Com o intuito de diminuir a distância entre a reflexão e a prática nas aulas de projeto de arquitetura, bem como propiciar uma discussão sobre os espaços da casa e suas relações com o usuário-participante, disponibiliza-se o relato de um exercício de projeto aplicado a estudantes ingressantes no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu que teve como proposta conceber e construir módulos móveis, que configuram arranjos espaciais variados ao oferecerem suporte ao usuário para realização das atividades cotidianas. A metodologia empregada neste relato está apoiada em dois pontos: na recapitulação das discussões teóricas e das referências de projeto sobre o tema da casa que se mostram alinhadas com o tipo de espaço proposto no exercício de projeto aplicado aos estudantes, e na descrição sistemática das etapas do exercício, ilustrada com imagens obtidas no dia a dia em sala de aula. Ao registrar os projetos construídos, as imagens obtidas fornecem elementos, juntamente com a descrição do processo de trabalho, para que se estabeleça, ao final do texto, uma breve discussão sobre os resultados alcançados.
Uma experiência didática sobre o espaço da casa em transformação
Apresentam-se aqui os princípios enunciadores, os resultados práticos e as discussões envolvidas em um exercício de projeto de arquitetura cuja etapa final é a construção, em escala 1:1, dos elementos projetados e detalhados pelos alunos. Trata-se de um exercício aplicado continuamente por muitos anos e cujas origens remontam ao início do curso de Arquitetura nesta instituição de ensino, contando com o envolvimento de diversos docentes ao longo dos anos. A versão do exercício apresentada neste artigo foi desenvolvida e implementada a partir de 2016 e contém significativas modificações quanto à proposta e aos resultados anteriores, cuja versão já foi devidamente publicada em outras oportunidades (1). Apesar das alterações presentes nesta nova versão, que se referem principalmente às dimensões e à mobilidade do elemento projetado, ressalta-se que o exercício, no formato aqui apresentado, desdobrou-se de exercícios anteriores e que as alterações implementadas se devem a exigências práticas e operacionais. Ainda assim, o exercício manteve o tema, as etapas, as dinâmicas pedagógicas e o sistema construtivo originalmente adotado, e foi capaz de acrescentar novas abordagens e investigações ao problema da moradia.
O relato do exercício justifica-se na medida em que propicia o registro dessa valiosa experiência e contribui para o debate geral sobre o ensino de projeto de arquitetura, historicamente marcado pelo afastamento entre projeto e construção. A ação de escrever este texto, por sua vez, constitui um momento de reflexão e autocrítica sobre o exercício realizado, desencadeando processos de aprimoramento e discussão. A sistematização dos trabalhos, na forma deste artigo, traz também a oportunidade de avaliar um pequeno conjunto da produção discente ao longo dos quatro semestres em que o exercício foi aplicado.
O exercício desenvolve-se através de etapas sucessivas que favorecem o aprimoramento de habilidades úteis ao arquiteto em diversos campos de atuação profissional. Resumidamente, tem início com o estudo das medidas do corpo e de equipamentos domésticos; após a apresentação do enunciado do exercício, elabora-se um projeto preliminar de módulos móveis (que foram apelidados de carrinhos) para servir como suporte às atividades do morar — descansar, cozinhar, banhar-se, sociabilizar; em equipes de estudantes, é desenvolvido o projeto destes módulos contemplando a solução espacial e construtiva, baseada em painéis estruturados de madeira e papelão; as melhores propostas são escolhidas pelo conjunto de alunos e professores, através de um processo participativo que promove a reflexão qualitativa das soluções apresentadas pela turma; os trabalhos escolhidos para serem construídos no canteiro passam então a ser detalhados até a etapa de projeto executivo. A partir desse momento, os estudantes, já organizados em grupos maiores, realizam a compra de material e a confecção dos modelos na escala 1:1. Todo o processo é documentado pelas equipes em um diário de obra e um vídeo, que permanecem como registro e memória da disciplina. Ao final, ocorre a demonstração in loco dos equipamentos propostos pelos estudantes nos diferentes arranjos possíveis, estimulando a percepção espacial, dimensional e funcional. A vivência da arquitetura construída é acompanhada por discussões sobre o processo de trabalho e sobre as soluções encontradas.
