“Existe, com o tempo, e sempre haverá, uma dimensão de degradação e dispersão. Nenhuma coisa organizada, nenhum ser organizado pode escapar da degradação, desorganização, dispersão. Nenhum ser vivo pode escapar da morte. Perfumes evaporam, vinhos azedam, montanhas se achatam, flores murcham, coisas vivas e sóis voltam ao pó […].
Toda criação, toda geração, todo o desenvolvimento e até mesmo todas as informações são sucumbidas pela entropia. Nenhum sistema, nenhum ser, pode se regenerar isoladamente”.
Edgar Morin, La nature de la nature, 1977
A ideia de entropia, como grandeza termodinâmica, está associada à irreversibilidade dos estados de um sistema físico. É um conceito que se relaciona tanto com a dimensão temporal quanto com a dimensão material de um dado fenômeno. Expõe a matéria à implacabilidade do tempo, inferindo a esta relação a possibilidade de degradação, desordem ou de mudanças aleatórias. Nada permanece a salvo do potencial transformador da entropia.
Falar de entropia no campo da arquitetura se mostra desafiador, sobretudo quando se pretende abordá-la pela lente da teoria. A arquitetura, como disciplina assentada na firmitas vitruviana, compreende os atributos da permanência, estabilidade e consistência material, e não se mostra, a princípio, afeita a aproximações que desafiem este status quo. Por outro lado, se enveredarmos pela dimensão propriamente física da arquitetura, que abarca os sistemas construtivos, técnicas e materiais, certamente abre-se todo um leque de considerações acerca das práticas relacionadas à preservação e reabilitação de edifícios, ou mesmo do discurso mais atraente e politicamente correto da sustentabilidade, suas normativas e prescrições técnicas. Entretanto, não é este o foco aqui almejado.
Propomos aqui abordar a entropia, desde sua definição no campo das ciências naturais, como chave interpretativa de determinadas linhas de pensamento que podem ser identificadas no debate da arquitetura mais recente. A intermediação inicial com discursos advindos de outros campos do saber servirá para atestar a aderência que este marco conceitual tem nas pautas contemporâneas de variadas disciplinas. Ciente do desafio epistemológico que esta aproximação pode supor, convém inicialmente apresentar alguns antecedentes que conferem legitimidade à emergência desta discussão, para em seguida, verificar os desdobramentos destas aproximações no seio da disciplina. Desta forma, mais do que diagnosticar o fenômeno e seus resultados em obras específicas, buscaremos aqui entender, no âmbito da crítica arquitetônica, quais situações e debates propiciaram a inserção da ciência da termodinâmica no centro das novas reflexões e possibilidades operativas da arquitetura.
Antecedentes
No âmbito da teoria e crítica da arquitetura os antecedentes deste momento podem ser mapeados na década de 1990, quando se coloca em questão a chamada crítica pós-moderna e o paradigma histórico formal que estava na base de seu discurso. Tal paradigma, que permeou o debate da arquitetura dos anos 1960 e 1970 teve seu desdobramento no movimento da desconstrução (1), e com este, um entendimento distinto da ideia de forma como representação. Trata-se de um momento em que a produção da forma arquitetônica é atravessada por uma leitura complexificada da realidade e pela inflexão na experiência temporal. O debate que se segue nos anos 1990 efetua um esvaziamento — literal e metafórico — da dimensão simbólica, figurativa e transcendente do objeto arquitetônico. Parte desta discussão situa-se na corrente identificada como pós-crítica, de cunho mais pragmático e operativo, e parte encontra seu esteio na própria condição imanente, pontual, indefinida do objeto arquitetônico. Em todas estas, é possível entrever o redesenho de um novo pensamento na disciplina.
