Alguém poderia nos perguntar o porquê de dedicarmos tempo e reflexão a uma obra, por muitos, considerada sem importância arquitetônica ou, ainda, o porquê de resgatarmos o termo kitsch para tal tarefa — possivelmente já gasto e incorporado aos dizeres mais óbvios sobre tal reflexão. Esperamos que, ao final deste ensaio, alguma explicação mais sólida alcance o leitor. A princípio, gostaríamos de ressaltar a complexidade arraigada no conceito de kitsch, que nada possui de óbvio. Com o intuito de contribuir, reforçamos três imagens associadas ao conceito: trapaça, mito e alienação. Assim, buscamos iluminar de alguma forma uma discussão séria sobre um possível significado arquitetônico kitsch por meio da loja varejista Havan (1).
Antes de prosseguirmos, entretanto, é necessário reforçar a profundidade que o conceito de kitsch carrega, tratado por importantes autores como Gillo Dorfles (2), Abraham Moles (3), Clement Greenberg (4), Vittorio Gregotti (5), Umberto Eco (6), Décio Pignatari (7), entre outros. Ainda que o kitsch seja simplificadamente apresentado algumas vezes como “mau gosto” (8), pseudo-arte (9) ou ainda “mentira estética” (10), alertamos que essa leitura pode ser apenas uma face desta complexidade. Frases importantes de alguns teóricos nos apontam para outra direção, por exemplo: "ninguém escapa ao kitsch" (11); “o kitsch é permanente como o pecado” (12); ou ainda, "há uma gota de kitsch em toda arte" (13). Parece cabível a suspeita sobre a forte e inquebrável relação entre o kitsch e a arte, ao ponto de Darlete Cardoso (14) colocá-lo como um possível transgressor da arte. O próprio Gregotti advertia, em 1968, que a demarcação separando o kitsch e a vanguarda já aparecia como mal definida ao menos há trinta anos, ao ponto de se encontrar artistas dispostos a usá-la com entusiasmo para novas descobertas. Nos tempos atuais, Christina Sêga (15), por fim, apresenta o kitsch como Cult!
O kitsch, assim, pode ser entendido como um caminho transformador e revigorante para uma arte acomodada ao status quo vigente. Tomaremos, entretanto, outro viés para a leitura do prédio da loja Havan. Para fazermos tal distinção, seguiremos a separação proposta por Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti (16) em duas formas de kitsch: uma criativa e outra passiva. Deste modo, se na primeira existiria uma apropriação da força do kitsch para uma efetiva criação de novos espaços e objetos, na segunda prevalece a conservação de um status sociocultural por meio de um consumo desenfreado de produtos, geralmente oriundos da imitação de uma elite. Este ensaio busca aprofundar a segunda forma — por meio das três imagens citadas — e propor uma leitura da loja varejista Havan.
Um entendimento do conceito de kitsch em três partes
O termo kitsch, como dito, é comumente relacionado a um significado próximo de “mau gosto” (17), muitas vezes com alguma finalidade de distinção entre populares e eruditos, ou mesmo, entre pobres e ricos. Entretanto, ao exemplo de Gregotti, não gostaríamos que nosso argumento parecesse a uma simples “acusação fútil contra imitações pobres ou estéreis criativamente” (18), ainda que reconheçamos o risco. Por isso, propomo-nos a explorar diferentes valores semânticos deste termo a partir das três imagens mencionadas, com início pela ideia de trapaça.
Parte 1: a trapaça
Apesar da origem incerta do termo, alguns a relacionam com o sul da Alemanha por volta de 1860. Um dos possíveis cernes estaria na palavra kitschen, com a definição de “recolher lama pela estrada”, mas que também serviria para a ideia de “maquiar móveis para fazê-los parecer antigos” (19). Outra palavra relacionada é o sketch, em inglês mesmo, referindo-se às obras de arte com valor discutível que os turistas compravam por baixo preço em Mônaco (20). Por fim, a palavra verkitschen que poderia ser outra fonte do termo, traduzida como “vender a preço baixo” (21) ou ainda “vender alguma coisa em lugar do que havia sido combinado”, receptar e, enfim, trapacear (22). Os sentidos de maquiar, enganar turistas e trapacear se misturam neste valor semântico, porque muito além da ideia de “mau gosto” haveria, como aponta Moles, “um pensamento ético pejorativo, [e] uma negação do autêntico” (23).