O tema tratado — a organização da casa a partir de elementos soltos que concentram usos e organizam o espaço — é abordado conceitualmente e exemplificado com obras arquitetônicas que contribuem com a proposta do exercício. Este conjunto teórico e de obras embasa o campo de ação e estimula a experimentação dos arranjos do espaço doméstico pelos estudantes.
Trabalhos preliminares: preparação para o exercício
As primeiras aproximações ao exercício de projeto são feitas através de estudos preparatórios para entendimento das medidas do corpo humano e das superfícies que servem de apoio ao mesmo (assentos, mesas, estrados, bancadas), considerando-se os espaços necessários para sua utilização e movimentação. Após uma aula introdutória sobre antropometria e ergonomia, os estudantes organizam-se em grupos, aferem entre si as medidas do corpo e compreendem os pontos de articulação, desenhando em seguida as vistas ortogonais do corpo humano nas principais posições — sentado, em pé, de frente, de lado etc. Esta etapa induz a um raciocínio de projeto que considera alturas, larguras e profundidades do corpo como dado fundamental para o desenho dos módulos móveis, de modo a conceber, na etapa de projeto, espaços e superfícies adequadas aos usuários para a realização das diversas atividades a serem desempenhadas.
O enunciado do exercício: dispondo as regras para o enfrentamento do problema
A principal característica do exercício proposto aos estudantes para o enfrentamento do programa doméstico é a total separação entre o arcabouço da construção — a superfície envolvente da casa — e os módulos móveis interiores a serem projetados, que concentram todos os elementos necessários ao desempenho das atividades relacionadas ao morar.
Considera-se que as principais atividades da casa — dormir, estudar, comer, cozinhar, lavar-se, armazenar, conviver — ancoram-se em carrinhos, dispositivos sobre rodas que são capazes de se movimentar pelo livre espaço da casa. O espaço da casa foi entendido como uma superfície interior, zona desobstruída e protegida por um invólucro com dimensões de 6x8 metros em planta e 5 metros de pé direito. Parte-se, assim, de um abrigo preestabelecido a ser ocupado por elementos de suporte para atividades cotidianas, que se movimentam dentro de um espaço totalmente flexível.
A cada equipe de alunos cabe conceber uma dupla de carrinhos, cada um deles com área máxima em planta de 4 metros quadrados, cobertura acessível e dois usos simultâneos a serem combinados aleatoriamente no mesmo carrinho (por exemplo: comer e banhar-se, armazenar e dormir, cozinhar e estudar etc.). Este par de carrinhos projetado pelo grupo deve apresentar um funcionamento isolado (cada carrinho funcionando independentemente) mas também em conjunto, podendo o desenho de um carrinho ser complementado ou alterado pela presença do outro. Ao se movimentarem, os carrinhos devem assumir diferentes arranjos para atender a, pelo menos, três situações distintas: uso diurno, uso noturno, e um layout para encontros e sociabilização.
Como recomendação, enfatiza-se que a proposta obtida nos três diferentes arranjos sugeridos pela equipe faça sentido sob o ponto de vista funcional: o arranjo noturno deve privilegiar o descanso, o arranjo para festas deve incentivar o encontro e uma condição gregária dos ocupantes, e o arranjo diurno pretende facilitar atividades como estudar ou cozinhar. Nestas condições, nem todas as partes do carrinho precisam ser acionadas ou acessadas ao mesmo tempo e em todos os arranjos.