Neste particular, destaca-se o pioneirismo da ideia de arquitetura débil, termo cunhado por Ignasi de Solà-Morales em 1987, em um texto inspirado no pensamento de Gianni Vattimo, e no viés intempestivo da arte apontado por Eugenio Trías (2). De modo geral a ideia de debilidade aí reivindicada coloca-se em contraposição a abordagens dominantes, guiadas pelo viés normativo ou determinista da disciplina. Também podemos aí vislumbrar uma crítica direta aos discursos pautados na autonomia disciplinar. Nestes, verifica-se que centralidade da forma dá margem a uma arquitetura intransitiva, autorreferente, que insere o objeto arquitetônico no beco sem saída da transposição do método da linguística à disciplina. Debilidade, portanto, como uma arquitetura mais relacionada ao tempo do que ao espaço, onde a forma é deliberadamente suplantada pela ação e pela experiência. Por sua vez, turva-se a integridade do objeto arquitetônico como veículo de significação e permanência, em direção a uma fragmentação, seja esta na relação mais promíscua objeto/paisagem, ou ainda na intermediação sinestésica efetuada pelos materiais e suas propriedades físicas.
Esta situação também é diagnosticada por Inãki Ábalos e Juan Herreros em seu texto “A pele frágil”, de 1995 (3). Neste há uma clara referência à ideia de debilidade, ampliando este debate para a possibilidade de uma arquitetura do sentido em detrimento de uma arquitetura do significado. Não se trata, como pode parecer, de um retorno ingênuo a uma abordagem fenomenológica da disciplina, senão que um flerte com o valor contingente, pontual e fugaz desta arquitetura. Uma arquitetura superficial, intranscendente, e que como tal mostra-se refratária a gestos figurativos. A dissolução do marco espacial tem na pele, na fachada, na transição interior/exterior seu ponto de tensão máximo, e é nesta intermediação que os autores encontram o potencial estético desta arquitetura.
Paralela a esta abordagem, vemos a integridade formal do objeto sendo também suplantada por um hibridismo na sua relação com a paisagem. Estas operativas e atitudes afins são delineadas por Anthony Vidler no texto de 2005, “O campo ampliado da arquitetura”, o qual deixa evidente este flerte da disciplina com experiências aportadas pelos movimentos artísticos mais recentes, notadamente a Land Art (4). Convém acrescentar que esta nova relação e inflexão mútua arquitetura/paisagem emana também de uma nova atitude frente à natureza, não mais bucólica ou romântica, mas sim uma natureza mais mesclada, mais ativa e não contemplativa. São arquiteturas de geometrias mais complexas em variadas operações topológicas, que tal como no campo das ciências, buscam incluir a dimensão temporal na configuração do espaço.
De igual modo, a dissolução do marco espacial é efetuada também na vertente mais pragmática deste debate da década de 1990. Também chamada de pós-crítica, tal atitude parece traduzir uma exaustão frente às aproximações filosóficas das décadas anteriores, alinhando a prática com as dinâmicas econômicas, sociais e tecnológicas do projeto urbano. Nesta vertente, que tem Rem Koolhaas (e seu think tank AMO) como personagem central, a arquitetura é tomada como disciplina proativa, uma espécie de business architecture direcionada e retroalimentada pelas demandas do mercado e do mundo corporativo. A incorporação da lógica metropolitana tanto em questões de escala, como na relação com os fluxos (materiais e imateriais), resulta no projeto de organismos urbanos de caráter híbrido, que desafiam e esfumaçam os limites do campo disciplinar.
Uma visão sistêmica da arquitetura e do papel do arquiteto vem sendo delineada nos últimos anos. Diante dos impactos econômicos da crise de 2008 e frente aos desafios impostos pela escassez de recursos naturais, pelo aquecimento global e pelas crises humanitárias — entre tantos outros fatores — o modus operandi do arquiteto se reconfigura. O pacto com práticas materiais comprometidas com questões sociais, ambientais e sustentáveis se infiltra no modo de pensar o projeto, o que parece apontar para um caminho sem volta. Por um lado verifica-se um asceticismo, uma austeridade, que se expressa através de um minimalismo estético de elevados custos e refinadas tecnologias, e por outro, por uma prática guiada pela economia de meios, por uma visão entrópica da arquitetura e pelo entendimento infraestrutural do projeto. Em seu texto Less is Enough (menos é suficiente), Pier Vittorio Aureli oferece uma interessante genealogia deste fenômeno e pontua claramente o imperativo da ordem econômica e do comprometimento ético nestas atitudes de projeto (5).
