O Jardim Pantanal, situado na várzea do Rio Tietê em São Paulo, apresenta uma ocasião excepcional para serem implementados projetos de drenagem e urbanização em áreas sujeitas à inundação. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo — Sabesp está realizando obras de implantação de redes de distribuição de água e de coleta de esgoto em todo o bairro. A infraestrutura de saneamento tem grande impacto no território.
O fluxo da água gera diversos aparatos de retenção e canalização, diferentes conformações do terreno e do espaço urbano. A relação dos moradores do Jardim Pantanal com a água passa a ser mediada por dispositivos (canos, reservatórios, pisos permeáveis, válvulas, bombas) e conhecimento hidrológico (topografia do terreno, microbacias, modelos hidráulicos). A fluidez da água, onipresente na várzea, engendra uma grande variedade de saberes e habilidades, mobilizados para manejar o abastecimento e o escoamento superficial das precipitações.
O comando da hidráulica torna-se um importante fator de poder político. Água é muito pesada, uma vez acumulada, mover água requer importante investimento tecnológico, político e financeiro. Obter água e escoar água são operações complexas cuja execução requer uma articulação de agentes e elementos materiais (1).
A profusão de sistemas de infiltração e retenção, de bombas, canos e válvulas, configuram uma várzea hidráulica. Toda a hidrologia da área passa a ser controlada, medida, monitorada. O sistema hidráulico é uma rede constituída por gestores, engenheiros e residentes, pavimentos, canos e massas d’água. Tal como o aterramento reconfigurou a topografia do terreno, os dispositivos de manejo redesenham os caminhos da água. O sistema de saneamento, porém, não basta para equacionar o problema da drenagem, os moradores continuam a pisar na lama.
A operação da Sabesp possibilita promover projetos de drenagem e pavimentação, de maneira a mitigar os impactos de enchentes e empoçamentos na área. É uma oportunidade única para ZL Vórtice, junto com a Associação dos Moradores do Jardim Pantanal — Amojap, contribuir para a drenagem e urbanização da área, em articulação os agentes públicos que atuam no território: a Prefeitura (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras e SP Urbanismo — Siurb) e o Governo do Estado (Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente — Sima) e a Sabesp.
Será possível reunir esses diferentes agentes num processo integrado de urbanização do Jardim Pantanal? Poderiam ser conduzidas propostas colaborativas de drenagem e pavimentação, de modo a permitir a articulação dos agentes públicos, laboratórios de pesquisa, organizações sociais e moradores?
Os projetos de ZL Vórtice para o Jardim Pantanal consistem em desenvolver tecnologias de drenagem e pavimentação, a serem implantadas nas áreas mais críticas de enchentes e empoçamento.
O desenho do calçamento foi criado pela artista Regina Silveira, em conjunto com os moradores, organizados pela Amojap. Os pisos coloridos formam um mosaico com figuras e padrões cromáticos específicos da região. A artista conduziu diversas oficinas para elaborar o desenho. Aliando arte e infraestrutura, os elementos modulares coloridos, configurando a identidade da comunidade, visam estruturar o espaço público e consolidar a urbanização da região.
Os pisos de concreto serão moldados e pigmentados pelos moradores, segundo tecnologia desenvolvida pelo Laboratório de Microestruturas e Ecoeficiência da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo — Poli USP, coordenado por Rafael Pileggi. O laboratório desenvolve materiais que reduzam os impactos ambientais. A mistura do concreto é rigorosamente determinada, para reduzir o uso de cimento. As fôrmas são fabricadas com polímeros plásticos, de modo a permitir a desmoldagem manual pelos moradores. Cada peça é preenchida por camadas de concreto e pigmento, de acordo com o desenho da calçada.
A proposta é que o assentamento da calçada, em área sujeita a inundação, seja feito segundo o modelo de pavimento permeável sem infiltração no solo, tecnologia desenvolvida pelo Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Poli USP. A tecnologia permite execução de obras em calçadas, ruas de tráfego leve em áreas de mananciais e pontos de alagamento por insuficiência de microdrenagem (2). O procedimento foi convertido em norma técnica pela Siurb.
