Ao usar os próprios dedos como pinças ou uma simples pedra como projétil o homem desencadeou todo um evolutivo e contínuo processo voltado a preencher a necessidade de viver em um meio organizado e previsível. A madeira foi um dos veículos empregados nesse processo, e embora não tenha sido o primeiro, tão pouco o único material, ela muito contribuiu para a transformação e interação do homem com a natureza. O homem pôde então experimentar e desenvolver suas habilidades intelectuais e manuais; pôde desenvolver e aperfeiçoar técnicas que remanescem vivas até os dias atuais.
O quadro inicial sobre a interação da madeira nas práticas humanas segue a trilha deixada pelas ferramentas, definidas como sendo objetos externos ao sujeito, usadas com propósitos de manipular ou modificar algo (1). Elas são marcos observáveis da evolução e especialização de técnicas em auxílio a tarefas de difícil execução por mãos humanas, e aqui em especial a aquelas usadas em benefício da manipulação da madeira para a construção de abrigos.
Partindo do fim do terciário e início do quaternário, no estágio geológico denominado pleistoceno, os tipos humanos primitivos coexistiam com uma fauna arcaica e diversificada em um clima marcadamente frio. Nesse momento, há cerca de 3 a 2,5 milhões de anos são encontrados os indícios da manipulação de pedras por parte dos humanos primitivos que em uma atitude exploratória e intuitiva se voltava à adaptação e manipulação de objetos, o ponto chave para a elucidação das atividades que estavam sendo desenvolvidas naquela altura, inclusa aquela que nos é cara, a construção de abrigos.
As ferramentas como testemunhas
Na dinâmica evolutiva dos grupos humanos o clima exerce o papel de agente impulsionador de mudanças, uma vez que os forçava a constantes adaptações e desafiava os grupos a garantir constantemente sua sobrevivência. Isso explica o abandono de sítios de ocupação, as migrações e a adoção de novas práticas de subsistência. A associação das mudanças climáticas aos achados entreve desdobramentos sobre a economia e as tecnologias praticadas (2).
Essa narrativa tem início com os bifaces aos quais se credita a manipulação dos materiais disponíveis para a construção de abrigos que, a depender da disponibilidade local e do período foram construídos com ossos de mamute, pedra, solo, madeira e peles animais.
Os bifaces tinham um caráter multifuncional. “A simples cabeça de pedra do martelo serve igualmente como projétil; […] o machado pode abater uma árvore ou matar um inimigo” (3). Com o processo evolutivo e mudanças na economia de subsistência esses artefatos foram sendo conformados em função de uma prática particularizada.
O elo entre essas ferramentas e a madeira encontra respaldo científico a partir de descobertas arqueológicas com olhar sobre os elementos construtivos e as ferramentas encontradas em sítios de escavação. Em particular, a técnica que analisa o padrão de desgaste e danos nas arestas das ferramentas de pedra permitiu apontar categorias de materiais trabalhados em função de sua consistência. Deste modo, bifaces com arestas convexas e convergentes passam a inferir o corte de material macio, como a desossa ou corte de carne; enquanto aqueles com arestas sem convergência e maior desgaste apontam para o trabalho com materiais de consistência mediana tal como a madeira (4).
O polimento, o aumento de tamanho e o uso de empunhaduras os tornaram ainda mais aptos ao corte da madeira, que no continente europeu se encontrava abundante graças ao aquecimento climático, há cerca de 10 mil anos, que permitiu o crescimento de bosques e a retomada de movimentos migratórios tanto de animais como de grupos humanos.
As diferentes tipologias desses artefatos sinalizam para uma paulatina especialização associada aos processos de cortar, entalhar, falquejar, perfurar, laminar e raspar a madeira. A configuração formal desses elementos, que teve origem naquele período, se mantém até os dias atuais, pouco alteradas, sinalizando adaptações eficazes que lhes agregaram agilidade e precisão. Dentre eles as enxós podem ser consideradas mais apropriadas às práticas de carpintaria, pois diferentemente dos machados, elas eram ágeis e propiciavam a abertura de orifícios, cortes e raspagem das superfícies de madeira, não se limitando somente a cortar árvores e toras (5).