O desafio do exercício excede a pensar elementos autônomos ou elementos do mobiliário como camas, armários etc. Os carrinhos, isolados ou combinados, definem espacialidades e concentrações de uso. Além de alterar o espaço a sua volta, o formato de cada carrinho permite antecipar os modos como este encontrará o próximo, para que seu desenho possa se concluir ou se transformar nessa justaposição. Assim, é possível, através da movimentação dos carrinhos, abrir ou fechar espaços, esticar planos de apoio ou combinar os degraus de uma escada para ascender a um plano superior. Também é possível tirar proveito do desnível existente entre o carrinho (que é uma plataforma sobre rodas com altura de 15 centímetros) e o chão. Isso possibilita que se use o módulo ora subindo e adentrando o carrinho, ora permanecendo fora dele, a partir do nível zero da habitação, o que determina graus diferentes de penetração no elemento construído, caracterizando-o como um local que se adentra ou como mera superfície ativa voltada ao seu exterior. Além disso, o posicionamento desses elementos móveis define diferentes zonas no espaço interior da casa, podendo os mesmos atuarem como anteparos para resguardar certas porções do espaço para um uso diferenciado. Outro modo de ocupar o espaço, que também faz parte do enunciado do exercício, resulta em dispor mobiliário solto entre os carrinhos, como mesas ou assentos, no nível zero da moradia. Estes mobiliários complementares podem ser previstos nos diferentes layouts propostos pelas equipes, potencializando o uso não apenas dentro, mas também entre os carrinhos.
Outra consideração do exercício envolve o conceito de plug-in. O conceito é baseado no princípio da separação complementar entre elementos. No campo da arquitetura, é comum reconhecer diferentes categorias que compõem o edifício: há elementos estruturais, de caráter mais fixo e permanente, e componentes ou subsistemas secundários, como caixilhos, forros e instalações. N. J. Habraken (1928_) fundamenta sua teoria dos suportes (2) nesta separação fundamental entre os elementos estruturadores, de caráter mais definitivo, e aqueles elementos que podem ser adaptados, completados ou substituídos pelo usuário. Partindo de estruturas moduladas, o arquiteto holandês avança na determinação de zonas aptas a receber usos e equipamentos, sem contudo predefinir esses usos. Dispõe, para isso, de um sistema dimensional por faixas que são favoráveis a certos usos e que são ladeadas por zonas intermediárias flexíveis, que podem se comportar como área de transição ou aderir a uma ou outra faixa de uso lindeira. Já no conceito de plug-in, a articulação entre ambos os sistemas (aquele que é estruturador, mais perene, e aquele que é complementar, mais descartável) é pautada por princípios como coordenação modular, flexibilidade, obsolescência e vida útil. A independência e autonomia dos componentes a serem plugados garante a adição e subtração de componentes, bem como sua substituição, pois os mesmos podem ser conectados ou desconectados facilmente sem afetar o suporte geral da edificação ou a presença dos demais componentes já plugados. Para que isso seja possível, é necessário prever antecipadamente os pontos de contato e a alimentação desses módulos independentes que serão plugados, o que implica na padronização dimensional e dos conectores que unem entre as partes entre si, definindo uma espécie de flexibilização programada do sistema como um todo. Assim, apesar de independentes e autônomos, os elementos a serem acrescentados, deslocados ou removidos mantém pontos de contato com o espaço original, mas alteram substancialmente o uso e a configuração do mesmo ao serem acrescentados, suprimidos ou substituídos.
No caso da experiência aqui relatada, como os módulos propostos contém partes secas e elementos hidráulicos, adotou-se como resolvida a solução das conexões de instalações elétricas e hidráulicas, sem que grande esforço fosse desprendido por alunos ingressantes no enfrentamento desta questão, que permanece em aberto para futuras investigações. Uma das possibilidades, por exemplo, seria fixar a posição dos módulos que contêm instalações hidráulicas. Contudo, um modo mais versátil seria dispor de ligações flexíveis com pontos de conexão previamente alocados no espaço da casa, dispostos no piso ou junto às paredes do invólucro do ambiente que os contém.
Elementos interiores móveis para a conformação do espaço da casa — discussão teórica e referências arquitetônicas
O tipo de espaço da casa proposto neste exercício desloca a predominância da compartimentação dos ambientes funcionais da casa e introduz o desafio de configurar espacialidades com a disposição de elementos autônomos e móveis no espaço. Para projetar esses elementos móveis, a ênfase recai sobre as medidas do corpo. Estimula-se um raciocínio voltado para os equipamentos e superfícies que dão suporte às atividades do morar, como assentos ou planos de trabalho, que se alteram na presença do usuário ao movimentar os módulos, ajustando-os às suas necessidades. Também é importante a relação que se estabelece entre os elementos projetados e o espaço envoltório, na medida que o invólucro geral atua como limite externo do espaço, mas os carrinhos, ao se movimentarem, alteram a fluidez, setorização e proporções do espaço a sua volta.