Desdobramentos
O flerte do pensamento arquitetônico com a termodinâmica se constrói a partir de um emaranhado de aportes teóricos que guardam estreitas relações com o panorama apresentado. De especial interesse é o aprofundado estudo desenvolvido por Luis Fernández-Galiano na sua tese doutoral de 1983, que derivou no livro El fuego y la memoria. Sobre arquitectura y energia, publicado em 1991 (6). Neste, a energia é tomada como núcleo da reflexão e da prática arquitetônica, inserindo as novas interpretações que incluem a ciência termodinâmica, em particular a noção de entropia, no cerne de um entendimento atualizado da disciplina. Segundo o autor, “a entropia é o autêntico artífice da demolição do mundo conceitual mecanicista, seu vigor teórico e sua versatilidade a torna extraordinariamente útil em múltiplos campos de reflexão” (7).
Desde diversas entradas é possível vislumbrar a aderência, por parte do pensamento disciplinar, a questões que vão desde a contestação do caráter permanente, estático e sólido da forma arquitetônica até a inserção de variantes materiais que buscam dar conta das transformações espaciais e da indefinição dos limites físicos da construção. Paralelamente, o pensamento arquitetônico se debruça mais atentamente aos aportes mais recentes das ciências naturais, estabelecendo novos paradigmas para repensar a prática profissional. Neste particular, a entropia converte-se em amplo campo de possibilidades desde o qual relacionar tempo, matéria e energia, e consequentemente, em potente mote criativo para o processo de projeto de arquitetura nas últimas décadas. Ao esgotamento do chamado “pesadelo semântico” (8) associa-se uma nova consciência ecológica, agora incorporada a uma atenta reconsideração da arquitetura desde suas implicações termodinâmicas.
Uma importante base epistemológica deste novo momento se situa no que Felix Guattari designou como Ecosofia. Exposto em 1989 no livro As três ecologias (9), este conceito tem fortes ressonâncias nas práticas arquitetônicas comprometidas com uma nova visão ecológica e com certa sensibilidade meio ambiental. A crise energética já anunciada na década de 1970, e incrementada por uma crise ecológica mais ampla, que inclui o aquecimento global, a consciência da finitude dos recursos naturais e os desequilíbrios climáticos deveria ser afrontada, segundo o autor, desde uma perspectiva sistêmica, intrinsecamente relacionada às práticas culturais, econômicas e políticas. Segundo Guattari, todas estas questões constituem diferentes aspectos de uma mesma crise ecológica que se afrontados transversalmente, poderiam reorientar o modo de produção de bens materiais e imateriais, subvertendo a lógica da economia de benefícios acumulativa e as relações estabelecidas de poder.
Neste estudo, o autor defende a necessidade de estabelecer novos pactos e agregar novas relações à ideia estabelecida de ecologia, ciência que estuda o meio ambiente, os seres vivos e suas relações. A seu ver, uma nova equação deveria ser efetuada, na qual deveriam figurar não apenas os elementos da natureza, como também as práticas sociais e as práticas subjetivas, através de um novo pacto ético-político. Esta nova referência ecosófica compreende uma leitura entrecruzada da realidade e propõe “linhas de recomposição das práxis humanas nos domínios mais variados” (10), notadamente uma nova ecosofia no campo social e no campo mental. A ideia de “territórios existenciais” configuraria, para Guattari, a dimensão espacial passível de extrair “as principais antinomias dos níveis ecosóficos, ou das três visões ecológicas” (11).
De especial interesse é o destaque que o autor dá às novas abordagens no campo das chamadas ciências duras, que a seu ver, estabelecem pautas desde as quais repensar o dilema que se coloca.
“Paradoxalmente, talvez seja das ciências ‘duras’ que podemos esperar a mudança mais espetacular. Por exemplo, não é significativo que, em seu último livro, Prigogine e Stengers invoquem a necessidade de introduzir um ‘elemento narrativo’ na física, indispensável, segundo eles, para teorizar a evolução em termos de irreversibilidade?” (12).
A consciência da irreversibilidade se mostra importante no estudo de Guattari, uma vez que sua proposta incide não sobre a contenção de danos, mas no questionamento das práticas estabelecidas. É nesta mediação que reside, segundo o autor, a possibilidade de lidar de maneira coerente com o esgotamento dos recursos naturais. Irreversibilidade, degradação e finitude compõem, portanto, os atributos que caracterizam, sob diversos aspectos, a performance temporal dos fenômenos e sobre os quais impõe-se uma nova reflexão. A concepção de tempo e sua relação com a complexidade da natureza constitui o centro das atenções no livro A nova aliança, a metamorfose da ciência de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, citado pelo Guattari.