A partir do neolítico, abater árvores e não apenas coletar galhos ou troncos caídos tornou-se uma atividade promissora. Era necessário transformar a paisagem, abrir campos cultiváveis para a prática da agricultura com consequente destinação da madeira extraída para a construção de abrigos, instalações para animais e armazenagem de colheitas e benfeitorias que incluíam cercados e paredes de retenção de poços d’água.
É difícil hoje imaginar como tais tarefas eram passíveis de serem realizadas com ferramentas rudimentares. Como árvores poderiam ser abatidas com machados de pedra tão distantes dos expedientes empregados atualmente? Esse questionamento foi motivador para que quatro pesquisadores utilizando ferramentas paleolíticas de acervo museológico, se dispusessem a abater durante o verão de 1952, cerca de 10.120 m2de floresta, o equivalente a 1,2 campo de futebol, vindo a atestar a aptidão dos machados de pedra e estimar que tal tarefa era passível de ser realizada em apenas 36 dias pelo homem neolítico (6).
Vestígios de madeira no abrigo
Não seria prudente dizer que a disponibilidade de um material por si só seja determinante para que a materialização construtiva de um determinado grupo humano esteja a ele atrelada. Concomitante à abundante oferta de madeira na Europa Central durante o Holoceno, estágio geológico atual e que teve início a 12.000 a.C., as escavações comprovam a coexistência de diferentes materiais empregados na construção de abrigos. Efetivamente a adoção da matéria prima depende de outros fatores que tornam essa escolha algo como de maior complexidade, tal como a própria organização social do grupo, a habilidade para extração do recurso material e a capacidade técnica desse grupo em manipular esse recurso. “El médio ofrece, posibilita o favorece, pero no impede, categoricamente, una elección” (7).
Porém, uma vez munido de tais expedientes, o homem se tornou apto a promover alterações e as adaptações necessárias no ambiente. Criando padrões e significados próprios, o homem se distanciou dos outros animais e se viu impulsionado a criar o artefato funcional chamado abrigo. “Em vez de uma adaptação fisiológica ao frio, como o crescimento de pelos ou o hábito de hibernar, verifica-se uma adaptação ambiental, possibilitada pelo uso de roupas e pela construção de abrigos” (8).
A conformação dos primeiros abrigos se mostra desafiadora e é ainda hoje um objetivo perseguido. No campo técnico-científico, a imagem do que seria esse abrigo procura apoio em aspectos tanto especulativos quanto em evidências. Pesquisas arqueológicas associadas à etnologia e antropologia trazem à luz importantes realizações que cumulativamente contribuem para criar a imagem desse primórdio, uma vez que a escrita somente veio a se desenvolver ao fim do neolítico, aproximadamente 4.000 a.C.; e não pode colaborar para o entendimento desse processo. Em tais apreciações também se fazem úteis às observações entomológicas. O comportamento de símios, por exemplo, é empregado como auxílio na interpretação das composições em sítios arqueológicos. De modo que, uma apreciação compatibilizada com essas três ciências torna-se favoravelmente rica.
Sobre as interpretações científicas, André Leroi-Gourhan, no livro As religiões da pré-história (9), publicado originalmente em 1967, nos alerta para certas deduções emitidas com base em achados arqueológicos e que hoje são entendidas como certa ansiedade científica do século 19 em demonstrar o caráter humano do homem pré-histórico. Esse entusiasmo carreou a comparações sumárias, principalmente etnológicas sobre a visão do passado pré-histórico. De fato, “o que sobressai é um esqueleto; não faltará certamente quem queira materializar este fantasma. Pela parte que me toca, recearia trair o homem das cavernas, se aumentasse o testemunho por ele deixado” (10). Porém, atualmente o aperfeiçoamento do método científico, a consciência despertada a partir das ocorrências passadas nos séculos 17 e 18 e os avanços em equipamentos de análise e datação nos previnem melhor de possíveis interpretações e conclusões afoitas.
Não podemos esperar que os caçadores-coletores dependessem somente de tocas escavadas, troncos ocos ou grutas rochosas para se abrigarem, nem todos os sítios poderiam lhes proporcionar tais condições, portanto é razoável que passassem a construir abrigos e se libertaram da dependência pela disponibilidade geológica, (11). Resgatar a imagem dessas primeiras manifestações, considerando a escassez de registros, é um grande desafio.