A clara separação entre o invólucro e a ocupação dos espaços com módulos móveis e independentes torna-se o ponto de partida para uma reflexão sobre o espaço habitável, na qual se considera introduzir ilhas funcionais independentes no espaço pleno da moradia. Estas ilhas, momentaneamente, organizam e setorizam o espaço como um todo.
Antonio Baptista Coelho, na série “Melhor Habitação com Melhor Arquitetura” (3), ao tratar da qualidade do espaço arquitetônico residencial, faz a distinção entre “espaciosidade” (características físicas do espaço que o arcabouço construtivo é capaz de fixar: dimensões, amplitude, claridade do espaço); “capacidade” (condição que este espaço apresenta para receber os elementos que complementam o habitar); e “funcionalidade” (desempenho eficaz das funções e das atividades dentro dos espaços, obtido de modo combinado entre o arcabouço, os equipamentos e a organização geral dos espaços). Essa categorização evidencia que a qualidade espacial da moradia não depende apenas de seu invólucro físico (apesar de condicionada por ele), mas também de elementos colocados à disposição do usuário para que ele se aproprie de superfícies e equipamentos para sua permanência e desempenho das tarefas cotidianas. Através desse entendimento, é possível melhorar a qualidade da experiência da moradia apenas fornecendo ao usuário alguns aparatos para que ele se acomode dentro de um espaço existente, uma vez solucionados os pontos primordiais do abrigo envoltório (estanqueidade, proteção climática, aberturas e fechamentos etc.) e consideradas as possibilidades advindas da flexibilidade e adaptabilidade desse arcabouço da edificação.
Xavier Monteys e Pere Fuertes (4) também chamam a atenção para a diferença entre o arcabouço da casa e sua ocupação pelo usuário, que a povoa com sua presença, objetos e hábitos. No livro Casa colagem, os autores assinalam a participação do morador na transformação e adequação dos espaços domésticos, exemplificando com imagens de espaços vazios da casa, de um lado, e com o registro dos elementos móveis ou de uso pessoal, de outro. Esses objetos configuram o rastro do morador e, quando transportados a outro espaço qualquer, carregam, segundo os autores, algo da essência de uma casa. Os autores chegam a questionar se uma casa desocupada conserva sua condição de casa. Ao discutir a presença dos elementos interiores em permanente interação com seu usuário, Monteys e Fuertes consideram a ideia da casa como algo vivo que responde às inquietudes e necessidades de seus ocupantes e que, portanto, “muda cada vez que estes [os ocupantes] mudam” (5). O desenho e construção do arcabouço arquitetônico não seria, portanto, totalmente capazes de dotar o espaço doméstico de um caráter próprio sem a efetiva presença de seu morador.
Para os autores, “os espaços que o arquiteto desenha são apenas os bastidores para que cada usuário possa representar, existir em sua própria casa” (6). Os autores aludem ao jogo-atuação que ocorre quando os participantes alteram o espaço e instalam-se (provisoriamente ou habitualmente) em recantos por eles mesmos arranjados, recorrendo a práticas como simulação, subversão e transformação dos espaços previamente programados, o que acontece com frequência nas brincadeiras infantis (7). Os mesmos autores chamam a atenção para arquiteturas que delimitam, dentro de espaços amplos, porções de espaços menores para um uso independente, para serem utilizados por tempos longos ou curtos. Estes espaços criam intimidades e acomodam certas permanências, resguardando o usuário do espaço geral envoltório sem, contudo, estabelecer compartimentos totalmente estanques com paredes. A referência fundamental para pensar esse tipo de espaço é o Raumplan loosiano. Por esta estratégia, Adolf Loos constrói espacialidades à margem do ambiente principal combinando nichos, desníveis de piso ou teto e a troca dos materiais de acabamento, propiciando adendos particulares ao espaço dominante.
