegetais, rica fauna, 120 sítios arqueológicos, históricos e arquitetônicos, grutas, cachoeiras, vales e montanhas. Com centro de visitantes, casa de pesquisadores e trilhas sinalizadas, o parque transformou-se em uma área de esporte e lazer, onde a população da cidade pratica escaladas, ginástica e voo livre, convive com práticas religiosas e faz passeios. Ali está, cravado sobre a divisa com Santa Teresa, o Morro do Corcovado (710 metros), o atrativo turístico mais visitado do país, no topo do qual situa-se a imponente estátua do Cristo Redentor, com 38 metros de altura, de onde se descortina a mais abrangente vista panorâmica da cidade (32).
A reveladora poética de Santa Teresa
Sabor e saber ― a experiência da verdade através da fruição da obra de arte: o território da poesia
As paisagens do bairro de Santa Teresa são compostas por esses contrastes e confrontos entre natureza e cultura, civilização e barbárie, passado e presente, que se apresentam sob a forma de vistas panorâmicas espetaculares, mas reveladoras das contradições sócio econômicas de uma sociedade cindida, onde formalidade e marginalidade, exclusão e violência, riqueza e pobreza traçam fronteiras visíveis e invisíveis, permeáveis e impermeáveis.
O próprio bairro como um todo, com todas as suas divisas e fronteiras, e em sua central exterioridade em relação ao centro, é a mais significativa fronteira física, social e cultural a dividi-la. Nada além dos túneis liga as zonas Sul e Norte da cidade, em nenhuma categoria social, antropológica, econômica, cultural ou paisagística, que possa ser adotada para a análise de suas características. Mas Santa Teresa é o único lugar geográfico a partir do qual essa impossível, mas fática unidade pode ser apreendida pelo olhar, em suas intangíveis extensão e complexidade, com apenas um rápido giro do corpo no espaço.
Ao caminhante, que ociosamente flane sem rumo nem sentido certo por seus espaços, se dá o desencobrimento de todos esses contrastes que compõem a obra de arte sempre inconclusa e em obra que o bairro e a cidade são. E a todo o momento, essa obra de arte que é o bairro se desencobre como algo em relação ao que, em sua central excentricidade, ela está fora: a cidade. E se revela perante algo que a constitui e em relação ao que ela está inexoravelmente dentro: a história. Desencobrimento, descobrimento, desocultação, revelação são traduções habituais para o português da palavra Unverborgenheit, do idioma alemão. Tal palavra é adotada pelo filósofo Martin Heidegger para traduzir o sentido originário da palavra grega ἀληθεία (aletheia), vertida pelos romanos para o latim como Veritas. Mas a palavra verdade (Wahrheit) não tem em Heidegger o sentido de expressar a correspondência entre a representação e a coisa representada. Segundo o filósofo, no idioma grego clássico, da época em que se originou a filosofia, há um sentido de trazer à vigência, ou ao real, aquilo que, para aqui chegar, procede do que não vige e se faz presente. Aquilo que é tecnicamente produzido (33).
Conclusões
Em Santa Teresa, a ação incidental dos usos realizados por meios técnicos como a implantação de ruas, linhas e fiações dos bondes, muros de arrimo e construções de todo o tipo, por seus habitantes ao longo da história, sobre o acidental do relevo topográfico, que caracteriza seu território geográfico, produziu a beleza que se desencobre em e a partir de seus espaços. Ocorre que a técnica, no pensamento de Heidegger, não é um simples meio. Para ele, técnica é, ela mesma, uma forma de desencobrimento. A palavra técnica provém, segundo ele, do grego τεχνικόν (technicón). Diz do que pertence a τεχνη (techné). Segundo Heidegger, devemos considerar que, τεχνη (techné) não constitui apenas a palavra do fazer da habilidade artesanal, mas também do fazer na grande arte e das belas-artes. A τεχνη (techné) pertence à produção, a ποίησις (poiesis), é, portanto, algo poético (Poietisches) (34). E é precisamente dessa natureza o caráter técnico da poética de Santa Teresa.
Parodiando Heidegger em uma de suas mais belas definições sobre o que é a essência da arte, poderíamos dizer que Santa Teresa é uma sagração e um refúgio. A sagração e o refúgio em que, cada vez de maneira nova, o real presenteia o homem com o esplendor até então encoberto de seu brilho, a fim de que, nessa claridade, possa ver com mais pureza, e escutar, com maior acuidade, o apelo de sua essência (35). Possa, ao saboreá-la, saber-se.
notas
NA ― Esse trabalho foi apresentado no 4º Congresso ISUF-H (2020), realizado remotamente entre 28 e 30 de setembro de 2020 e publicado em uma versão mais extensa em espanhol nos anais deste evento <https://bit.ly/3Hsm1T5>. Uma versão resumida, também em espanhol, foi apresentada à revista Quaderns de Recerca em Urbanismo ― Revistes, da Universidade Politécnica da Catalunha e aguarda a publicação. Um pequeno ensaio exploratório e informal foi publicado em português em Arquiteturismo, em julho de 2019, sob o título ‘A poética do bairro de Santa Teresa”. CUNHA E SILVA, Luiz Felipe da. A poética do bairro de Santa Teresa. Arquiteturismo, São Paulo, ano 13, n. 148.01, Vitruvius, jul. 2019 <https://bit.ly/3RlGcGR>. A presente versão acrescenta uma seção inicial com uma discussão sobre os problemas metodológicos suscitados pela complexidade do objeto e reintegra em parte as seções n. 7 e n. 8 do original constante dos anais e ausente na versão em espanhol da Quaderns de Recerca em Urbanismo por limitação de espaço editorial.