A ideia de contraposição ao autêntico, algo como imitação sem valor, cópia ou falsificação, é uma importante camada nesta ideia de trapaça; ao mesmo tempo, trata do que liga o kitsch definitivamente à arte. Como explica Cardoso, a tradição ocidental posiciona a arte como a imitação da natureza (mimesis da realidade). Nesta perspectiva, o papel do kitsch seria imitar a arte, contudo, através do simulacro. Em outras palavras, o kitsch faz o caminho contrário da arte: ao invés de atravessar o cotidiano para tocar um espírito mais elevado, ele se apodera de algo maior para alcançar o banal, uma consequência sem causa, um mundo-cópia (24). Então, como explica Aline Stefânia Zim (25), o kitsch confundiria as fronteiras entre a sua natureza de cópia e a de original, disseminando o sistema convencional enquanto evita a ruptura ou subversão. Para Eco (26), na mesma direção, o kitsch alcançaria uma ciência da imitação da arte, para então confirmar a falsidade de uma situação onde tudo já está dito.
Subjaz nessa imagem uma negação da autenticidade, por ser cópia, mas, ao mesmo tempo, uma afeição às tradições das artes elevadas, sem a elas ter um compromisso (27). O kitsch trataria, assim, de um desejo pelo retorno da aura que se perdeu, uma presença na ausência. Cardoso entende a impossibilidade deste retorno e nos recorda que não existe cópia autêntica. No entanto, ressalta que o kitsch não toma a expressão do mundo como sua atenção, mas a formulação de um produto para o consumo de massa. Como Moles observa, criamos essencialmente para produzir, produzimos para consumir.
Lógico que a imitação em si não pode ser evidenciada como trapaça. Mas então, por que trapaça? Tomemos uma pista de Dorfles onde comenta que, se é verdade que o kitsch é essencialmente a falsificação de sentimentos, este também trata da substituição de sentimentos espúrios por sentimentalismos reais. Assim, podemos refletir que não há trapaça porque se imita, mas sim porque se busca substituir algo por uma nova verdade. Aqui, o móvel maquiado como envelhecido se torna a nova verdade frente ao móvel antigo de fato, realiza-se uma trapaça profunda. Uma crítica semelhante a de Jean Baudrillard sobre o simulacro, onde viveríamos em um mundo-cópia, de signos sem referência, que não trata o real, mas tudo é feito apenas como se fosse. Desta maneira, embriagados em uma cultura da hiperimitação (28), como em uma sala de espelhos, não sabemos mais com qual reflexo lidamos, a confusão de imagens é a própria e dura realidade.
Parte 2: o mito
Dorfles, em seu capítulo “Myth and Kitsch” (29), nos proporciona uma segunda imagem deste conceito. Para o autor, nesta imagem, existe uma importante revelação que o kitsch explora o irracional, elementos fantásticos e até subconscientes. O crítico destaca que todo tipo de arte apresenta algum componente mito-simbólico; no kitsch, entretanto, aparece um aspecto mistificador de forma mais óbvia e frequente. Dorfles, com objetivo de explicar tal fenômeno, distingue duas energias, uma mito-poética e outra mitogógica, em que a primeira seria positiva e a segunda, espúria, “quase sempre deplorável e de mau agouro na medida em que é compulsória e hétero-dirigida e dá origem à fetichização e à mistificação de suas próprias realizações” (30). Desta forma, o crítico de arte aponta características principais desse tipo de elevação mítica, tais como falsificação, sentimentalismo, grosseria e vulgaridade na imagem. Eco também destaca a estratégia de reforçar o estímulo sentimental, onde sua inserção passa definitivamente a ser norma.