Com o advento da arquitetura moderna, a adoção de estrutura independente, planta e fachada livres permitiram uma concepção espacial aberta, homogênea e flexível. Nestes espaços potencialmente não compartimentados faltam elementos que amparam a permanência do sujeito (paredes, recantos, cubículos). Soma-se a isso o fechamento em pele de vidro do edifício, que dificulta a aproximação de mobiliário junto à fachada transparente. Frente a um espaço cada vez mais fluido e aberto, a estratégia de organização dos espaços adotada pelos arquitetos modernos foi dispor elementos independentes e soltos atuando como “ilhas” na chamada planta livre. O que caracteriza a ilha no espaço contínuo da casa moderna é o fato dela não tocar o invólucro perimetral e permitir o giro ao redor. Estes elementos soltos concentram usos e equipamentos — lareiras, armários, bancadas, pequenos volumes com banheiros. Além de concentrar as instalações prediais e servir de suporte aos dispositivos da casa, a ilha pode compensar o papel exercido pelas paredes, atuando como anteparo.
Assim, na casa moderna sem divisões, os elementos soltos (ilhas) cumprem dois papeis: definem usos tanto internamente como perifericamente, isto é, enquanto seu interior pode ser dimensionado para acomodar um pequeno espaço, suas superfícies exteriores se oferecem ao espaço envoltório fornecendo apoio ou resguardo para usos lindeiros a esses núcleos. Ao disponibilizar seus planos verticais ao espaço circundante e ancorar as zonas de uso e permanência ao redor, a ilha age sobre o espaço restante: sua disposição hierarquiza o espaço à sua volta e auxilia na determinação de zonas de permanência com diferentes características dentro do espaço totalmente flexível propiciado pela planta livre.
O conceito de ilha, vinculado ao uso da planta livre, foi amplamente utilizado no início do século 20, quando despontaram arquiteturas que se opuseram à compartimentação das plantas, inerente às edificações construídas com alvenaria portante.
Nas casas do arquiteto norte americano Frank Lloyd Wright (1867–1959) nota-se a busca por um espaço cada vez mais fluido e contínuo, pontuado pela presença de elementos como muros ou lareiras fincados ao solo. A pesquisa espacial para romper a caixa estereotômica teve início ainda nos anos 1900–1910 com as Casas da Pradaria no subúrbio de Chicago, e acentuou-se na fase usoniana a partir do final da década de 1930. Apesar de não contar propriamente com estrutura independente, uma vez que as cargas da construção estão distribuídas pelos inúmeros montantes modulados da tectônica leve, é possível notar como os elementos maciços cumprem a função de concentrar os equipamentos e organizar o uso ao redor, como é o caso do volume de cozinha/lareira/armários na Casa Rosenbaum (Florence, Alabama, 1939) no encontro das duas alas da casa.
Le Corbusier (1887–1965), na última versão para a Maison Loucheur em 1929 (casas de produção industrializada e massiva, não executadas, em atendimento à Lei Loucheur de incentivo à moradia econômica), previu um volume de banheiro solto no centro da planta quadrada. Este elemento é estratégico para setorizar a casa nas condições de uso diurna e noturna, conforme ilustradas pelo arquiteto nas plantas geminadas, em que abre ou recolhe as camas-armário e corre as divisórias que separam os quartos. O volume central do banheiro é o batedor das portas e divisórias que subdividem a planta na condição noturna, além de concentrar as instalações hidráulicas.
Outro exemplo a ser explorado é o interior das Casas-Pátio (1931–1938, sem local) não construídas de Mies van der Rohe (1886–1967), que utiliza da estratégia de posicionar divisórias e armários subdividindo o espaço. Nos exemplos miesianos, os espaços mais resguardados ficam ocultos atrás desses elementos soltos e, ao mesmo tempo, são parte do mesmo espaço contínuo da casa. A Casa Farnsworth (Plano, Illinois, 1951) é outro exemplo emblemático desse procedimento. Ali, o invólucro em vidro transparente recebe um volume interior opaco que contem banheiros, lareira, armários e a bancada de trabalho da cozinha, subdividindo o espaço restante em porções desiguais cuja dimensão e localização vêm de encontro ao uso a que se destina: salas, quarto, cozinha. Aqui, a disposição desse núcleo evidencia o papel que a ilha pode vir a cumprir enquanto elemento organizador das permanências e usos nos espaços contíguos.
