A obra
Fruto de um concurso de arquitetura (1955) (1) a Igreja da paróquia de Santa Maria Madalena foi construída na parte alta do bairro de Vila Madalena. Segundo Joaquim Guedes, este projeto foi por ele cogitado a partir de 1953, enquanto estudante de arquitetura (2). O projeto se baseia em um único volume prismático de faces heptagonais interligadas por arestas horizontais, apoiado sobre pilotis. Sua cobertura de duas águas abriga em seu interior uma única cobertura para o culto que reúne altar e nave. Ele se define como uma arena plana, na qual se situa o altar, ladeada por duas arquibancadas simétricas e em declive, gerando para a igreja um ambiente de ecclēsĭa,ae pela qual se reimprime ao edifício o sentido de assembleia enquanto proposição de participação e integração dos fiéis às manifestações religiosas.
Todo este volume se apoia em pilares que geravam um subsolo no qual se localizou uma pequena área de apoio à sacristia e de grande espaço em planta livre no qual, na versão original, eram propostas áreas disponíveis para usos futuros.
O prédio da igreja foi implantado na parte posterior do lote, com um recuo de dois metros, reservando a área frontal para um adro para uso comunitário. Possui um acesso central, o qual se atinge por meio de escadas para acesso às duas portas de entrada. Contém em seu nível mais baixo um acesso lateral à esquerda para o subsolo
Toda a estrutura é em concreto armado, inclusive os vedos que se erguem até meia altura do volume principal e recebiam, a partir deste nível vedação em vidro, que se desdobrava por todas as superfícies do volume numa radical fenêtre en bandeau definidas por Le Corbusier e com as quinas de vidro propostas por Walter Gropius na Fábrica Fagus.
O amplo acesso situava o altar da igreja à vista do passante, como um ambiente disponibilizado à comunidade pela transparência dos vidros situados nas e sobre as portas de entrada.
Joaquim Guedes, reconhecimentos
Joaquim Manoel Guedes Sobrinho (1932–2008) formou-se em 1954, em São Paulo, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, porém viveu sua infância em cidades do interior paulista, período em que teve aulas de pintura, cursou ginásio de freiras francesas em Piracicaba, no qual aprendeu a língua francesa e o latim e teve formação complementar em música. Sua biografia, obras e referências podem ser encontradas no livro de Monica Junqueira de Camargo (3).
Enquanto estudante de arquitetura trabalhou em setores progressistas da Igreja Católica, teve experiência como estagiário na Sociedade para Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais — Sagmacs na qual experienciou as visões do padre Lebret e alas renovadoras da Igreja Católica. Segundo Laide Sonda, também teria havido um contato com estes setores, por meio de seu irmão Vicente, que era padre (4).
Estas experiências foram ampliadas pelo convívio como o padre Olavo Pezzoti (5), pároco da Vila Madalena colaboraram para o projeto progressista da igreja.
Formou-se arquiteto na terceira turma da FAU USP, na qual conheceu sua futura esposa, Liliana Guedes, com a qual iniciou seu escritório.
Houve também um contato com os padres dominicanos e com os arquitetos Carlos Barjas Millan e Domingos Teodoro de Azevedo, os quais, junto ao casal, desenvolveram um dos projetos enviados para o concurso do Plano Piloto de Brasília (1956–1957).
É reconhecido por seus vários projetos de residências e projetos urbanos, entre os quais destacam-se a residência Waldo Perseu Pereira (1967) e a cidade Nova de Caraíba (1976), no estado da Bahia.
Joaquim Guedes sua formação e a da linguagem da Escola Paulista
Um conjunto de circunstâncias ampara a gestação do projeto da Igreja. Deriva da vivência e a fazedura dos arquitetos, cuja formação se deu na FAU USP e na vizinha Faculdade de Arquitetura Mackenzie — FAM, hoje Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie — FAU Mackenzie, nos anos 1950–1960. Nelas, já vigiam proposições modernas de arquitetura propiciadas por leituras e conversas sobre publicações de obras de Wright, Le Corbusier, Niemeyer e muitos outros que estavam propondo uma nova linguagem e novas atribuições para a arquitetura, todas envolvidas no reconhecimento de uma profissão voltada às necessidades do país.
Na FAM, sobrepujando as diretivas de Cristiano Stockler das Neves, havia, por meio dos estudantes e alguns professores, uma busca por novos caminhos que não fossem os de viés acadêmico.