A figura do abrigo pré-histórico descrita por Norbert Shoenauer em 6,000 years of housing (12) leva em conta fatores antropogeográficos e socioeconômicos que resulta em uma classificação voltada às distintas moradias produzidas pelo homem. No abrigo categorizado como efêmero, a forma de domos encontra respaldo na relação de semelhança com o abrigo ainda construído por sociedades de caçadores-coletores; povos encontrados na América, Ásia, Oceania e África. Ele seria uma pequena construção, executada com materiais brutos encontrados no sítio de ocupação, a exemplo de folhas, ossos, relva, cascas de árvores ou peles. O abrigo efêmero ou transitório resulta de uma atividade feminina, configurado em um espaço único de convivência interna, construído em curto tempo e de igual modo abandonado a depender do esgotamento de alimento (13).
Ainda, é produto de uma aglomeração primitiva que depende da economia de subsistência, da coleta de alimentos e caça, “são sociedades sem grande grau de especialização e orientadas pela tradição, onde impera a relação próxima entre forma e cultura e a longa persistência dessas formas” (14). Ele não contava com um construtor especializado, pois a habilidade para executar essa tarefa era compartilhada entre os membros do grupo em benefício comum.
As práticas padronizadas e pouco mutáveis desses grupos primitivos eram conduzidas ao sabor das necessidades que se apresentavam e dos recursos que estavam disponíveis. Assim, a arquitetura primitiva teve nos primórdios uma afinidade com os saberes coletivos e ainda não se afinava com o domínio técnico ou econômico que paulatinamente ganharam relevância no neolítico adentro. Enquanto efêmeros esses abrigos não prescindiam da durabilidade alçada pelos abrigos perenes.
Arquétipos do primitivo
A observação da natureza foi fundamental para a harmonização do espaço que libertaria o homem da subjugação do ambiente adverso, um longo processo registrado com esmero através de gravuras em artefatos de uso pessoal ou na superfície de cavernas. Essa arte móvel e parietal produzida pelo caçador-coletor se agrupa em três categorias — animais, seres humanos e símbolos; dos quais mais de 90% dos registros extraídos de 1.800 estudos de caso (15), dão-nos conta da forte inclinação humana pela referência animal, enquanto observação da natureza.
A harmonização do espaço obteve respaldo na apreensão do conhecimento. Considerado como próprio da natureza humana, o conhecimento encontra primordialmente seu caminho por meio das sensações, especialmente aquelas proporcionadas pela visão. A possibilidade de memorizar as sensações que captava propiciou ao homem a geração do conhecimento que o fez se distinguir dos demais animais, a quem não foi negado as sensações, mas que por não serem capazes de retê-las não são capazes de gerar experiências e aprendizagens (16). De modo que o conhecimento que propiciou a ordenação do ambiente é aqui, em analogia a narrativa de Aristóteles, posta como o resultado de um processo conduzido por um agente que manipula informações sensoriais, com início na observação; memorização; síntese e ordenação, até culminar na etapa propositiva.
A arquitetura é assim, a inversão do processo de apreensão de conhecimentos colecionados durante um longo período paleolítico, e que foi catalisado pelas alterações cognitivas e no meio ambiente que o homem passou de certo modo a controlar (17).
Nos primeiros arquétipos nos deparamos com o espelhamento de tais conjecturas, dentre as várias proposições nesse sentido, aqui será dado destaque a três arquétipos em auxílio a construção das imagens desse abrigo. São essas as de Marcos Vitrúvio Polião, Eugéne Emmanuel Viollet-le-Duc, Willian Chambers, cabendo aqui uma observação quanto a não inclusão de um famoso contemporâneo de Chambers, Benedictine Abbot Marc-Antoine Laugier, um ardoroso questionador da arquitetura do século 18, e que abriu as portas para o renascimento por meio de sua obra “Retorno às origens”. A não inclusão do trabalho de Laugier nessa narrativa reside no caráter conceitual de seu arquétipo, que o distancia dos três aqui a serem apresentados e que embora contemple a madeira como material primordial, considera as ordens clássicas como princípio para a arquitetura.