São também obras referenciais as casas americanas de Marcel Breuer (1902–1981), devido à utilização de lareiras e elementos como escadas e divisórias para setorizar os espaços domésticos de convivência. Um bom exemplo é a segunda casa do arquiteto em New Canaan, em que são dispostos elementos que subdividem o espaço entre a galeria de acesso, sala de estar, sala de jantar e cozinha. Estes elementos reúnem várias funções: bancada da cozinha, paredes divisórias, escada e lareira.
Em São Paulo, a estratégia da ilha toma força na arquitetura residencial a partir de 1960. Um bom exemplo é a segunda residência do arquiteto (1949) João Vilanova Artigas (1915–1985), em que a lareira e o conjunto banheiros/cozinha pode ser considerado uma ilha, elemento que permite o giro ao redor e organiza o espaço.
Conforme se evidencia nos exemplos que a autora traz em seu livro, a partir de 1960 a redução do número de apoios da estrutura em concreto armado potencializa os espaços abertos e favorece o surgimento de volumes soltos que organizam o espaço.
Referências móveis para o módulo solto funcional
Se investigar o conceito de ilha é importante para o enfrentamento do exercício de projeto ora relatado, cabe agora observar obras referenciais em que esse elemento se move pelo espaço.
A arquitetura moderna forneceu exemplos de espaços com espaços reversíveis, principalmente para situações noturna e diurna propiciada pelo acionamento de elementos recolhíveis, estratégia associada a espaços reduzidos a exemplo da Maison Loucheur (já mencionada) e das casas geminadas também projetadas por Le Corbusier em Weissenhof (1927).
Contudo, alguns exemplos paradigmáticos de transformação do espaço interior dignos de menção neste compilado não configuram ilhas: a casa Schröder (Utrecht, 1925), de Gerrit Rietveld (1888–1964), cujos painéis deslizantes do pavimento superior podem ser recolhidos para integrar os espaços, e também os dinâmicos espaços internos projetados por Steven Holl (1947_) nos apartamentos em Fukuoka, em 1991. Neste exemplo, painéis pivotantes e deslizantes de geometria complexa se movimentam para ampliar o espaço diurno da sala e para devolver aos quartos esses espaços durante a noite.
É também digno de nota o trabalho do artista Allan Wexler, Crate House (1990), a “casa encaixotada”. Nesta investigação conceitual, um cubo branco com quatro portas ocupa o interior de um espaço vazio. Cada porta é a frente de uma gaveta que armazena o conteúdo ontológico de um dos quatro usos principais da casa: quarto, banheiro, sala e cozinha. Segundo o artista, ao deslocar para fora do cubo branco uma relação de objetos referentes a determinado uso, o espaço envoltório converte-se no ambiente correspondente ao uso que foi acionado, tornando-se momentaneamente quarto, sala, banheiro ou cozinha. Nesta referência, em vez de adentrarmos cada espaço delimitado e especializado, aciona-se um dispositivo programado com esse conjunto de objetos e equipamentos, que é rapidamente introduzido num espaço neutro alterando toda a dinâmica de uso ao redor.
Outra referência de arquitetura para o exercício proposto é a Naked House, do arquiteto japonês Shigueru Ban (Saitama, Japão, 2000), em que
“A casa […] constitui-se de um sofisticado galpão (estrutura leve com dupla pele, instalações junto aos fechamentos, controle das condições do ambiente) que envolvem um amplo espaço de convívio doméstico. Na casa, os ambientes internos não se definem por paredes, mas por um grande vazio ocupado por quartos móveis (mobile rooms). Os quartos — cada módulo destinado a um membro da família — são movimentados para se buscar uma posição propícia […], ou na tentativa de se aproximarem das instalações junto ao galpão-suporte. É possível entrar e acomodar-se nestes cubículos [reservados] que fornecem uma condição de intimidade, e dos quais se desce ao espaço comum da casa, ao rés do chão. É também possível subir ao teto do pequeno habitáculo e ali permanecer, ou ainda carregá-lo para fora do galpão, até o espaço exterior.