“A história que vamos narrar é também a história da natureza, de nosso conceito sobre ela mesma, e de nossa relação material com ela, dos efeitos que produzimos e dos processos que cultivamos sistematicamente, ao povoá-la de máquinas. […] Onde nos encontramos hoje em dia? A natureza a que se dirige nossa ciência não é mais aquela que podia ser descrita por um tempo invariável e repetitivo, nem tampouco aquela cuja função monótona, crescente ou decrescente se resumia em evolução. Exploramos agora uma natureza de evoluções múltiplas e divergentes que nos faz pensar não em um tempo em detrimento de outros, mas da coexistência de tempos indiscutivelmente diferentes e ligados entre si. O tempo hoje encontrado é também o tempo que não fala mais de solidão, mas da aliança do homem com a natureza que descreve (13).
Em vista do cenário que se estabelece a partir da crise energética, a ciência termodinâmica é revisitada por variados autores, intuindo a necessidade de estabelecer novos paradigmas para repensar não só as matrizes tecnológico-produtivas, mas igualmente as estruturas políticas, econômicas e sociais que as sustentam. Em seu estudo Prigogine e Stengers focam nas “estruturas dissipativas” e na chamada “nova ecologia” que tem a energia como unidade de medida e referência, contrapondo o tempo não linear das relações termodinâmicas à concepção linear do tempo mecanicista. Para os autores, os sistemas abertos (organismos vivos) são mais criativos, uma vez que intercambiam matéria e energia com exterior, evoluindo até estados de maior “ordem”, se contrapondo assim aos sistemas isolados do mundo exterior, fadados a degradar-se.
“A dissipação de energia e de matéria — geralmente associada à perda, rendimento e evolução rumo à desordem — se converte, longe do equilíbrio, em fonte de ordem; a dissipação se encontra na origem do que podemos chamar de novos estados da matéria (14).
O binômio matéria/energia mostra-se indissociável do meio que o nutre, evidenciando que a forma destes organismos é menos relevante do que o controle dos fluxos e intensidades de energia que os atravessam. Tal aproximação implica numa abordagem não determinista, entendendo todos os processos como operações contingentes, imprevisíveis, no âmbito de sistemas interativos. São fenômenos cuja materialidade subverte os atributos de permanência e estabilidade, e que desafiam as certezas e a previsibilidade que embasavam o pensamento científico.
“Enquanto que a ciência clássica colocava ênfase na permanência, agora encontramos mudança e evolução, encontramos partículas elementares transformando-se umas em outras, chocando-se, descompondo-se e nascendo; agora vemos objetos estranhos, quasares, pulsares, galáxias que explodem e se desprendem […] o tempo foi introduzido não só na biologia, na geologia, nas ciências das sociedades e das culturas, mas também nos dois níveis em que estava tradicionalmente excluído, a saber, o nível microscópico fundamental, e o nível cósmico global” (15).
Ainda que circunscrito ao campo das ciências da natureza, o aporte hermenêutico de Prigogine e Stengers ilumina sobremaneira questões que atravessam outras áreas do conhecimento. Nas ciências econômicas o estudo da entropia é feito por Nicholas Georgescu-Roegen já no começo da década de 1970, forjando sua ideia de “decrescimento”. A seu ver, o ciclo econômico deveria ser repensado em sua relação predatória com o meio ambiente, uma vez que a lógica produtiva sempre esteve apoiada na exploração dos recursos naturais, e consequentemente, desde uma ideia equivocada de reversibilidade e abundância.
“O processo econômico, como todo processo vivo, é irreversível; por conseguinte não se pode dar conta dele somente em termos de mecânica. É a termodinâmica, com sua Lei da Entropia, que reconhece a distinção qualitativa entre os inputs dos recursos de valor (baixa entropia) e os outputs finais de resíduos sem valor (alta entropia). O paradoxo suscitado por esta reflexão é que todo processo econômico consiste em transformar matéria e energia de valor em resíduos. Isto nos força a reconhecer que o produto real do processo econômico não é o fluxo material de resíduos, mas o fluxo imaterial sempre misterioso da ‘alegria de viver’” (16).