Datado do ano de 27–25 a.C., o abrigo descrito no “Tratado sobre arquitetura” de Marcos Vitrúvio Polião, encerra em si o culminar de um processo evolutivo. A descoberta do fogo e a vivência em sociedade durante o período neolítico catalisaram a elaboração desse refúgio, que num primeiro movimento era mimético à natureza, fruto da observação de ninhos e tocas (18). A representação figurativa concebida por Vitrúvio para essa descrição e muitas outras que acompanhavam esse tratado resultaram perdidas ao longo de várias transcrições até que os textos ressurgissem em versão impressa e, com a inserção de contribuições gráficas não originais.
Por segundo, William Chambers um teórico da arquitetura do século 18, se propôs a descrever e ilustrar o abrigo primitivo de um homem já desgostado de se albergar em troncos ocos, grutas rochosas ou escavadas na terra. Inicialmente os meios para essa realização foram encontrados na observação e imitação das práticas de outros animais, incluso a escolha dos materiais e processos de construção. Mas, como descreve o próprio autor, não tardou para que os homens superassem seus mestres, uma vez que diferente destes, aqueles teriam o benefício do raciocínio e uma conformação corporal vantajosa (19), o que para Aristóteles é a apropriação de conhecimento.
O abrigo proposto por Chambers é estruturado por gravetos e galhos entrameados e resulta em uma forma cônica, uma geometria curiosa que se inclina favorável à simplicidade e à exequibilidade. Para ele os desdobramentos evolutivos dessa proposta nascem do aprimoramento das ferramentas e das habilidades manuais, conduzindo mais adiante a consequências formais diversas: a cobertura em duas águas sustentada por vigas de madeira, por exemplo.
Por fim, compartilhando de semelhantes alicerces formais, o arquétipo do abrigo primitivo proposto por Eugéne Emmanuel Viollet-le-Duc descrito no livro História da habitação humana, é apresentado no capítulo intitulado “Eles seriam homens?” de modo similar aos dois arquétipos citados e materializado por ramos e galhos recobertos por musgo e barro. Na narrativa de Viollet-le-Duc, a efetiva assimilação do abrigo é determinante para definir o caráter humano dos seres primitivos envolvidos na tarefa de construí-lo. Construir abrigos é enfim uma atividade que distingue o homem dos demais animais.
O abrigo abobadado de Viollet-le-Duc se distancia sutilmente do abrigo cônico de Chambers pela forma que encontra raízes no pensamento de um admirador do racionalismo gótico. Ela abre oportunidade para uma reflexão alicerçada em Rapoport, que considera que os recursos materiais, tecnológicos e construtivos são insuficientes para determinar a forma, eles antes atuam a favor de escolhas e, portanto, seriam os promotores da diversidade de formas possíveis (20).
Observa-se que os três exemplos apresentados compartilham de condições e de preocupações comuns, quando a proposição de um abrigo consequente, a partir da observação do meio e coerente com os recursos materiais e técnicos disponíveis. Os desdobramentos formais transparecem certa lógica construtiva associada ao pouco ou nenhum distanciamento do estado natural dos materiais empregados. A simplicidade, estabilidade e exequibilidade se colocam ao alcance da condição cognitiva de seus construtores. A presença de elementos de madeira (ramos, galhos), juntamente como outros materiais na composição do abrigo a torna aliada ao domínio da natureza.
A madeira amparou o homem a atingir suas aspirações, em posição à passiva ocupação de cavernas. Ao preterir o abrigo natural em favor daquele que ele próprio elabora, o homem está substituindo um organismo esteriotômico de proteção e estabilidade representados pela caverna, em benefício de outro que melhor atende ao anseio por liberdade e domínio, um organismo tectônico, formal leve, móvel e fragmentado (21).
Os primeiros carpinteiros
Os sítios arqueológicos neolíticos recuperam com nitidez a profusão de realizações do homem pré-histórico com uso da madeira trabalhada com a manipulação de ferramentas e técnicas diversificadas. A prática da agricultura impulsionou a necessidade de habilidades, manuseio e processamento desse material, assim como a criação e domesticação de animais também requeriam estruturas de apoio, voltadas à contenção e apoio.