Nessa casa, as instalações hidráulicas são fixas, e um espaço para a cozinha, com dimensões equivalentes a um quarto móvel, pode ser delimitado ou não, correndo-se uma diáfana cortina” (8).
O exercício: as etapas desde o projeto, passando pelo detalhamento, construção e fruição do espaço
Como visto, no exercício de projeto aplicado aos estudantes, projeta-se um par de carrinhos que se movimentam sobre rodas e que funcionam conjuntamente, cada carrinho atendendo, pelo menos, à combinação de dois usos distintos.
A entrega da primeira fase do exercício de projeto é composta por modelo físico em escala reduzida (1:20). O uso do modelo é adotado durante a concepção do projeto e leva ao entendimento de que a maquete não é apenas um instrumento de representação, mas ferramenta importante de investigação do arquiteto. Nesta fase, a principal preocupação é o dimensionamento e disposição dos elementos projetados.
Após a avaliação e discussão conjunta dos resultados, avança-se para uma segunda etapa com o desenvolvimento do projeto e a elaboração de desenhos e maquetes na escala 1:10. Neste momento, os desenhos e maquetes são detalhados: cada painel que compõe o carrinho deve prever as posições dos montantes estruturais de madeira que serão empregados no sistema construtivo usado na construção final dos mock-ups. As maquetes trazem a representação fiel tanto os montantes em madeira como do papelão usado no fechamento dos painéis.
Para avançar durante a etapa de projeto, é preciso que o estudante adquira um bom entendimento do sistema construtivo que será utilizado na construção 1:1. Os mock-ups são executados sobre um tablado estruturado de MDF, que recebe rodízios para permitir seu deslocamento. O tablado deve ser suficientemente firme para permitir que se possa caminhar sobre o carrinho. Neste tablado são fixados os demais painéis, construídos com sarrafos de madeira compondo requadros modulados independentes. Cada painel é executado no chão, separadamente em posição horizontal, e recebe revestimento com placas de papelão grampeadas à madeira e vedação das juntas entre placas com fita gomada. Por fim, o carrinho é montado através da fixação dos painéis conforme as posições predefinidas no projeto.
Estas etapas de detalhamento e execução do mock-up são importantes pois permitem a vinculação entre a concepção e representação do projeto e o modo como se constrói, reforçando a ideia de que o desenho de arquitetura tem o compromisso indissociável com o entendimento construtivo do elemento a ser projetado.
Com a finalização desta etapa, é possível escolher os carrinhos que serão executados na escala 1:1. Esta escolha é feita após discussão e votação de toda a turma. Para a execução dos carrinhos, os estudantes devem se engajar nas equipes dos projetos selecionados. Antes do início da execução dos carrinhos, os estudantes aprimoram o projeto executivo, revisando o detalhamento de cada painel e o dimensionamento e posicionamento das peças estruturais. Esses desenhos sevem como base para quantificação, cotação e compra de material e, finalmente, para a execução da obra, ajudando na distribuição das tarefas, confecção dos painéis, posicionamento e sequência de montagem dos mesmos.
O registro do processo de construção também é parte importante do processo. Os estudantes apresentam relatório detalhado de obra que reporta a programação da obra, a identificação das etapas e a participação dos estudantes durante cada fase. Este relatório contém os desenhos do projeto executivo, tabelas de quantidades e custos, e fotos tomadas durante a construção e na demonstração do mock-up finalizado. Além do relatório escrito, as equipes preparam vídeos com timelapse da montagem e com a demonstração do uso dos carrinhos.
Finalmente, com os mock-ups finalizados, é junto ao modelo em escala real que ocorrem a discussão conjunta dos resultados e verificação das possibilidades de ocupação e das diferentes situações dos carrinhos no espaço.
É possível verificar ainda como os elementos se modificam ao serem movimentados. A escada, presente no módulo à esquerda em formato de “U” (carrinho A), faz o acesso à cobertura do carrinho B, à direita. Este segundo módulo, mais compacto e vertical, concentra as áreas molhadas embaixo e uma mesa de trabalho na parte de cima. O carrinho A, à esquerda, além de conter a escada, serve como espaço de estar e dormir.