A utilização da tecnologia foi orientada por Luiz Orsini Yazaki, ex-coordenador de Projetos de Manejo de Águas Pluviais da Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica — FCTH. O pavimento deve ter uma base em que a água pluvial é retida, de modo a retardar o escoamento e mitigar os efeitos da inundação, e drenada para massa d’água próxima. A base, feita com brita e manta geotécnica no fundo e dispositivo hidráulico, deve ser projetada para assegurar a drenagem sem infiltração no solo.
Inicialmente, a proposta consistiu em desenvolver um protótipo de calçada permeável, fabricado e assentado no Parque Jardim Helena, com o apoio da Sima. No parque, foi instalado um espaço para fabricação dos pisos e determinado o local para o assentamento da calçada-protótipo, próximo a um alagado e junto à área urbana contígua. No protótipo serão construídos dois segmentos, iguais, um drenante e outro não drenante, de modo a comparar seus desempenhos. O dispositivo configura um laboratório de campo, onde poderão ser produzidas e testadas tecnologias para áreas críticas de várzea.
A tecnologia de drenagem testada no parque servirá de modelo para o escoamento das águas empoçadas nas áreas críticas do Jardim Pantanal? As tecnologias propostas serão implementadas? O método de desenho e montagem do mosaico, o sistema de produção dos pisos e a tecnologia de pavimentação permeável sem infiltração no solo serão aceitos pelo poder público como soluções de microdrenagem e urbanização na várzea? Os moradores vão assumi-los como alternativas às práticas de aterramento e ocupação que vigoram na área?
A proposta de urbanização de ZL Vórtice, com calçadas desenhadas e fabricadas com os moradores, foi desde logo motivo de controvérsia. Pavimento com blocos de concreto intertravados na várzea seria inviável, pois com o empoçamento as peças se soltariam. O calçamento não seria resiliente em área de inundação. A resolução de propor um dispositivo de drenagem sem infiltração no solo respondeu às críticas: a tecnologia permite a contenção e a drenagem paulatina da água pluvial acumulada, evitando a colmatação.
A proposta obteve o apoio da Subprefeitura, que a encaminhou à Siurb. A Prefeitura não tem, ainda, um projeto de microdrenagem para o Jardim Pantanal. No início de 2023, a Siurb promoveu um encontro com os atores presentes na área, em que foram apresentadas as propostas de ZL Vórtice de drenagem e urbanização da área.
ZL Vórtice realizou um levantamento dos pontos críticos de empoçamento e das possíveis vias de drenagem na área, de modo a subsidiar as negociações com a administração pública. As áreas de empoçamento são delimitadas em relação com possível via de escoamento para massa d’água próxima, de modo que seja possível utilizar a tecnologia de pavimento permeável sem infiltração no solo. O diagnóstico foi conduzido por Alexandre Gonçalves. Exemplos das situações analisadas:
Pavimentos permeáveis (mas também wetlands construídas e jardins de chuva) retêm e desaceleram o escoamento superficial, antes da descarga em uma massa d’água. Constituem um novo método de gestão das precipitações pluviais. A operação de drenagem, antes centralizada num único sistema, é distribuída por vários dispositivos, ampliando a participação dos moradores na concepção e manutenção da rede.
Seguir o desdobramento das interações entre os diferentes protagonistas permitirá retratar como se realiza (ou não) um processo de urbanização na periferia de São Paulo. Retraçar a articulação de condições sociais e ambientais, requisitos técnicos, configuração do terreno e hidrologia, parâmetros administrativos e institucionais, demandas políticas, entidades de pesquisa e organizações comunitárias, na constituição de redes sociotécnicas dedicadas à drenagem e pavimentação do Jardim Pantanal. Atestar o quanto os moradores podem influir na formulação e condução das políticas públicas para a várzea do Rio Tietê.