Dorfles, na continuação de seu raciocínio, propõe uma reflexão sobre os ídolos da época, ao redor dos anos de 1960, de Rita Pavone aos Beatles. Comenta sobre os espaços lotados de fãs e as gritarias histéricas, como se estivessem na presença de alguma divindade, prontos para se sacrificar. O crítico italiano vai além, apontando uma leitura falso-ritualista que poderia ser encontrada em manifestações como as do Ku Klux Klan, das lojas maçônicas e, particularmente nos Estados Unidos — ainda que passível de ser pensadas no Brasil atual — certas pseudo-religiões. Detecta, também, tal sintoma nos mitos políticos, citando os líderes fascistas e nazistas, com a construção de heróis adorados pela multidão, ainda que apenas por uma breve temporada. Revela ainda a visão de um clube — não importa se religioso, leigo, político ou esportivo; no qual taças, medalhas e uniformes seriam empregados com um gosto amargo e empoeirado, como em uma seita mística e teosófica. Nessa imagem, poderíamos inferir sobre uma película de sacralidade que elevaria alguém ou algo à figura de herói mítico, ainda que não esqueçamos que se trata de uma fina película de ação sentimental. Trataria de um investimento em símbolos ocultos veneráveis, ainda que indubitavelmente autênticos, sequestrados por uma tendência mitogógica e de falso-ritualismo.
Dorfles comenta que seria fácil entender que tal aspecto irracional, explorado pelo kitsch, capturaria os incautos. Mas, como observa Greenberg (31), não se trataria de inocência, e sim de uma flexibilidade presente no kitsch, que manteria um ditador em contato mais próximo com a alma do seu povo, pronto para sugá-la. Zim observa a existência de uma espécie de ditadura do medíocre, na qual acontece o rebaixamento do artístico em direção à vulgaridade. Por outro lado, a mesma autora alerta que, se é plausível pensar que esse vulgar irracional seja fortemente atraente para o grande público, também é importante observar que tal atração é maior quanto for excludente e rígida a ordem que define o bom gosto universal. Dessa maneira, como explica Dorfles (32), a cada mito kitsch que nasce, uma energia com intensidade mágica do mito-poético é falsificada, mesmo que temporariamente, afinal uma de suas principais características é sua rápida e inevitável obsolescência.
Parte 3: a alienação
A figura da alienação, das três que evocamos provavelmente a mais óbvia, poderia ser relacionada com a espécie de receita da felicidade citada por Moles. Nesta, consumir significaria exercer uma função que faz desfilar pela vida cotidiana um fluxo acelerado de objetos, de tal modo, que nos condenamos ao transitório. “Consumir é a nova alegria da massa” (33). A alienação se faz presente pela forma como a sociedade gera, de modo mais ou menos automatizado, os produtos consumíveis, como uma tarefa cada vez mais fragmentada e distante do ser humano como criador. Moles, deste modo, destaca que a alienação constitui um traço essencial do kitsch, com o alerta de que não possa ser confundido como seu sinônimo.
É necessário pensarmos nas questões de uma sociedade complexa, na qual o empilhamento de objetos e o esmigalhamento da criação participam fortemente na vida kitsch. Nesta sociedade, uma alienação possessiva transforma o ser em prisioneiro em sua concha de objetos. Assim, o habitante parece cercado de objetos produzidos em massa e empilhados a sua frente, produzindo o esgotamento de suas percepções: “tudo se mistura e se banaliza” (34). Como explica Gregotti, o kitsch aumenta consideravelmente a variedade de formas presentes no mundo e, ao mesmo tempo, reduz substancialmente seu significado. Neste cenário, para Zim, o Kitsch sintetizaria o mecanismo psicológico da alienação do homem pelos objetos que o cercam, para desencadear uma certa psicopatologia da vida cotidiana.