O agrupamento de habilidades e técnicas que acompanharam a prática da agricultura, o pastoreio e criação de animais conduzem à especialização de um agente que trabalhasse habilmente o material, detentor de técnicas e saberes para tal. Naturalmente o processo de sedentarização, por conta de sua dinâmica, conduziu à especialização de atividades do homem pré-histórico e a carpintaria foi uma delas. Evidências de sítios arqueológicos no Oriente Médio comprovam a existência de uma prática efetiva da carpintaria e marcenaria voltadas à construção (22). “Os primeiros agricultores também foram os primeiros carpinteiros, contrariando a crença comum de que a invenção de ferramentas metálicas para trabalhar madeira a mais de mil anos foi necessária para que se realizassem complexas construções em madeira” (23).
Vários gêneros de madeira foram então empregados nesse período. Em específico no continente europeu a madeira de carvalho é um recorrente achado arqueológico. Ele que pertence ao gênero Quercus spp., engloba mais de trezentas espécies, distribuídas pela Europa, Ásia, Norte e América. Trata-se de uma árvore longeva que pode chegar a mil anos e atingir sua maturidade por volta dos cem anos. É importante considerar sua alta densidade, resistência, facilidade de laminação e estabilidade dimensional, como motivos para tal recorrência em assentamentos desse período, em especial a aqueles de escala monumental. Além do carvalho outras espécies também eram empregadas com maior ou menor frequência e em diferentes espaços temporais. Nas escavações realizadas em Somersert, Inglaterra foram encontrados seguintes gêneros: Plátano, Amieiro, Bétula, Carpinus, Clematis, Avelã, Cornus, Faia, Fraxinus, Frangula, Hera, Azevinho, Malus, Myrica Gale, Pinus, Choupo, Prunus, Rhamnus, Saliz, Sorbus, Teixo, Tília, Olmo, Viburnum (24).
Escavações em Somerset expõem a dinâmica com que a madeira foi empregada durante quase 5 mil anos. A começar por volta de 4.500 a.C. é possível afirmar que florestas primárias foram a principal fonte de extração de madeira por um período de até mil anos, quando ela passou a ser extraída de florestas manejadas e posteriormente por florestas regeneradas, com consequentes reduções de diâmetro e densidade. Foram encontrados elementos construtivos realizados tanto de madeira roliça quanto de madeira falquejada, esta última desdobrada em tábuas e vigas. As tábuas de Somerset apresentam comprimento variando de um a 10 metros, elas possuem largura de 15 a 50 centímetros e espessura inferior a 15 centímetros; as ripas apresentam comprimento variando entre dez centímetros a um metro e espessura de cinco centímetros.
Embora a trabalhabilidade da madeira seja inegavelmente superior a da pedra, ainda assim não podem ser ignoradas as dificuldades relacionadas ao processo de transformação desse material, principalmente considerando as robustas dimensões e densidade com que é encontrado em escavações, a exemplo daqueles recolhidos de um sítio arqueológico neolítico na Alemanha, cujos elementos construtivos de madeira de carvalho com até trezentos anos e diâmetro de até um metro (25), asseveram a capacidade técnica humana a despeito da complexidade de processos envolvidos na transformação da matéria prima em elemento de composição edilícia.
A tarefa de trabalhar a madeira contou com auxílio de outros expedientes: o fogo descoberto por volta de 7.000 a.C., foi empregado em auxílio ao corte por enxós e machados na tarefa de abrir concavidades, orifícios e acabamentos de superfície, e até a derrubada de árvores. Alguns orifícios, a depender das dimensões do elemento e maciez da madeira eram feitos com formões de pedra ou de ossos, o mesmo é válido para entalhes, juntas e encaixes por cunhas. Para desdobrar as toras os cortes seguiam a orientação das fibras do material, permitindo que um tronco fosse dividido de uma extremidade a outra na feitura de vigas. Com sucessivos cortes paralelos, os homens poderiam fatiar os troncos em tábuas que desbastadas por enxós adquiriam uma superfície mais bem acabada (26).
A escala das construções domésticas era variável e associada à organização dos grupos familiares, de modo que uma edificação de pequeno porte estaria a serviço de um único núcleo familiar; e as de médio a grande porte estariam, portanto relacionadas a grupos familiares estendidos ou ainda a um grupo de família nuclear associado ao albergue de seus animais (27). Havendo ainda as construções de caráter monumental, dotadas de grandes atributos paisagísticos e com finalidades associadas a práticas coletivas rituais e mortuárias.