Não se trata de simplesmente construir pavimentação na várzea. Para além das questões técnicas — o piso resiste a inundações? —, colocam-se os impactos que vai causar. As condições sociais e materiais de áreas críticas são inerentemente instáveis. Infraestruturas em várzeas, como pavimentos e sistemas de drenagem, são erguidas nos alagados. É preciso entender o território, o solo e a água, os moradores e a gestão pública, como parte integral da infraestrutura. Canos podem vazar devido a oscilações no aterro, calçamento pode solapar com o afloramento de água. É na várzea que o efetivo trabalho acontece. Um corpo a corpo com a água, o aterro, o terreno empoçado, o córrego assoreado, o concreto.
Um dos desafios enfrentados é a instabilidade do terreno, sujeito à inundações, empoçamento e aterramentos. Cálculos e testes são feitos para encontrar a composição adequada de materiais para assentar o calçamento. Mas na efetiva construção do pavimento muitas vezes podem surgir dificuldades práticas. Os materiais não têm as exatas propriedades prescritas, o comportamento do terreno muda, a drenagem não ocorre como previsto, depósitos de entulho alteram as vias de escoamento. É preciso incorporar a variação dos materiais e as práticas da comunidade, adaptando os procedimentos para viabilizar a execução do projeto. A emergência do pavimento permeável como um dispositivo relativamente estável se dá através de embates com as condições materiais e os conflitos sociais, de contínuas negociações com a administração pública, engenheiros e artistas, empresas e moradores (3).
Áreas críticas são um laboratório para desenvolver e testar tecnologias. Quais são as estratégias a adotar para desenvolver tecnologias de urbanização (desenho e fabricação local de pisos de concreto e pavimento permeável) na várzea? Agenciar rede sociotécnica, com engajamento de laboratórios, organizações sociais, empresas e governo na elaboração de soluções para situações críticas. Um agenciamento que inclua desenho e montagem do mosaico, fórmulas de mistura cimentícia, método de moldagem, procedimento de assentamento, concreto e pigmentos, projeto da base do pavimento permeável, sistema hidráulico, materiais, testes, levantamento topográfico, modelagem do terreno e sensores.
O que faz uma tecnologia ser bem-sucedida? O que faz com que seja uma inovação? A implantação de um dispositivo tecnológico, sua aceitação política e social, é o resultado de uma longa cadeia interativa que vai dos laboratórios de pesquisa até os moradores, os canteiros de produção, as empresas e a administração pública: é o resultado de uma atividade coletiva (4).
Uma iniciativa é inovadora quando favorece as articulações que permitam o enfrentamento das controvérsias, os acordos e a adaptação. É necessário ter estratégias de engajamento para manter os interessados envolvidos numa rede sociotécnica. Persuadir a comunidade e a administração pública de que as propostas são as soluções mais adequadas ao problema dos empoçamentos, evitando mais aterramentos e assoreamento dos córregos. Estratégias de mobilização bem-sucedidas transformam protótipos em infraestrutura. Mas a tecnologia tem de ser mantida, a operação tem de ser sustentada: é preciso um grande número de pessoas para fazer um dispositivo funcionar (5).
O projeto ZL Vórtice tem de ampliar sua rede, incluir mais parceiros, mais equipamentos, mais moradores, de modo a se viabilizar como escolha tecnológica para as políticas públicas de urbanização. Mas como articular um leque maior de instituições e especialistas e, ao mesmo tempo, manter os princípios científicos e técnicos — desenho e montagem do mosaico, mistura cimentícia e sistema de fabricação dos pisos, pavimento permeável sem infiltração no solo?
Quando um projeto não consegue angariar apoio, ele deixa de ser um lugar de desenvolvimento de tecnologia. O projeto fica como protótipo, não vira infraestrutura. Não consegue ter as tecnologias que propõe consideradas, debatidas, contestadas. A empreitada de construir uma rede sociotécnica pode naufragar. Um laboratório ou agente público impõe seu projeto sociotécnico, mobilizando os demais agentes, atribuindo funções, fixando as formas de cooperação e os problemas a resolver. Os opositores, porém, buscam questionar as bases técnicas e a legitimidade política do proponente. A controvérsia se reorganiza, novas alianças são criadas, os interesses são renegociados (6).