“Os alunos da FAM, exemplo da vizinha FAU USP, requisitavam alterações no currículo e nas linhas gerais do ensino de acordo com os ideais modernistas. A estas reivindicações juntavam-se diferenças políticas e ideológicas que os jovens alunos, alinhados mais à esquerda, possuíam em relação ao decano marcado por seus posicionamentos conservadores” (6).
Em entrevista à Carlos Faggin (7), o arquiteto Luiz Roberto Carvalho Franco formado em 1951, no Mackenzie, relata que estas insurgências ocorriam em paralelo à vida escolar, afora das diretivas acadêmicas, por meio de publicações e debates acerca das obras de arquitetos modernos.
Na vizinha FAU USP, esta atitude, também acompanhada, por docentes e discentes, pelo repúdio à academia e pela ampliação do campo profissional dentro de novas pautas da arquitetura moderna.
Um breve panorama dos estudantes destas escolas nos anos 1950, nos quais Guedes se formou, revela que grande parte deles se alinhava às visões sociais e modernizadoras, principalmente as de Vilanova Artigas. Dentre estes estudantes contemporâneos podem ser citados entre outros: “Carlos Millan, Joaquim Guedes, Paulo Mendes da Rocha, Fábio Penteado, Pedro Paulo de Mello Saraiva e Abraão Sanovicz, dos quais, curiosamente, só Guedes e Sanovicz foram seus alunos” (8). Em particular, para a formação de Guedes é ressaltada por seu apreço às obras de Rino Levi e Roberto Cerqueira Cesar, sua aproximação durante a escola à Artigas (depois um afastamento) (9) e sua notória admiração pelas obras de Alvar Aalto (10).
Superadas as querelas estilísticas enfrentadas pelas gerações anteriores, parte destes formandos veio a contribuir com o embrião de um conjunto de obras da arquitetura moderna, a qual se identificou como Escola Brutalista Paulista (11).
Naquele momento, ao papel dos arquitetos impregnaram-se propósitos de atuação em reais e imaginadas transformações sociais, comprometidas com a modernização e o desenvolvimento do Brasil.
“Note-se que o aparecimento dessa nova geração paulista que se inicia profissionalmente no cenário brasileiro, propondo obras de cunho brutalista, dá-se antes da inauguração de Brasília (mas parcialmente coincidente com o concurso e construção da nova capital” (12).
Em um panorama mais amplo, nos meados dos anos 1950, Lopez e Mota registram:
“O período que correspondeu à presidência de Juscelino Kubitschek (1956–1961) pode ser definido por uma palavra: desenvolvimentismo. Em seu governo abre-se o período de uma sonhada modernidade no país, que marcaria todo o período 1956-1964” (13).
Os autores citando o Plano de Metas, assinalam que a modernização e o desenvolvimento do país, possuíam um emblema arquitetônico:
“O ponto máximo do processo de modernização do país, residiu, com efeito, na construção célere de Brasília, nova capital do país plantada no Brasil Central, pensada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer e construída em três anos” (14).
Modernismo com brasilidade, avanços sociais e desenvolvimento de uma tecnologia própria eram vinculados aos debates políticos e a participação profissional mais ampla, conforme discurso de Artigas aos formandos da FAU USP de 1955.
“Contrariando os pensamentos e as tendências de um pequeno grupo que ainda se apega ao ecletismo arquitetônico, a grande maioria de nossa intelectualidade logo compreendeu que os projetos dos arquitetos brasileiros revelam sempre o desejo ardente de encontrar solução técnica e artística adequada aos problemas de construção no Brasil […]. A democratização das conquistas da arquitetura deve ser encarada como desejo ardente, por parte do povo, da aquisição de uma linguagem no campo da arquitetura” (15).
Os espaços religiosos e a arquitetura moderna
Os locais destinados a abrigar funções religiosas e a expressão dos artefatos destinados ao culto, registram manifestações culturais de uma época: templos, igrejas, catedrais, túmulos, jazigos, sempre exteriorizam um sentido para a vida e divindades, a cada momento e a cada povo.