Diante do acúmulo de quantidades, não temos nada, de modo que a ausência de sentido tenta em vão produzir alguma sensação de existência em um mundo marcado pelo consumo. Como diz Zim, busca-se a plena adequação ao inadequado, ao ponto de não se almejar distanciar do ordinário. O kitsch promoveria a “arte do aceitável” (35), pois, como diz Eco, trataria de um alimento para um público esteticamente preguiçoso, que se convence de gozar e fruir de uma imitação de arte sem se perder em esforços maiores (36). Nesta ideia da arte do aceitável, não se busca o estranho, nem o sublime, o belo ou mesmo o feio, o kitsch profana a originalidade para ser aceito por todos. Não se trata de fruição, mas utilização, consumo e posse (37), não revelam o novo, apenas protege, alivia e consola (38). Nas palavras de Moles, “entre a arte e o conformismo, instala-se a imensa praia do kitsch” (39).
A loja Havan: como um templo do kitsch
Para apresentarmos a leitura da obra, para efeito didático, recorreremos à organização das três imagens, ao iniciar novamente pela imagem da trapaça.
Uma leitura pela imagem da trapaça
A imitação do autêntico, como dito, é o que liga o kitsch definitivamente à arte. Entretanto, devemos reforçar que não se trata de qualquer imitação, mas de um gesto sem valor: um simulacro. Em relação à imitação do autêntico, o edifício da loja da Havan já a carrega em sua própria história. Como veiculado (40), seu proprietário comenta seu encantamento pela Casa Branca estadunidense, nos anos 1990, solicita aos seus arquitetos que reformassem a fachada baseada na original americana. É verdade que alguém pode inclusive inferir que a própria Casa Branca fez referências a outros modelos. Fala-se, entre outras, de sua aproximação à arquitetura de Andrea Palladio ou mesmo de referências da Leinster House localizada em Dublin (41). A referência e citação são claramente recursos da arte, envolvem algum tipo de compromisso e respeito com o modelo, sem qualquer necessidade de superação ou submissão, mas desde que seja um vínculo baseado no princípio da expressão artística. O que encontramos aqui trata de um outro tipo de relação, alguma coisa mais próxima a uma imitação sem compromisso.
Para pensarmos nesta ausência de compromisso, necessitamos destacar a proposição ao redor da reforma da fachada. Ainda que se possa discutir a questão menos ambiciosa da reforma, gostaríamos de nos concentrar de fato na preocupação restrita à fachada frontal e na ideia de simulacro. Ao final, não nos parece difícil constatar que a fachada proposta mais parece um adereço afixado a um galpão banal ou vulgar, arquitetonicamente falando, um galpão decorado. Como observa Zim em sua discussão sobre o ambiente kitsch, o galpão decorado de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour (42) seria a síntese do princípio de acomodação, um abrigo genérico cujas superfícies planas são decoradas.
Ainda que alguém possa aventar que existe tridimensionalidade neste adereço, como se isso de fato definisse a não superficialidade, basta atentarmos para a redução tectônica do frontão ali executada. Não podemos desprezar o sentido semiótico que o frontão tem em termos de arquitetura, coroando de janelas a edifícios verticais. Neste caso, contudo, ele cumpre uma função tectônica, pois trata da cobertura de uma entrada, vestíbulo ou porche. Assim, o frontão pode até ser lido como verdade tectônica, como o oitão de um telhado, porém, ao atentarmos o quão comprimido e encurtado é este espaço, não podemos desprezar a ideia de se tratar apenas de um simulacro. Em outros momentos de tal obra, esse fenômeno parece se repetir, inclusive na captura da figura da Estátua da Liberdade, que orna as proximidades do edifício, sem de fato conseguir fazer referência ao valor da original, apenas produzindo um excesso de objetos que anulam seus significados, como sugere a leitura de Baudrillard sobre o simulacro.