Um estudo sobre a conformação das moradias neolíticas de assentamentos humanos sobre lagos e regiões pantanosas na Suíça, Alemanha e a Leste da França, datados de 4.300 a.C. a 2.700 a.C., nos assevera a simplicidade técnica e pouca distinção entre essas moradias. Apoiadas ou não sobre palafitas, elas apresentam de um a dois ambientes, uma ou duas fileiras de pilares de madeira centralizados para sustentação da cobertura. As paredes eram usualmente constituídas por varas entrelaçadas, postes ou tábuas de madeira. Em algumas casas havia até varandas. Em particular aquelas datadas de 4.300 a.C. a 3.900 a.C. apresentavam entre 5 a 15 metros de comprimento e cerca de 3 a 6 metros de largura. O piso era revestido com argila, musgos ou lascas de casca de árvores. Já em fins do neolítico, entre 2.700 a.C. a 2.400 a.C., as casas passam a apresentar grande variedade tanto em suas dimensões quanto nas técnicas construtivas e layouts internos (28).
Os resquícios desses assentamentos raramente fornecem subsídios para compreensão de seus espaços internos devido à precariedade com que eram construídos. Os postes de madeira empregados nas palafitas possuíam pequeno diâmetro, sete a doze centímetros, sendo obtidos de árvores como bordo, macieira, cerejeira, salgueiro, amieiro e choupo. A periocidade de manutenção era curta, estima-se que não durassem mais que quinze anos. Aparentemente essas habitações apresentam hiatos de ocupação, para o qual se especulam vários motivos: a variações climáticas, chuvas ou escassez recorrente dos recursos para subsistência causada pela degradação do ambiente entre outros (29).
Em um sítio neolítico norueguês de 2.000 a.C., foi recentemente encontrada uma grande construção de uso doméstico com 45,5 metros de comprimento por 7,2 metros de largura. De planta retangular e com duas entradas simetricamente opostas, a casa possuía diferentes níveis de piso, variando de duas a três dezenas de centímetros. Foram encontradas paredes divisórias internas que se configuravam em compartimentos de grande e pequeno tamanho, uns supostamente usados para armazenagem e outros como dormitório e local de cocção simultaneamente. Presume-se que nessa construção doméstica eram usadas mais de duas lareiras cuja fumaça era liberada pelo telhado coberto por juncos, sob uma inclinação próxima a 45 graus. A vedação provavelmente era realizada por tábuas de madeira em face da inexistência de poços de extração de argila no entorno (30). Os postes de madeira roliça compunham o sistema estrutural hoje denominado pilar-viga, no qual a disposição dos elementos partilhava de certa hierarquização e regularidade de espaçamento em planta; a fixação era feita em buracos escavados no solo, o engaste direto. A configuração desses engastes denuncia a existência da prática de manutenção, pois já não se tratava dos elementos originais (31), o que demonstra a preocupação com a durabilidade do abrigo.
O sedentarismo em curso foi responsável por despertar no homem a ideia de perenidade. A tarefa de cultivar o alimento e de pastorear rebanhos foi importante para que se desenvolvesse no homem o planejamento, a previsão e o gerenciamento do tempo; essas habilidades foram carreadas lentamente para a atividade construtiva e o sentido de transcendência passou a ser algo sensível às realizações humanas (32). A destinação de espaços com caráter de perenidade, normalmente voltados a construções de uso comum, ritual ou funerários, fez com que também os materiais fossem escolhidos para que permeassem as gerações.
A pedra é notadamente um representante qualificado para essa escolha, mas também é certo que, muitos locais de transcendência construídos com esse material tiveram precedentes em madeira ou materiais menos duráveis, sinalizando a existência de fases transitórias ou concomitantes nesse processo.