Considerações finais
É comum que os exercícios de projeto de arquitetura aplicados durante a graduação trabalhem com situações e problemas reais, que são delineados para cumprir com certos objetivos pedagógicos. Porém, os resultados permanecem no campo das hipóteses e das representações, sem alcançar a materialização real. Em parte, não é diferente com este exercício, que permanece restrito ao ambiente da sala de aula e materializa-se provisoriamente. Contudo, cabe assegurar as potencialidades que ele carrega, uma vez que a complexidade da execução e a vivência em escala real de um modelo 1:1 vêm somar-se a certas etapas de projeto e obra muitas vezes ausentes do processo de ensino, e que dão sentido para desenhos e modelos reduzidos que são feitos durante o processo.
Ao dedicar-se ao exercício, o objetivo do estudante desloca-se do desenho como representação de uma arquitetura que permanece inalcançável, e cujo produto gráfico tende a tornar-se um fim em si mesmo, na direção da efetivação de arquiteturas que apresentam uma razoável complexidade construtiva e espacial. Isso ocorre pois os desafios para projetar e executar o mock-up e garantir seu desempenho são comparáveis àqueles enfrentados em uma obra de arquitetura: o detalhamento do desenho e suas revisões, a organização da obra, a providência e escolha de materiais e a atenção ao sistema construtivo, o cuidado e verificação com a execução da obra, a percepção da obra arquitetônica em presença do corpo. Não resta dúvida que, na experiência do modelo 1:1, pode-se aferir as reais dimensões, proporções e funcionamentos e ter uma experiência espacial superior à experiência de um desenho ou modelo reduzido. Isso permite aos estudantes relacionar aquilo que foi inicialmente pensado e representado com o objeto real que foi construído ao final do processo. Esta correspondência aprimora a atuação do arquiteto ao transitar entre as escalas e vislumbrar, como objetivo final, a obra arquitetônica durante os processos criativos e de detalhamento do projeto, reaproximando desenho e canteiro. Soma-se a isso a satisfação do estudante ingressante por ter uma obra executada, ainda que em madeira e papelão.
notas
NA — Docentes envolvidos com o exercício conforme relatado: Adriana Belleza, Anníbal Montaldi, Apoena Amaral, Carlos Ferrata, Gislaine Moura do Nascimento, Guilherme Petrella, João Paulo Meirelles de Faria, Juliana Braga, Luciana Brasil, Maria Isabel Imbronito, Sérgio Salles e Vanessa Guilhon.
1
Ver IMBRONITO, Maria Isabel. 4x4x4, mockup de habitação. São Paulo, Quelônio, 2019, p. 144 <https://bit.ly/3ZkBNpJ>. Ver também IMBRONITO, Maria Isabel; Almeida, Eneida de. Mock-up de habitação: relação entre concepção, desenvolvimento e execução no ensino de projeto. Parc, v. 6, n. 4, Campinas, 2015 <https://bit.ly/3lSsZJY>.
2
Habraken, N. J. El diseño de soportes. Barcelona, Gustavo Gili, 2000.
3
Coelho, Antonio Baptista. Habitação e arquitetura 5: capacidade residencial. Melhor habitação com melhor arquitetura, n. 316, Porto, 2010 <https://bit.ly/3LWGMKs>.
4
Monteys, X.; Fuertes, P. Casa colage. Barcelona, Gustavo Gili, 2011.
5
Idem, ibidem, p. 20.
6
Idem, ibidem, p. 22.
7
Idem, ibidem, p. 24. Um conceito que dialoga com a ideia que acabamos de expor é o profanar, cuja origem está na apropriação desviante de elementos e ritos religiosos. O autor sugestiona a profanação como prática para transformar e acessar elementos e espaços que foram sacralizados e tornaram-se dispositivos de poder. Ver AGAMBEM, Giorgio. Elogio da profanação. In Profanações. São Paulo, Boitempo, 2007.
8
IMBRONITO, Maria Isabel. Op. cit., p. 144
sobre a autora
Maria Isabel Imbronito é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP (1994), com mestrado (2003) e doutorado (2008) pela mesma instituição. É docente no curso de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Stricto Sensu da Universidade São Judas Tadeu e no curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.