Para o autor, o mundo teria a urgência de uma “nova ética”:
“Para realizar este sonho, poderíamos começar com um programa bioeconômico mínimo, que considerasse não só o destino de nossos contemporâneos, mas também o das gerações futuras. Durante demasiado tempo, os economistas preconizaram a maximização de nossos ganhos. Já é bem tempo de sabermos que a conduta mais racional consiste em minimizar arrependimentos. Toda peça de armamento, como todo grande automóvel, significa menos comida para aqueles que hoje têm fome, menos arados para as gerações vindouras de seres humanos semelhantes a nós” (17).
Semelhante enfoque ético é o que estrutura, já na década de 1960, a obra de Robert Smithson. Em seu texto “Os monumentos de Passaic”, de 1967 (18), a entropia comparece como mote reflexivo ao nomear as paisagens industriais abandonadas como a face reversa da construção das grandes metrópoles. Segundo o autor, Passaic, em Nova Jersey, visibiliza a passagem do tempo na sua realidade entrópica e constitui um “cenário antirromântico” diretamente relacionado ao crescimento de Manhattan. Em uma entrevista posterior, o artista se alinha ao pensamento de Georgescu-Roegen, que reivindica um contraponto à visão econômica dominante, na qual é ignorado o ônus entrópico do processo produtivo/desenvolvimentista baseado na multiplicação infinita de resíduos. Em sua abordagem ética do meio ambiente, Smithson defende que esta discussão passa necessariamente pela questão dos resíduos, o que o leva a sentenciar que “em certo sentido, resíduo e desfrute estão emparelhados” e que provavelmente “o oposto do descarte seja o luxo” (19).
No âmbito da arquitetura destaca-se o já citado estudo de Fernández-Galiano que traz uma leitura reveladora da disciplina sob a ótica termodinâmica. Argumento central de seu trabalho é a constatação que a energia introduz vida ao mundo da arquitetura, por ser esta uma prática material que consome energia em seu processo construtivo, manutenção e existência. Sintonizado com os aportes das chamadas ciências duras, e impregnado pelo viés ético-político do momento histórico em questão, o autor reposiciona em bases mais objetivas a abordagem predominantemente formal da arquitetura. Segundo ele, a forma, entendida como organização material do espaço que regula e ordena fluxos de energia, permite entender a arquitetura como construção do ambiente artificial desde um parâmetro essencialmente termodinâmico. Deste modo, mais do que relacionada estritamente ao objeto, à forma em si, a arquitetura compreende ciclos de vida, relacionando decisivamente a dimensão temporal à prática disciplinar. Neste particular, a entropia, segundo princípio da termodinâmica, comparece como ponto central e estruturador de seu argumento, uma vez que redireciona a arquitetura para além da restrita concepção mecanicista e consequentemente, promove uma corrosão nas noções de tempo e permanência física. Enquanto que o primeiro princípio é regido pela concepção quantitativa/conservadora de energia, a concepção qualitativa/evolutiva da entropia é pautada pela imprevisibilidade.
“A importância filosófica e científica do segundo princípio dificilmente pode ser subestimada. Através do inevitável aumento da entropia associado a qualquer interação entre matéria e energia se produzem mudanças irreversíveis. O aumento da entropia é tanto maior quanto mais rápidas são as transformações, o que vincula a velocidade dos processos com o incremento da degradação e oferece um valioso instrumento para a análise entre a aceleração dos câmbios gerada pela Revolução Industrial e a problemática dos recursos naturais. […] No mundo ordenado, imutável, intemporal e necessário do mecanicismo, a entropia introduz a desordem, a degradação, o tempo irreversível e o câmbio aleatório” (20).
Ao deslocar o entendimento estritamente formal para uma abordagem termodinâmica da arquitetura, Fernández-Galiano (21) advoga por uma prática voltada para a regeneração do existente como única atitude possível frente à finitude dos recursos naturais, aos limites físicos do crescimento e seus impactos em termos energéticos. Continuidade com o existente, simplicidade formal, assim como uma ocupação urbana pautada pela densidade, são antídotos apontados como pautas acordes com o momento. A sua defesa de uma cidade compacta responde diretamente a este enfoque, já que esta envolve menor custo material e energético na construção de suas infraestruturas urbanas que por sua vez podem ser compartilhadas por um número maior de pessoas, o que impacta diretamente no tempo e no custo dos deslocamentos. O panorama que se coloca demanda, segundo o autor, uma renúncia ao supérfluo na arquitetura — e na vida — que se valha da própria limitação como fonte criativa de uma nova abordagem ética e estética que configure uma fonte de beleza e prazer.