1
FRAMPTON, Kenneth. Rapel à l'ordre: argumentos em favor da tectônica. In NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica 1965-1995. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 556-569; FRAMPTON, Kenneth. Uma leitura de Heidegger. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 474-480; FRAMPTON, Kenneth. Perspectivas para um regionalismo crítico. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 503-519.
2
NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 443-460; NORBERG-SCHULZ, Christian. O pensamento de Heidegger sobre arquitetura. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 461-473.
3
FRASCARI, Marco. O detalhe narrativo. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 538-555.
4
GREGOTTI, Vittorio. O exercício do detalhe. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 535-537.
5
PALLASMAA, Juhani. A geometria do sentimento: um olhar sobre a fenomenologia da arquitetura. In NESBITT, Kate (org.). Op. cit., p. 481-489; PALLASMAA, Juhani. Essências. São Paulo, Gustavo Gili, 2018.
6
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In A origem da obra de arte. Apud MOOSBURGER, Laura de Borba. “A origem da obra de arte” de Martin Heidegger: tradução, comentário e notas. Dissertação de mestrado. Curitiba, PRPPG UFPR, 2007, p. 26.
7
Idem, ibidem, p. 43.
8
Idem, ibidem, p. 12.
9
Idem, ibidem, p. 13.
10
MOOSBURGER, Laura de Borba. Op. cit., p. 70.
11
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte (op. cit.), p. 32.
12
Idem, ibidem, p. 26-27.
13
Idem, ibidem, p. 36.
14
Idem, ibidem, p. 38.
15
MISSAGGIA, Juliana. A noção husserliana de mundo da vida (Lebenswelt): em defesa de sua unidade e coerência. Trans/Form/Ação, n. 41 (1), jan./mar. 2018 <https://bit.ly/3j5l0bf>.
16
SANTOS, Milton. O retorno do território. Observatorio Social de América Latina, año 6, n. 16, Buenos Aires, Clacso, jun. 2005 <https://bit.ly/3WSDgCJ>.
17
Idem, ibidem.
18
ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
19
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte (op. cit.), p. 7-8.
20
CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa, Edições 70, 1983, p. 11.
21
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. 2ª edição. São Paulo, Ática, 2003, p. 19.
22
PIMENTEL, Márcia. Santa Teresa das mil e uma histórias e outros carnavais. Bairros Cariocas, Rio de Janeiro, MultiRio, 24 fev. 2014 <https://bit.ly/2klAztH>.
23
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4ª edição. São Paulo, Unesp, 2007.
24
Idem, ibidem.
25
Idem, ibidem.
26
COSTA, Zouraide Guerra Antunes; ROMANO, Alessandro Pecego Martins; ELKHOURY, Ana Nilce Maia; FLANNERY, Brendan. Evolução histórica da vigilância epidemiológica e do controle da febre amarela no Brasil. Rev Pan-Amaz Saude; n. 2 (1), 2011, p. 11-26.
27
LUCENA, Felipe. História do bairro de Santa Teresa. Diário do Rio, Rio de Janeiro, 14 abr. 2016 <https://bit.ly/2FmoqPY>.
28
MORRISON, A. (2014) Santa Teresa Tramway: Vehicles, 1875 – present. Tramz <https://bit.ly/3XBtTsc>.
29
Idem, ibidem.
30
FERRARI, Monia de Melo. A migração nordestina para São Paulo, seca e desigualdades regionais. Dissertação de mestrado. Florianópolis, PPGSP UFSC, 2005 <https://bit.ly/3j3mUsP>.
31
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, UFMG, 2002.
32
Reserva da Biosfera da Mata atlântica <https://bit.ly/3HtIYGq>.
33
HEIDEGGER, Martin [1954]. A questão da técnica. In Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2001, p. 11-38.
34
Idem, ibidem, p. 17.
35
HEIDEGGER, Martin [1953]. Ciência e pensamento do sentido. In Ensaios e conferências (op. cit.), p. 39.
sobre o autor
Luiz Felipe da Cunha e Silva é arquiteto (Universidade Santa Úrsula), mestre em Saúde Pública (Ensp Fiocruz) e doutor em Psicologia (PUC Rio) e em Urbanismo (ProUrb FAU UFRJ). Professor associado do DPA FAU UFRJ.