Edificações religiosas denotam epifanias da existência humana e, de modo sintético, existem como materialidades erigidas, para auxiliar, por meio da fé, o sentido do habitar em um cosmos que se distingue do existir num caos, no dizer de Mircea Eliade:
“Mas visto que se instalar em qualquer parte, habitar um espaço, equivale a reiterar a cosmogonia, e, portanto, a imitar a obra dos deuses, para o homem religioso toda decisão existencial de se ‘situar’ no espaço constitui, de fato, uma decisão religiosa. Assumindo a responsabilidade de ‘criar’ o mundo que decidiu habitar, não somente cosmiza o caos, mas também santifica seu pequeno Cosmos, tornando o semelhante ao mundo dos deuses. A profunda nostalgia do homem religioso é habitar um ‘mundo divino’, ter uma casa semelhante à ‘casa dos deuses’, tal qual foi representada mais tarde nos templos e santuários. Em suma, essa nostalgia religiosa exprime o desejo de viver num cosmos puro e santo, tal como era no começo” (16).
As formas de religar os homens às divindades se consolidam por meio de obras, escritos, cerimônias etc., com as quais, individual ou socialmente, ocorrem relações entre os homens e o espiritual. Dos entendimentos sobre as divindades e suas relações com a vidas terrestres são definidos comportamentos, normas e preceitos que atuam como vínculos entre os próprios homens.
Os ambientes destinados a funções sagradas, não são apenas espaços físicos, contendo sinais, objetos e símbolos, mas revelam a compreensão do espiritual cravado nas obras das criações da cultura humana. Tornam-se marcos, pelos e nos quais, se manifestam valores e poderes espirituais e materiais. Conduzem ao estabelecimento de normas e juízos a serem seguidos para a existência presente e a de um imaginário além dela.
Locais nos quais se reúnem fiéis interligados por suas crenças, funcionam como suporte de ideários e de regramentos sociais. Ao ultrapassar a noção de religião como um religar o homem às divindades, também religam os homens entre si.
As arquiteturas sacras fixam, a cada interpretação, um conjunto de obras, para abrigar as cerimônias, os rituais e as ações litúrgicas, dando origem ao templo, à basílica, à mesquita, à catedral, ao pagode, à igreja, à pirâmide, ao jazigo, ao mausoléu etc. Estabelecendo materialmente tradições de cada religião.
As tradições de artefatos gerados pelos costumes ocorrem por heranças de padrões figurativos miméticos ou simbólicos, utilizados para identificação dos edifícios a cada religião ou culto.
Ao intentar proposições de novos e coetâneos formatos dos edifícios destinados às práticas litúrgicas é que surgem obstáculos para se contrapor aos modelos estabelecidos pela tradição.
Ao contrário destas heranças, as bases da modernidade arquitetônica derivam de uma ruptura, quer por razões funcionais, construtivas, racionais e de busca de novas expressões vinculadas a hodiernas compreensões do universo. Esta ruptura forjou-se, em grande parte, por abstrações formais as quais colidiam com as tradicionais representações obras existentes.
As datas dos dois Concílios da Igreja Católica, mais marcantes para o estabelecimento de mudanças na liturgia, são do Vaticano I de Trento (1870) e o futuro Concílio Vaticano II (1962). Para a arquitetura de igrejas Seegerer, faz uma consideração sobre este longo período de mais de três séculos cuja diferença que é:
“Interessante pois certamente se compreenderá melhor o contexto e a necessidade que a Igreja sentiu em posicionar-se diante de um mundo contemporâneo com vistas ao futuro. Ao mesmo, tempo, percebe-se também estes dados a dinâmica (lenta e cautelosa) desta instituição quando o assunto é mudança, alteração, adequação de suas realidades” (17).
Portanto, houve um período em que alguns edifícios religiosos de alto valor arquitetônico e espiritual, ao buscar convívios entre tradição e modernidade tiveram dificuldades a serem aceitos ou compreendidos. Pode-se citar, dentre outras obras: a Igreja Nossa Senhora de Raincy (1923) de Perret (18), a Igreja de São Francisco de Assis (1940) e a catedral de Brasília (1958) ambas de Niemeyer, a Capela Notre-Dame du Haut (1951) de Le Corbusier. Obras nas quais se encontra a predisposição de levar o “espírito de religiosidade” ao encontro do “esprit du temps”.
Estes projetos revelavam tentativas de aggiornamento das edificações e da liturgia que germinavam em várias religiões, inclusive, na Igreja Católica, mesmo antes do Concílio Vaticano II de 1962.
Arquitetura moderna de espaços religiosos no Brasil
No Brasil dos anos 1950, pelo predomínio católico, as barreiras eram fortemente presentes, tanto pela disseminação das tipologias costumeiras, quanto pelo uso da arte sacra de imagens figurativas (devido, inclusive ao índice de analfabetos no período).