Uma importante contribuição a este tema é o livro organizado por Javier García-Germán no qual elabora uma genealogia da abordagem termodinâmica na arquitetura, apontando autores — entre eles Fernández-Galiano — e textos fundamentais para o acercamento a este debate. De especial interesse aqui é o giro no entendimento da própria essência operativa da arquitetura, e que diz respeito à já mencionada superação do paradigma formal apontada pela crítica de finais do século 20.
“A entropia oferece uma nova estrutura a partir da qual é possível compreender a realidade material através do tempo e mostra a necessidade de desenvolver ferramentas espaço-temporais que facilitem o engajamento do projeto com os fluxos de energia que o atravessam, deslocando o interesse das quantidades para as qualidades. Comparada ao extensivo — a distância, a superfície e o volume—, a termodinâmica oferece a oportunidade de entender o projeto em termos do intensivo: a temperatura, a pressão ou a quantidade de energia potencial armazenada” (22).
Ao privilegiar as noções de tempo e intensidade na equação projetual é possível afirmar, tal como aponta Rafael Moneo (23) acerca do estudo de Fernández-Galiano, que a energia agrega à tríade vitruviana um quarto atributo. De fato, o ônus entrópico se inicia no próprio ato de edificar, o que demanda a reconsideração de todo processo de projeto não só do componente físico da construção sob a lente da energia, mas, sobretudo do desempenho temporal do programa em termos de espaço. Sobrevida, adaptabilidade, transformação e mutabilidade, para citar algumas, são operativas eticamente comprometidas com a urgência da crise ambiental e que vão informar também novas abordagens estéticas do projeto.
Desde diferentes contextos é possível verificar práticas que se valem do caráter entrópico da construção no ensaio de novas expressões arquitetônicas. Dentre estas, merece destaque o que Fernández-Galiano denomina “arquitetura atmosférica”. O termo se inspira na ideia de “arte atmosférica” designada por Bruno Latour em sua apreciação da obra de Olafur Eliasson e compreende manifestações artísticas atentas ao controle climático, ao tátil e ao térmico (24). No âmbito da arquitetura esta abordagem “ressoa com uma longa tradição crítica que explorou a fisiologia dos edifícios com preferência às considerações anatômicas usuais: uma tradição na qual o ar ou a água são tão importantes quanto a pedra, o vidro ou o aço” (25). Trata-se de uma arquitetura que subverte a ênfase na solidez material e singulariza-se pelo entendimento do edifício como um “organismo” em que flutuações térmicas, umidade do ambiente e o movimento do ar comparecem como “bases físicas tanto de uma estética termodinâmica quanto de uma ética ecossistêmica” (26).
Neste viés, há de se destacar a pesquisa de Iñaki Ábalos acerca de uma “beleza termodinâmica” (27) que vai de encontro ao exposto. Nesta, a termodinâmica converte-se em potente mote criativo para o processo de projeto, que por sua vez suplantaria os paradigmas mecânico e tectônico até então prevalentes na disciplina. Interessante notar que o tema da sustentabilidade perpassa o estudo de Ábalos desde um viés heterodoxo, advogando pela combinação entre alta e baixa tecnologia, distanciado portanto da espetacularização formal e tecnológica comumente associada ao tema. Deste modo uma “beleza termodinâmica” estaria relacionada a uma experiência “somática” da arquitetura, que desde sua dimensão física proporcionaria uma construção sensorial do ambiente. Uma arquitetura que incorpora o ar como matéria construtiva, sem fazê-lo em termos metafóricos, poéticos ou fenomenológicos. Uma “sensibilidade atmosférica” também está na base das propostas do escritório amid.cero9, dos arquitetos espanhóis Cristína Díaz Moreno e Éfren García Grinda. Em seus textos (28) os autores reivindicam uma aproximação da arquitetura à natureza, tendo o ar como material de trabalho, de modo a inserir a dinâmica dos sistemas ambientais na configuração de seus projetos. Semelhante enfoque é verificado nos textos do arquiteto Philippe Rahm, cuja obra apresenta um resultado estético intrinsicamente relacionado aos processos físicos/atmosféricos naturais envolvidos no processo de projeto.