Nada mais propício para ilustrar a ideia de transcendência e monumentalidade que os Cursos e os Henge. Os chamados Cursus são construções lineares, verdadeiras paredes de madeira, caracterizados em sua maioria por um espaço compreendido entre duas valas paralelas com bancos de areia internos, contornados por postes em sua maioria de carvalho. Com uma extensão de até 250 metros os Cursus de madeira são encontrados tipicamente em solo escocês e registram o uso massivo da madeira em obras monumentais e espaços mortuários, edificados durante o período compreendido entre 4.000 a.C. a 3.300 a.C. (33). Nos buracos em que são engastados é frequente a presença de carvão, indicando a possível prática de corte das árvores com uso do fogo ou ainda como prática de proteção fungicida das extremidades desses elementos para impedir a podridão, a despeito dos indícios de uma prática ritual envolvendo frequentes destruições e reconstruções associadas a esses sítios (34).
Os Henge são monumentos que despertam admiração tanto pela transcendência como pela abstração tridimensional associada a uma arquitetura com desdobramentos na paisagem. Por definição um henge é um monumento constituído por uma área circular delimitada por pedras ou por postes de madeira. Tomando como exemplo o Henge de Hindwell (2.700 a.C.) recentemente descoberto no país de Gales, Inglaterra, nos é revelado um pouco mais sobre o papel da madeira no período neolítico. Sua imensa circunferência com um perímetro de 2,35 quilômetros foi formada pelo alinhamento de 1.400 troncos de carvalho com 80 centímetros de diâmetro cada, engastados a uma profundidade de 2 metros no solo. Com base nessa profundidade de engaste, os arqueólogos avaliam que as essas toras possuíssem 8 metros de comprimento (35). Até para os dias atuais, o uso de elementos com dimensões tão robustas envolve consideráveis complexidades, o que nos leva a refletir sobre a abundância de madeira para a atividade construtiva naquela altura e a logística para extração e transporte.
Tanto os Cursos quanto os Henge colocam a madeira no canteiro de obras de realizações construtivas monumentais do período neolítico e atestam sua presença na composição de espaços coletivos públicos, obras de envergadura e relevância que tinham o caráter de transcendência e não somente destinada à arquitetura doméstica, de caráter menos durável ao qual é comumente associada.
Observamos, por fim, que pela mão dos primeiros carpinteiros do neolítico, a madeira-árvore adquiriu o sentido de madeira-matéria para a seguir se converter em madeira cortada, material de construção. Várias técnicas foram desenvolvidas para serviço desse fim, ela se colocou sob a ação do machado para atender a determinada solução arquitetônica, culminando no encontro da técnica inicial de usar o machado para cortar a madeira com a técnica superior, arquitetura (36). Essa reflexão de Sarquis, aqui emprestada, está imbuída no resgate e defesa do valor expressivo da materialidade, componente da técnica, tecnologia e tectônica; para a arquitetura por meio desse material.
Considerações finais
O processo de ordenação e harmonização da natureza por parte do homem primitivo culminou na criação do abrigo, um artefato funcional conquistado após longo processo evolutivo da capacidade intelectual, corporal e técnica, que teve como ponto de partida um processo mimético para chegar no que se considera na arquitetura enquanto o abrigo primitivo. Envolvida nesse processo encontramos o gradual emprego da madeira suscitado pela organização social e de saberes sobrepostas ao domínio das técnicas. O uso da madeira estava estreitamente suscetível à espontaneidade e à comodidade com que os primitivos a acessavam e em sendo um material abundante, há certa altura, contribuiu para que fosse efetivada nas práticas construtivas sob o peso das influências climáticas. De início foi acolhida sem maiores elaborações formais para uso na construção dos abrigos também pouco elaborados. O aperfeiçoamento das ferramentas e das técnicas acendeu a resultados formais que passaram a demandar por um agente com domínio e habilidade distintas a serviço da transformação da madeira-árvore, em madeira-matéria e madeira material construtivo do abrigo que incorporava soluções cada vez mais sofisticadas, distintamente dos primeiros abrigos que carreavam saberes comuns. Os registros arqueológicos nos dão conta que já no início do neolítico a madeira era empregada em obras de maior perenidade e dimensão, extrapolando a escala doméstica e que nessa escala de edificação ela precedeu o uso da pedra. Empregada como estrutura de suporte, de vedação e cobertura, a coletânea de registros da atividade construtiva pré-histórica expõe estruturações que estão presentes nos sistemas construtivos atuais, como o pilar-viga em composição com elementos roliços; sistemas recíprocos, com toras e ramos de menor diâmetro principalmente na feitura de cercas e paredes; e o sistema parede portante com uso tanto da madeira roliça como a falquejada. Por fim, a madeira se mostrou um material acessível e um veículo para expressar as aspirações humanas, a trajetória demostra um estreito diálogo com intervenientes climáticos e os recursos disponíveis à da expressão das ideias humanas na materialização de seu abrigo e arquitetura.
notas
1
SCHICK, Kathy; TOTH, Nicholas. Making Silent Stones Speak: Human Evolution and the Dawn of Technology. Nova York, Touchstone Books, 1994.