A distribuição espacial arquitetônica das igrejas católicas mantinha, para a liturgia, distanciamento e segregação espacial entre o presbitério/altar e a nave dedicada aos fiéis. No altar os padres atuavam de costas para a nave, de modo que suas ações e orações, não estava nem à vista, nem da compreensão dos fiéis (até meados 1960 pela missa rezada em latim).
Exemplo notório do embate entre o tradicional e o moderno, foi o projeto da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha (1940), tido como o primeiro exemplar de arquitetura religiosa moderna Brasil
“A obra não foi aceita pela Igreja, o então arcebispo de Belo Horizonte Dom Antonio Santos Colorado descreveu o templo como um edifício de concepção arquitetônica aberrante e exótica… o edifício ainda teria sido feito por um arquiteto comunista que seria incapaz de receber uma iluminação divina para realizar um edifício religioso” (19).
Concluída em 1943, a igreja só foi reconhecida institucionalmente, como local de culto em 1959.
Algumas destas tendências renovadoras eram constatadas desde o início do século passado na própria Igreja; como as iniciativas do Movimento Litúrgico — ML, embora Laide Sonda (20) não tenha verificado nenhuma interferência direta dele, nos projetos aqui realizados.
Algumas ordens, como a dos dominicanos, com a qual Guedes conviveu, já propugnavam a busca por outras formas de instalar a “casa de Deus”, como local de comunhão dos fiéis com Deus e com o Zeitgeist da modernidade.
Esta ordem ao buscar referências marcantes para renovações do espaço litúrgico, promoveu, em 1952, um concurso de anteprojetos para a Igreja de São Domingos.
O certame retratado por Marcio Antonio Lima Júnior (21) contou com participação de notórios arquitetos modernos, como Sergio Bernardes, Rino Levi, Vilanova Artigas, Jacob Ruchti, dentre outros. Embora Sergio Bernardes tenha sido vencedor, após questionamentos, o projeto foi outorgado ao arquiteto Franz Heep.
Das propostas modernas notam-se muitas referências, mas duas devem ser citadas: o projeto de Le Corbusier para Unidade habitacional de Marselha (1947–1952) pelo qual o uso do beton bruit se difundiu com grande vigor, e a Revista L’Art Sacré, ligada à ala progressista da igreja, que desde 1931, foi responsável por difundir o agggionnamento da arquitetura sacra (vinculada à verdade e simplicidade dos materiais). Em 1955, publicou a obra da capela de Ronchamps (1950–1955), no mesmo período, no qual Guedes tinha convivência com os dominicanos e realizava seu projeto da igreja de Vila Madalena.
As versões do projeto e seu turvamento
Criada em 1951, a paróquia se instalava em um pequeno edifício. Um novo construção foi necessária devido ao crescimento dos fiéis e do bairro. Na época, a Vila Madalena se constituía, basicamente de casas térreas e sobrados habitados por classes populares e famílias de imigrantes e seus descendentes, com pequeno comércio local (22).
Carente de boa infraestrutura, escolas e poucos recursos de transporte coletivo, a vila tinha um perfil muito distante do que é observado atualmente.
Naquele tempo, eram conhecidas pela comunidade as ações do padre Olavo Pezzoti, que além de seu trabalho paroquial realizava reivindicações de melhoramentos para o bairro, inclusive o pedido de novo edifício para a igreja. Por suas posições vanguardeiras colaborou para o projeto inovador da igreja, o qual rompia com a tradição espacial das construções católicas, devido ao seu arranjo espacial aliado à nova liturgia e vinculação ao bairro (23).
O projeto se do volume prismático de formato heptagonal, notabilizava-se pela transgressão ao modelo basilical por se definir internamente como uma espécie de ecclēsĭa,ae, uma assembleia para a participação e integração dos fiéis ao culto.
Seu altar situado em uma área plana ladeada por duas arquibancadas simétricas, configurava uma arena, assim não eram tão marcantes a segregação entre presbitério e nave e entre atos litúrgicos e fiéis. Os fiéis eram acolhidos próximos ao altar e se entreolhavam, ao mesmo tempo em que participavam das ações de culto.
Não se foram encontrados, antes de 1956, quaisquer registros gráficos anteriores da concepção da igreja (mesmo do concurso), dessa forma eles acabaram por serem tidos como a primeira etapa do projeto por Marcio Antonio Lima Junior (24).