A entropia também comparece como mote reflexivo ao abordar a obsolescência programática das construções ao longo do tempo. A “performance temporal” dos espaços construídos está na essência do entendimento infraestrutural do projeto e insere o debate da sustentabilidade para além da métrica das adequações normativas. Neste sentido, o edifício é repensado como um dispositivo aberto que possibilita sua adaptabilidade física/espacial à variedade de dinâmicas e usos ao longo do tempo. Esta estratégia pode também ser entendida como a criação de uma “ecologia” própria que inclui não só a realidade física e ambiental, mas também as relações sociais e subjetivas que aí se instauram. De igual modo, altera-se a relação estática entre edifício e cidade uma vez que o projeto passa a ser pensado como um sistema que interage em uma multiplicidade de escalas. Os aportes teóricos de Stan Allen são paradigmáticos desta abordagem (29), assim como os estudos de Carlos Alberto Maciel sobre arquitetura como infraestrutura. Em uma linha investigativa afim, Sebastian Adamo e Marcelo Faiden desenvolvem um entendimento infraestrutural do programa em projetos que são moldados pelas questões térmicas e atmosféricas da construção (30). Esta síntese também está, desde longa data, na base das obras da dupla Anne Lacaton e Jean Philippe Vasal.
De importância subliminar a estes aportes está a pauta da economia de meios. O imperativo de ordem econômica se coloca como freio de ordenação que se relaciona tanto com uma aproximação energética da arquitetura, como no entendimento infraestrutural do projeto. Em ambas as abordagens verifica-se a prevalência de processos projetuais que aliam o baixo custo à maximização de resultados, associados à pesquisa sistemática de materiais e de alternativas construtivas low-tech. Neste sentido a economia de meios aqui invocada não se coloca como um princípio de ordem estética a priori (por vezes rotulado como um “minimalismo” arquitetônico), mas o núcleo ideológico de uma visão social mais ampla e multidisciplinar. As obras de Diébédo Kéré, Solano Benítez, e tantos outros, são paradigmáticas desta abordagem disciplinar.
Em sintonia a estes aportes, há todo um pensamento de projeto que incorpora o tempo como “parâmetro manipulável”. Como que desafiando a própria ideia de firmitas, são arquiteturas que fazem da impermanência física e da obsolescência atributos, operando uma crítica a sociedade de consumo e a face predatória da construção. São intervenções de caráter temporário, desmontáveis, acopláveis, com clara ênfase no processo, que se valem da própria fragilidade, intranscendência e ausência de significados para imprimir distintas relações com o lugar em que se inserem. O ato de edificar se converte em um motor de consciência ética comprometido diretamente com seu entorno físico e social. Nesta linha de ação situam-se os coletivos Raumlaborberlin, Assemble e também o arquiteto Santiago Cirugeda, entre outros.
Em uma conferência por ocasião do congresso Anyway, em 1993, Ignasi de Solà-Morales relaciona a arquitetura com o ato de colonizar.
“Quando um colonizador se instala sobre um novo território ele ou ela o submete a uma nova ordem, distinta da que possuía no passado. Ele não apenas o arranca violentamente de seus moradores, mas também elimina as relações orgânicas dos processos naturais. Formas prévias são canceladas. A topografia, o curso das águas, a distribuição da vegetação, o habitat da fauna são todos agressivamente transformados. Construir é violentar os materiais da terra, alterar o comportamento do meio ambiente, modificar a paisagem. […] Uma cortina de fumaça encobre a natureza genuinamente destrutiva e violenta da arquitetura e as mutações radicais que cada ato de construção impõe ao ambiente” (31).