Existe aqui um tipo de trapaça, como manifestamos anteriormente, porque há um desejo pela afeição às tradições das artes elevadas sem a elas ter qualquer compromisso. Um sequestro pouco disfarçado da elevação que a arte pode alcançar, mas que sua imitação não pode e nem mesmo almeja. Uma substituição de sentimentos maiores por sentimentalismos reais. Ao final, podemos pensar que emerge um real frontispício, quase que empilhado e acumulado, nas palavras de Moles, em um galpão pouco ambicioso. A trapaça, assim, está dada: não se deseja mais referências ao modelo, apenas ter a possibilidade de transpirar qualquer fraca essência de seu prestígio.
Uma leitura pela imagem do mito
Em relação à energia negativa mitológica discutida por Dorfles, revisitamos a tal inclusão do porche por meio de outra lente, uma leitura mais próxima a dos templos. O recinto preparatório, relacionado a termos como antecâmara ou vestíbulo, anterior ao espaço sagrado de um templo, é conhecido em diversas religiões pelo seu caráter ritualístico. Podemos inclusive pensar neste espaço como a transição entre o mundo profano e o sagrado, ao mesmo tempo em que trata de um lugar de acolhimento e recepção. O caráter ritualístico nos é lembrado pelas ações de genuflexão diante da casa de Deus em sinal de prostração ou mesmo a benção na pia batismal em sentido de purificação (para ficarmos restritos a uma cultura mais ocidentalizada), em outras palavras, um ritual de preparo antes de adentrarmos ao ambiente sagrado.
Na arquitetura, vemos tal ritualização em diversos espaços sagrados, do pronau dos templos gregos ao nártex da igreja católica, muitas vezes acompanhados do sentido simbólico de colunatas ou pórticos que são necessários atravessar para se adentrar ao ambiente sagrado. Este percurso de atravessamento, em algumas situações até proibidos aos leigos, é fundamentado pelo seu propósito mítico-poético e de engrandecimento. Há uma espécie de rito de passagem usurpado pelo edifício varejista, uma leitura falso-ritualista como explica Dorfles, que trata da fetichização de suas próprias realizações. De algum modo, eleva-se o consumir a um propósito sagrado, no qual a fina película de sacralidade toma os símbolos veneráveis sem pudor. Tal desfaçatez é evidente no citado encurtamento do vestíbulo, porque, ao passo que a passagem ritual é desprezada, no final não parece haver propósito sincero de elevação mítica, apenas o culto aos falsos deuses.
Em relação aos templos, podem surgir especulações de que ignoramos o fato do seu modelo ter sido arquitetura institucional de Estado, ou seja, não religiosa. Assim, possíveis associações a imagens de templos, como o de Hera, o Panteão de Agripa, ou mesmo o Panteão de Paris possam parecer um exagero. Entretanto, a abordagem mítica de Dorfles transborda tal endereçamento e fala de um espírito que vai das agremiações esportivas à política. Ao mesmo tempo, as referências das vilas palladianas possivelmente encontradas no modelo da Casa Branca, como de Capra ou Foscari, demonstram um ritualismo no ambiente doméstico. As escadas de acesso ao vestíbulo, por exemplo, são em si um tipo de reverência ritualística, no geral, ignorada nos edifícios da loja. É evidente que todo emprego de modelo requer alguma adaptação, como a aplicação da legislação contemporânea, por exemplo. Acreditamos, porém, que aqui não procede essa linha de investigação. Por outro lado, talvez, a sacralidade do consumo não exija tanta reverência afinal.