Neles, à frente do volume heptagonal era proposto uma espécie de nartéx externo, logo à entrada, no qual estariam localizadas a pia batismal e os confessionários. O projeto se desenvolvia em dois pisos, um superior que se se alcançava por uma escadaria central e que dava acesso aos locais de culto e outro no subsolo destinado à um anexo da sacristia e duas áreas para atividades da comunidade.
Na da parede interna posterior do primeiro pavimento eram destacados três pequenos volumes prismáticos, um atrás do altar para a sacristia e outros dois, dispostos simetricamente, como reentrâncias funcionando como capelas.
Ao fundo do presbitério, sobre um volume que definia internamente a área da sacristia existia uma pequena laje na qual a estátua da Santa Maria Madalena estava posicionada.
Ao fundo do presbitério, sobre um volume que definia internamente a área da sacristia existia uma pequena laje na qual a estátua da Santa Maria Madalena estava posicionada. Uma torre era situada aos fundos, no eixo do projeto, pertencendo ao corpo do edifício.
O volume heptagonal, como uma espécie de barca, se apoiava nas fachadas em sete pilares aparentes e toda a nave por ele contida possuía um fechamento em vidro na sua parte superior.
Numa etapa posteriormente desenvolvida (1957) foi suprimido o nartéx e consolidada uma nova disposição dos altares laterais e dos confessionários nas paredes dos fundos.
No local onde se situava o nartéx foram propostas duas cascas abobadas de concreto por meio das quais, a entrada se realizava por duas grandes portas de vidro, com o altar à vista desde a rua.
A posição da torre que era vinculada ao edifício, embora não tenha nunca sido construída, foi proposta como uma torre de estrutura independente.
Para os grandes vãos da nave, uma mudança significativa do projeto foi realizada, pois para os primeiros desenhos eram previstas, nas vigas de 20 metros, treliças metálicas para cobertura. Para a unidade de linguagem da obra elas foram substituídas por uma laje nervurada de concreto cujo projeto estrutural foi realizado pelo engenheiro Gabriel Oliva Feitosa em 1957.
Tanto na cobertura como no piso superior as lajes eram armadas em dupla direção (com eixo de 62,5 centímetros no menor sentido). Os caixões formados pelas nervuras ficaram à vista, permitindo uma visão total da estrutura, Dois condutores de concreto nas laterais do volume despejam as águas pluviais em grelhas junto ao solo.
Dessa forma o projeto básico foi configurado e representado, por meio de plantas de todos os níveis e de cortes do edifício.
As perspectivas da proposta de 1957 apresentam a posição da Igreja ao fundo do terreno junto da parte mais íngreme, com a torre sineira em frente a fachada principal, próxima à rua, ao lado direito do acesso.
Todos os fechamentos são situados nos prolongamentos das vigas de borda deixando grandes vãos para iluminação e ventilação até à meia altura das paredes periféricas do primeiro pavimento. Estes vãos eram fechados com vidros planos transparentes diretamente presos ao concreto e por finos perfis metálicos.
Logo após sua inauguração, os grandes panos de vidro começaram a apresentar patologias. Os ventos fortes no alto da colina e a grande incidência solar abalavam os grandes panos de vidro e estes começaram a apresentar patologias, inclusive com quedas, tornando eminente uma intervenção. Por fim, as áreas envidraçadas foram substituídas por blocos de vidro de pequenas dimensões, com ventilação permanente.
A visão interna do céu, tida anteriormente pelos fiéis, foi inibida, alterando as intenções iniciais do projeto.
Guedes parece ter encontrado uma articulação entre elementos de sua formação tais quais as latentes proposições da igreja progressista para o espaço litúrgico, o sentido comunitário da igreja no bairro, alinhados às definições de verdade materiais contidos nas futuras pastorais do Concílio Vaticano II.
A maquete ilustra o desenvolvimento do projeto com os patamares de acesso propostos: um mais baixo, na altura da rua, que é um grande aclive, permite a entrada pela esquerda para o subsolo, outro patamar menor, quadrado que dá acesso à entrada da igreja e um patamar maior, que constituía uma espécie de átrio.
Protagonismo da estrutura de concreto e significados e simbologias no projeto
Uma reflexão pertinente ao projeto é a da relação entre a estrutura de concreto e sua expressão plástica e as menções à religião contidas na obra.
Devido, em parte, às premissas de verdade de materiais e simplicidade, a obra é construída em concreto armado aparente, ou seja, a estrutura é a arquitetura, tanto em seu aspecto de sustentação, quanto em termos de expressão plástica.