Situar a entropia como horizonte de análise do cenário da arquitetura atual impõe vislumbrar linhas de pensamento e atitudes de projeto que façam frente a dimensão colonizadora do ato construtivo. O entendimento da arquitetura como prática material atravessada por fluxos de energia desloca a abordagem estritamente formal para operativas que desafiam os atributos de permanência, solidez e imposição de limites, e remetem a um entendimento alargado da própria noção de firmitas, incluindo a variação espacial e a mutabilidade da consistência física. Mais que objetos, trata-se de organismos, que desde diversas relações sistêmicas com o ambiente físico e cultural, tem na performance temporal o modo de habitar um mundo em crise. Tais aspectos informam o redesenho da ideia de projeto e do próprio papel do arquiteto, no que parece configurar uma prática profissional ética e politicamente comprometida com os desafios contemporâneos.
notas
1
Sobre esta questão ver IBELINGS, Hans. Posmodernismo. Supermodernismo. Arquitectura en la era de la globalización. Barcelona, Gustavo Gili, 1998, p. 12–30.
2
SOLÀ-MORALES, Ignasi. Arquitectura Débil. Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona, Gustavo Gili, 1995.
3
ÁBALOS, Iñaki; HERREROS, Juan. La piel frágil. Areas de impunidad. Barcelona, Actar, 1997.
4
VIDLER, Anthony. O campo ampliado da arquitetura. In SYKES, Krista A. (org.). O campo ampliado da arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2013.
5
AURELI, Pier Vittorio. Less is Enough. Strelka Press, 2014.
6
FERNÁNDEZ-GALIANO, Luis. El fuego y la memoria. Sobre arquitectura y energia. Madri, Alianza Editorial, 1991.
7
Idem, ibidem, p. 68.
8
Termo utilizado por Luis Fernández-Galiano em seu discurso de ingresso para a Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, intitulado “Arquitectura y vida. El arte em mutación” (Madri, 2012).
9
GUATTARI, Félix. Las tres ecologías. Cidade do México, 2.0.1.2. Editorial, 2012.
10
Idem, ibidem, p. 9.
11
Idem, ibidem, p. 27.
12
Idem, ibidem, p.15.
13
PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. La nueva alianza. Metamorfosis de la ciência. Madri, Alianza Editorial, 1994, p. 45–46.
14
Idem, ibidem, p. 181.
15
Idem, ibidem, p. 246.
16
GEORGESCU-ROEGEN, Nicholas. O decrescimento. Entropia, ecologia, economia. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2012, p. 84.
17
Idem, ibidem, p. 155.
18
SMITHSON, Robert. A tour of the monuments of Passaic, New Jersey. In FLAM, Jack (org.) Robert Smithson, the collected writings. Berkeley, University of California Press, 1996.
19
SMITHSON, Robert. La entropía se hace visible. In GARCÍA-GERMÁN, Javier. De lo mecánico a lo termodinámico. Barcelona, Gustavo Gili, 2010, p. 56.
20
FERNÁNDEZ-GALIANO, Luis. Op. cit., 1991, p. 67–68.
21
Sobre o tema ver FERNÁNDEZ-GALIANO, Luís. Arquitectura y vida. El arte em mutación (op. cit.).
22
GARCÍA-GERMÁN, Javier. De lo mecánico a lo termodinámico. Barcelona, Gustavo Gili, 2010, p. 15–16.
23
Sobre o tema ver a contestação de Rafael Moneo ao discurso FERNÁNDEZ-GALIANO, Luís. Arquitectura y vida. El arte em mutación (op. cit.).
24
LATOUR, Bruno. Atmosphère, Atmosphère. In GARCÍA-GERMÁN, Javier. Op. cit., p. 93.
25
FERNÁNDEZ-GALIANO, Luís. Op. cit., 2012, p. 35.
26
Idem, ibidem.
27
ÁBALOS, Iñaki. La beleza termodinâmica. Circo, n. 157, 2008.
28
São dois os textos aqui destacados: Atmósfera, material del jardineiro digital e Breathable Architecture.
29
Em especial os textos Field Conditions e Infrastructural Urbanism.
30
De especial interesse é a proposta das casas MuReRe (sigla para “mutualismo residencial regenerativo”) onde os autores se inspiram no processo biológico do mutualismo para repensar a deterioração e baixa densidade das zonas periféricas de Buenos Aires, a partir de uma abordagem programática e energética.
31
SOLÀ-MORALES, Ignasi. Colonization, Violence, Resistance. In Anyway, 1993, p. 120.
sobre a autora
Laís Bronstein é doutora (Etsab UPC, 2002), arquiteta (FAU UFRJ, 1987) e mestre (FAU USP, 1996). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.