2
WENINGER, Bernhard; CLARE, Lee; ROHLING, Eelco J.; BAR-YOSEF, Ofer ; BÖHNER,Utz; BUDJA, Mihael; BUNDSCHUH, Manfred; FEURDEAN, Angelica; GEBEL, Hans-Georg; JÖRIS, Olaf; LINSTÄDTER, Jörg; MAYEWSKI, Paul ; MÜHLENBRUCH, Tobias;REINGRUBER, Agathe; ROLLEFSON, Gary; SCHYLE, Daniel; THISSEN, Laurens; TODOROVA, Henrieta ; ZIELHOFER; Christoph. The Impact of Rapid Climate Change on prehistoric societies during the Holocene in the Eastern Mediterranean. Documenta Praehistorica, n. 36, Liubliana, 2009.
3
MUMFORD. Lewis. Técnica e civilização. Lisboa, Antígona, 2018, p. 93.
4
YERKESA, Richard, KOLDEHOFF, Brad. New tools, new human niches: The significance of the Dalton adze and the origin of heavy-duty woodworking in the Middle Mississippi Valley of North America. Journal of Anthropological Archaeology, v. 50, jun. 2018, p. 69–84; BRENET, Michel; CHADELLE, Jean Pierre: CLAUD, Émilie; COLONG, Davis; DELAGNES, Anne; DESCHAMPS, Marienne; FOLGADO, Mila; GRAVINA, BRAD; IHUEL, Ewen. The function and role of bifaces in the late middle paleolithic of southwestern France: Examples from the charente and Dorgne to Basque Country. Quaternary International, n. 428, 2017, p. 151–169.
5
YERKESA, Richard, KOLDEHOFF, Brad. Op. cit.
6
CURRY, Andrew. How experimental archaeology is showing that Europe's first farmers were also its first carpenters. Archaeology Magazine, Nova York, nov./dez. 2014.
7
COSSIO, Fernando Vela. Para una Prehistoria de la vivenda. Complutum, n. 6, 1995, p. 257–276.
8
MUMFORD. Lewis. Op. cit., p. 46.
9
LEROI-GOURHAN, André [1964]. As religiões da pré-história. Lisboa, Edições 70, 2017.
10
Idem, ibidem, p. 156.
11
BAEZA, Alberto Campo. Principia architectonica. Lisboa, Caledoscópio, 2013.
12
SCHOENAUER, Norbert. 6,000 years of Housing. Nova York, W.W. Norton & Cia Inc., 1981.
13
Idem, ibidem.
14
RAPOPORT, Amos. House, form and culture. New Jersey, Prentice-Hall Inc., 1969, p. 2.
15
LEROI-GOURHAN, André. Op. cit., p. 156.
16
Reale, Giovanni (org.). Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Edições Loyola, 2002.
17
BENEVOLO, Leonardo; ALBRECHT, Benno. As origens da arquitetura. Lisboa, Edições 70, 2002.
18
VITRÚVIO, Marcus Pollio. Tratado de arquitectura. 3ª edição. Lisboa, IST Editora Press, 2009.
19
CHAMBERS, William [1759]. A treatise on the decorate past of civil architecture. Cambridge, Cambridge University Press, 2012.
20
RAPOPORT, Amos. Op. cit.
21
BAEZA, Alberto Campo. Op. cit.
22
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sobre a autora
Edna Moura Pinto é professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Arquiteta e urbanista (Unesp Bauru), mestre em Tecnologia do Ambiente Construído (IAU USP) e doutora em Ciências e Engenharia de Materiais (IQSC IFSC EESC USP), com pós-doutorado pela Universidade de Coimbra.