Além das tendências já em curso nas faculdades, evidenciaram-se outras referências para concepção do projeto, observados nas obras de Perret, na Igreja de Raincy (25), nas já mencionadas publicações da revista l’Art Sacré além de projetos coetâneos de Affonso Eduardo Reidy, como a Escola Brasil-Paraguai (1952–1956) de o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro — MAM Rio de Janeiro (1953–1958).
Segundo o registro no Livro de Tombo da Igreja (26), no partido adotado por Guedes, os sete pilares representam os sete sacramentos da Igreja: o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção dos Enfermos, a Ordem e o Matrimônio.
Estes sete pilares apoiam externamente o volume da igreja, o qual se assemelha ao de uma embarcação — a Barca de Pedro que representa a igreja edificada a partir de Cristo e seus apóstolos que vitoriosamente singra os mares, ora calmos, ora agitados de todas as tribulações da vida dos homens.
O formato de uma barca alude à Barca de São Pedro que significa o local de reunião e pregação. Não há adornos ou distrações, a imagem mais forte é a da luz que invade toda nave.
A forma de barca, pela técnica do concreto (argamassa) armado, também pode ser uma paráfrase, pois uma das primeiras experiências com concreto armado foi de Joseph Louis Lambot, que expõe um barco nesta técnica na Exposição Mundial de Paris (1855) e solicita a patente de seu projeto (27).
O uso do concreto proporcionou a utilização de grandes vãos propostos inicialmente utilizados propiciar uma generosa iluminação por todo o perímetro.
A proposição da vasta entrada de luz e a visão do firmamento ao propiciar uma interpretação da relação entre o celestial e o telúrico e entre luz e sombra:
“Transfigura penitência infundida pela escuridão, na alegria que a luz transmite, pródiga ao interior partilhando com o homem a claridade e a transparência, matéria arquitetônica transformando-se em elemento imaterial pelo banho de luz exterior” (28).
“Pela transparência dos vidros… como se não fosse necessário limitar o espaço religioso que está presente além do limite arquitetônico e se apresenta na própria paisagem como obra do criador. O espaço sagrado se abre para o terrestre, obra do próprio Deus e, mais uma vez, fanum e profanum não se contrapõem” (29).
Além das dificuldades de sustentação dos vidros (cuja função de uma luz mais plena, clara e uniforme, os controles de ventilação e da luminosidade e da insolação exigiam, além da fixação, soluções de conforto interno. Entretanto os detalhes delineados, entre vidro e concreto, livres de limitações por outros elementos construtivos, que naquele momento tinham finalidades espirituais, serão amadurecidos por Guedes em várias de suas obras posteriores, como as Casas Breyton (1965) e Waldo Perseu (1967).
A construção e intervenções
A versão edificada é praticamente a do projeto apresentado em 1957, com pequenas adaptações durante os anos que duraram as obras.
Entretanto, fortes alterações ocorreram em etapas posteriores, uma delas foi a criação de uma antecâmara entre as portas de entrada e o interior, um paravento.
O altar foi removido da arena central para um tablado de madeira situado na parte alta de uma das extremidades laterais da nave. Desta forma perdeu-se a relação altar com o espaço externo.
A distribuição interna utilizando a planta basilical, com o eixo de circulação no sentido maior da nave retomando a posição do altar ao final de um logo percurso interno. Assim foi substituído o formato de arena, pelos passadismos existentes e restrições das noivas devido à proximidade da entrada ao altar/arena, pois elas não gostavam de se casar sem o cerimonial da longa promenade tradicional da ocasião.
Como diminuiu tanto a Influência das atividades da igreja no bairro, a quantidade de fiéis em relação aos anos de 1960 e 1970, o número menor de assentos da alteração acabou por ser suficiente. Na extremidade da nave foi construído um conjunto de salas de apoio, com a inclusão de banheiros e espaços para a administração do templo.
A substituição da plateia em formato de arquibancada rompeu a ligação entre presbitério/altar e plateia expressa pelo sentido de comunhão realizada pelos atos religiosos.
Assim a clareza da proposta inicial teve, por razões de adaptação às tradições da liturgia, a acentuação de seu turvamento.
Proposta de reforma (2001, não executada)
Em 2001, o escritório do Arquiteto Joaquim Guedes e Associados propôs uma reforma para a Igreja e esta intervenção pretendia atualizar os espaços com relação às necessidades presentes, porém mantendo algumas características do projeto original.