Uma leitura pela imagem da alienação
Finalmente, gostaríamos de ponderar sobre o aspecto mais alienante desta produção, especificamente por meio da crítica de Moles sobre o empilhamento de objetos em uma sociedade de consumo, onde, retomando Wajnman, “tudo se mistura e se banaliza”. Em nossa leitura, parece-nos prenunciado um desejo de não se distanciar do ordinário; conforme Zim, o kitsch profana a originalidade para ser aceito por todos. Avistamos essa banalização na proliferação e acúmulo de objetos, de tal forma, que a percepção se torna prejudicada. Assim, não mais importa se os capitéis das colunas da Casa Branca eram de ordem coríntia ou jônica, visto que ninguém observará, ao final, que não estará presente nenhum capitel. De modo semelhante, também não importa se as janelas serão transformadas em uma moldura vulgar para a publicidade explícita, porque o que realmente importa está escancaradamente dito, e mesmo que os incautos possam desejar observar, não verão mais do que um gigante convite ao consumo. Ao final, temos uma espécie de decadência, marcada pelo desaparecimento de ambições mais nobres, uma sociedade presa ao consumo de produtos importados módicos, como também, a falsos deuses e messias.
Qualquer significado mais profundo, como o sentido de rito do vestíbulo, se mostra achatado na superficialidade do edifício, reduzido ao mínimo necessário. Retomando Gregotti, o aumento gigantesco de variedade de produtos e formas, acaba por reduzir substancialmente as potências significativas, acrescentaríamos, seja no emissor como no receptor. Desta forma, alcança-se a arte do aceitável descrita por Zim, que de fato não se refere a arte em si, mas a sua imitação sem qualquer ambição maior de dizer algo que já não foi dito.
Considerações finais
Gostaríamos de reforçar a proposição inicial de que há algo a mais do que a simples associação de “mau gosto” com este tipo de edifício, do mesmo modo, que a relação com o kitsch possa perigosamente parecer óbvia, como se tudo aí se resumisse. A incursão um pouco mais aprofundada, que modestamente nos propomos, pode apresentar outras facetas que vão além da questão do gosto, que nos parece ainda muito subestimada. Existe uma clara relação de poder, como já trabalhada por diversos autores (43), mas dentro dessa relação existem ainda muitas camadas, aqui introduzidas pelas três imagens. A instrumentalização da arquitetura pelo poder ganha abordagens cada vez mais complexas na sociedade de consumo, que não excluem necessariamente as anteriores, como de classes, mas demanda olhares mais sensíveis. De qualquer modo, nunca devemos nos esquecer que falsos deuses também sucumbem, que outros valores além do mergulho desenfreado no consumo podem emergir. Por fim, não encontramos outro modo de finalizar esse ensaio sem a inclusão de uma citação, mesmo que não recomendável. Quando Lina Bo Bardi, na Primeira Exposição de Arte dos Funcionários do Inamps, fala sobre o feio e o kitsch, comenta “de todo este processo foram excluídos uns ainda menos afortunados: o povo. E o povo nunca é kitsch. Mas esta é uma outra história” (44).
notas
1
Esse texto se restringe a uma crítica sobre o kitsch na disciplina arquitetônica, não tendo relação com a marca Havan ou seus produtos. Qualquer semelhança… mera coincidência.
2
DORFLES, Gillo (org.). Kitsch: an anthology of bad taste. 1st edition. Londres, Studio Vista Limited, 1970.
3
MOLES, Abraham. O kitsch: a arte da felicidade. 4ª edição. São Paulo, Perspectiva, 1994.
4
GREENBERG, Clement [1939]. The Avant-Garde and Kitsch. In DORFLES, Gillo (org.). Op. cit., p. 116–126.
5
GREGOTTI, Vittorio. Kitsch and Architecture. In DORFLES, Gillo (org.). Op. cit., p. 255–275.
6
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo, Perspectiva, 1993.
7
PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo, Perspectiva, 1965.
8
DORFLES, Gillo (org.). Op. cit.
9
Idem, ibidem.
10
ECO, Umberto. Op. cit.
11
DORFLES, Gillo (org.). Op. cit., p. 130.
12
MOLES, Abraham. Op. cit., p. 10.
13
BROCH, Hermann [1973]. Apud MOLES, Abraham. Op. cit., p. 10.
14
CARDOSO, Darlete. A transgressão da arte: uma análise semiótica do kitsch. Revista Científica Plural, n. 2, 2008 <https://bit.ly/3mNnbSL>.