Previa-se retomar a proposição do altar principal em posição central não como plateia bipartida, mas em três grupos de assentos em níveis diversos, todos mirando o altar em frente. À direita do acesso principal, uma sala de apoio em junto à fachada, espelhado do lado esquerdo, um coro aberto. O nártex, agora do lado externo, seria envidraçado avançado a marquise de concreto. O fechamento de blocos de vidro seria substituído por novos vidros e janelas de ferro basculantes dispostos por detrás de chapas perfuradas que permitiriam a visão do firmamento controle sombreamento.
Na área externa se faria uma ampliação ao átrio proposto em 1957, mantendo sempre desimpedido o eixo central de visualização ao interior do prédio com circulação dos fiéis em direção ao acesso principal. As vagas de estacionamento seriam ampliadas e protegidas por copas de árvores.
Esta nova proposição que se adaptaria às modificações realizadas pela Igreja e costumes dos fiéis, resgatando valores originais, acabou por não ser realizada.
Considerações finais
A igreja revelou inovações ao propor uma nova configuração do espaço litúrgico, um contato direto com a rua e a comunidade, antecipando definições mesmo antes que fossem expressas pelo Conselho Vaticano II.
O projeto tinha claro que a eclesia,ae deveria recuperar seu conceito de assembleia e com celebrações, não de um espaço individual de piedade ou de penitência, mas de um deleite comungado por todos sob a luz divina.
A obra contribuiu para o aggiornamento do espaço religioso e na gestação da arquitetura paulistana dos anos 1950 por meio do protagonismo da estrutura e expressão da verdade e simplicidade dos materiais pelo uso do concreto aparente.
Dentre os fatores que geraram sua proposição da igreja estava o ensino e a vivência nas faculdades de arquitetura de São Paulo. Vivência que a despeito de não possuir uma formulação de uma teoria ou de fundamentos conceituais, estabeleceu um discurso imanente para as obras dos arquitetos do período e seus posteriores.
O projeto se insere na consolidação da profissão, junto a um ambiente de busca de modernidade para o Brasil. Ambiente consolidado pelas mentalidades forjadas por um conjunto de buscas coetâneas e de proposições peculiares e decoloniais. Projeto que soergueu e acompanhou a formação de uma linguagem e repertórios que propiciaram o surgimento de várias obras reconhecidas, numa complexa rede de relações entre proximidades e distanciamentos.
A observação da tentativa de ruptura com as posições passadistas existentes na arquitetura religiosa e seu decorrer permite reflexionar sobre a clareza de propósitos e seus turvamentos, entre aggiornamento progressista e manutenção conservadora.
A análise e história do projeto da igreja auxilia a compreender vivências entre as obras de arquitetura e as condições decorrentes de propósitos, persistências e descontinuidades.
Em sentido bem mais restrito, a frustação dos objetivos originais e renovadores da obra não se anulou sua contribuição para a formação da vertente tida como: Arquitetura moderna paulista brutalista.
notas
NE — Este artigo foi originalmente apresentado no evento CIAB 10 — X International Congreess of White Architecture, realizado desde 23 a 25 de março de 2018 na Universitat Politecnica de Valencia, Espanha. PERRONE, Rafael Antonio Cunha; PISANI, Maria Augusta Justi; SCHIMIDT, Rafael Patrick. In LIZONDO, Laura et al. CIAB— 10 X International Congress of White Architecture. Valencia, Editorial Politecnica de Valencia, 2018, p. 362a.
1
Na pesquisa não se obtiveram dados sobre o concurso, de quem teria participado e acerca dos próprios desenhos que Guedes teria enviado para o certame.
2
Entrevista realizada com Guedes em BUENO, Cecilia M. de Siqueira et al. A Igreja de Vila Madalena. Monografia de conclusão de curso. São Paulo, Biblioteca FAU USP, 197_.
3
Uma biografia e uma apresentação e leitura das obras de Guedes é encontrada em CAMARGO, Monica Junqueira de. Joaquim Guedes. São Paulo, Cosac & Naify, 2000.
4
Uma hipótese de Laide Sonda seria a de que para a realização da obra “sete anos antes do Concílio e oito anos após a promulgação da Encíclica do Papa Pio XII que havia acatado e retificado parte das principais reivindicações do ML. Faze-nos supor que o elo da Mediator Dei tenha chegado ao arquiteto pela bibliografia estrangeira ou através de seu irmão padre”. In SONDA, Laide. Igrejas do Modernismo e Vaticano II: espaços de (comum)união. Dissertação de mestrado. São Paulo, PPGAU FAU Mackenzie, 2020, p. 183–185.
5
Padre Olavo Pezzotti foi pároco desde 1949 até 1968, reconhecido por meio suas ações realizadas no próprio trabalho da igreja para a comunidade e pelo programa que tinha na Rádio Difusora. Obteve várias melhorias para o bairro que na ocasião ainda era povoado por famílias simples. Dentre as melhorias ressaltam-se calçamento de ruas, água, rede de esgoto, colégio estadual e transporte de bonde e ônibus.
6
PEREIRA, Gustavo. Christiano Stockler das Neves e a formação do curso de arquitetura no Mackenzie College. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2005, p. 357.
7
FAGGIN, Carlos. Carlos Millan arquiteto: contribuição para a construção da arquitetura moderna em São Paulo. São Paulo, Editora FAU USP,2015, p. 25.
8
CAMARGO, Monica Junqueira de. Poéticas da razão e construção: conversa de paulista. São Paulo, FAU USP, 2009, p. 152.
9
CAMARGO, Monica Junqueira de. Op. cit., p. 16.
10
SCHIMIDT, Rafael. Projeto de arquitetura: um estudo sobre os procedimentos projetuais do arquiteto Joaquim Guedes. Tese de doutorado. São Paulo, PPGAU FAU Mackenzie, 2016, p. 68.
11
ZEIN, Ruth Verde. A arquitetura da escola paulista brutalista 1953–1973. Tese de doutorado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2005, p. 106–108.
12
BASTOS Maria Alice Junqueira; ZEIN Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo, Perspectiva, 2010, p. 81.
13
LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2008, p. 161.
14
Idem, ibidem, p. 164.
15
ARTIGAS, João Batista Vilanova. Discurso aos formandos da FAU USP 1955. In Caminhos da Arquitetura. São Paulo, Livraria e Editora Ciências Humanas, 1981, p. 15–20.
16
ELIDE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2018.
17
SEEGERER, Christian Michael. Arquitetura religiosa contemporânea. Levantamento e análise de obras (2000–2015). Dissertação de mestrado. São Paulo, PPGAU FAU Mackenzie, 2019, p. 39.
18
PEREIRA, Ana Karla Olimpio; FUJIOKA, Paulo Yassuhide. Perret e Guedes: um paralelo entre duas obras de arquitetura religiosa em concreto. In ANTICOLI, Audrey Migliani; CRITELLI, Fernanda; CHIARELLI, Silvia Raquel; OSSANI, Tais (org). V Seminário Docomomo SP. Arquiteturas do patrimônio moderno paulista: reconhecimento, intervenção, gestão. São Paulo, Docomomo Núcleo SP, 2017, p. 124–143.
19
AVELAR, Ana Paula Borghi. Arquitetura moderna e religiosa brasileira: nas revistas Acrópole e Habitat entre os anos 1950/1971. Dissertação de mestrado. Uberlândia, UFU, 2017, p. 29.
20
SONDA, Laide. Op. cit., p. 183–185.
21
LIMA JUNIOR, Marcio Antonio. O traço moderno na arquitetura religiosa paulista. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2016, p. 141–152.
22
PORTUGHEIS, Débora Jun. Vila Mmadalena: polo de comércio, lazer e cultura. Iniciação Científica. São Paulo, FAU USP, 2014.
23
AVELINO, Yvone Dias Avelino. A cidade e a arquitetura sacra. Revista Cordis, n. 17, São Paulo, jun./ dez. 2016, p. 1–2.
24
LIMA JUNIOR, Marcio Antonio. Op. cit., p. 179.
25
Idem, ibidem, p. 141–152.
26
Livro de Tombo da Igreja de Santa Madalena.
27
KAEFER, Luís Fernando. A evolução do concreto armado. São Paulo, Unesp, 1998, p. 24.
28
SANTOS, Pedro A. Palma dos. Métrica, proporção e luz: arquitetura sagrada moderna brasileira. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2015, p. 134–135.
29
Sugawara, Katia R. Guerreiro. O anexo religioso: o caráter das capelas na produção arquitetônica brasileira entre 1985 a 2015. Dissertação de mestrado. São Paulo, PPGAU FAU Mackenzie, 2017, p. 63.
sobre os autores
Rafael Antonio Cunha Perrone é livre docente pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Maria Augusta Justi Pisani é professora de projetos do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Rafael Patrick Schimidt é professor no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.