15
SÊGA, Christina. O kitsch está cult. Anais do 4º Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, n. 4, Salvador, UFBA, 2008 <https://bit.ly/41pJk8G>.
16
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura kitsch: suburbana e rural. São Paulo, Paz e Terra, 1982.
17
Outro termo muitas vezes associado ao kitsch é o “brega”, pelo conteúdo emocional, com expressão de sentimentos de forma mais rasgada. Contudo, a origem deste termo parece estar relacionada com um mundo mais complexo, com origem no mundo da zona do meretrício em Salvador. Ver: Mas, afinal, o que é o brega? Folha de S.Paulo, São Paulo, 14 nov. 1997 <https://bit.ly/41Mc7nQ>.
18
GREGOTTI, Vittorio. Op. cit., p. 276.
19
GIESZ, Ludwig [1960]. Apud MARRONE, Gianfranco. Em torno do Kitsch, 1995, p. 35 <https://bit.ly/43RrBZe>.
20
ECO, Umberto. Op. cit.
21
GIESZ, Ludwig [1960]. Op. cit.
22
MOLES, Abraham. Op. cit., p. 10.
23
Idem, ibidem.
24
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa, Relógio d’Água, 1991.
25
ZIM, Aline Stefânia. Cultura kitsch e modernidade: a ascensão do não-autêntico. Revista Estética e Semiótica, n. 9, vol. 2, Brasília, 2020, p. 89–93 <https://bit.ly/41r2KKb>.
26
ECO, Umberto. Op. cit.
27
ZIM, Aline Stefânia. Op. cit.
28
Idem, ibidem.
29
DORFLES, Gillo (org.). Op. cit., p. 37–48.
30
Idem, ibídem, p. 37.
31
GREENBERG, Clement [1939]. Op. cit.
32
DORFLES, Gillo (org.). Op. cit.
33
MOLES, Abraham. Op. cit., p. 24.
34
WAJNMAN, Solange. Forma kitsch e teoria pós-moderna. In Atrator Estranho. São Paulo, Edições NTC/ECA USP, 1996, n. 27, p. 5.
35
ZIM, Aline Stefânia. Op. cit., p. 90.
36
ECO, Umberto. Op. cit., p. 251.
37
CARDOSO, Darlete. Op. cit.
38
GREGOTTI, Vittorio. Op. cit.
39
MOLES, Abraham. Op. cit., p. 10
40
FRAZÃO, Mateus; AGÊNCIA RBS. Por que as lojas da Havan têm a Estátua da Liberdade e imitam a Casa Branca. Donfa News, Dom Feliciano, 18 abr. 2019 <https://bit.ly/3AigevS>.
41
O arquiteto da Casa Branca, o irlandês James Hoban, inspirou-se em edifícios de sua infância no interior da Irlanda. Criado em uma propriedade rural, chamada Desart Court, projetada no grande estilo palladiano. O neoclassicismo, especificamente o neo-palladianismo, foram os estilos arquitetônicos dominantes da época de Hoban. Meet the Man Who Designed and Built the White House. Architectural Digest, Nova York, 11 mar. 2021 <https://bit.ly/3orifTY>.
42
VENTURI, Robert; BROWN, Denise Scott; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
43
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Op. cit.
44
BO BARDI, Lina. O “belo” e o direito ao feio. In FERRAZ, Marcelo (org.). Lina Bo Bardi. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p. 241.
sobre os autores
Luiz Felipe Fagundes Pinheiro é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Londrina.
Vitória Maria Mesquita Martins é arquiteta e urbanista pela Universidade Estadual de Londrina e ex-monitora da disciplina de Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo IV D.
Rovenir Bertola Duarte é doutor pela Universitat Politècnica de Catalunya (2015) e mestre pela FAU USP (2000). Professor de Arquitetura da Universidade Estadual de Londrina e do Programa de Pós-Graduação PPU UEL UEM.