Mas não se deve imputar a existência de polêmicas a uma má qualidade técnica do projeto proposto. A disputa não é sobre eficácia. O proponente não fracassa por razões técnicas, mas porque não conseguiu mobilizar e agregar de modo durável os atores e interesses dispostos a desenvolver a tecnologia em questão. Não conseguiu construir e estabilizar a rede sociotécnica necessária ao funcionamento da sua proposta de tecnologia.
Pavimento e dispositivos de drenagem não são apenas artefatos materiais, mas redes sociotécnicas. Onde terra, água, concreto, moldes, canos, pigmentos e sensores têm desempenho variável e dependem do engajamento de pesquisadores, gestores e moradores. A implantação de determinada infraestrutura, como calçadas drenantes, é política, suscitando conflitos entre práticas da comunidade, condicionantes técnicos e ambientais, regulamentos jurídicos e parâmetros administrativos.
A tecnologia tornou-se um lugar de contestação política. Cadeias sociotécnicas não são um tecido liso e homogêneo. O desenvolvimento de tecnologia em áreas críticas raramente ocorre sem atritos e não necessariamente segue percursos bem definidos. Capacidades, técnicas e dispositivos que funcionam num local não o fazem do mesmo modo em outro. Ajustes sempre devem ser feitos. Criar e manter redes sociotécnicas requer trabalho, negociações e consertos.
Manter uma inovação tecnológica é muito difícil, pois exige protótipos, testes, negociações de normas, apoio político, recursos. Só depois que um dispositivo tecnológico se implantou ou fracassou é que, retrospectivamente, se pode dizer que foi correto desenvolvê-lo. O mais indicado é retardar ao máximo o momento em que as decisões sobre a tecnologia tornam-se irreversíveis. Não basta apressar a realização de um protótipo para assegurar a continuidade das operações. Se a configuração do dispositivo é definida irreversivelmente rápido demais, obtém-se respostas a questões sem importância, em vez de explorar possibilidades futuras.
É na etapa de projeto que a tecnologia é intensamente debatida: o que vai fazer, para que vai servir, quais competências os moradores devem ter, qual tipo de manutenção vai requerer. A administração pública se defronta com a necessidade de fazer escolhas técnicas. Os projetos tornam-se cada vez mais irreversíveis caso nenhuma força seja suficientemente potente para questioná-las. É preciso se posicionar no epicentro das disputas provocadas por projetos de inovação tecnológica.
Controvérsias são campos de força em que a expertise dos participantes é questionada e redistribuída. Eventos em que tecnologias urbano-ambientais e políticas regulatórias são sujeitas a disputas públicas (7). Confrontado com a possibilidade de enchentes e empoçamentos desestruturarem o pavimento feito com pisos intertravados, ZL Vórtice integra a drenagem à própria estrutura da calçada: desenho com canaletas para percolação e base para retenção e escoamento.
Como sustentar a integração sistêmica entre o calçamento com blocos de concreto articulados e a tecnologia de pavimento permeável sem infiltração no solo? Como garantir que a proposta de calçada seja também um dispositivo de drenagem? A pavimentação do Jardim Pantanal requer a constituição de uma rede sociotécnica em que calçadas permeáveis podem ser negociadas, instaladas, usadas e conservadas, com a participação dos moradores.
As tecnologias de urbanização de várzeas, desenvolvidas pelos laboratórios reunidos por ZL Vórtice, conseguirão estabilizar suas cadeias sociotécnicas e se afirmar como soluções inclusivas para áreas sujeitas a inundações? As propostas para o Jardim Pantanal poderão enfrentar as controvérsias técnicas e políticas, se contrapor à ocupação por aterramento e assoreamento, sustentar o apoio dos moradores e da gestão pública e se validar efetivamente como infraestruturas viáveis para situações críticas?
A proposta de tecnologias de fabricação de pisos e de pavimento permeável pode ser bem-sucedida? Quais os critérios para avaliar? O que indica a configuração e sustentação de uma rede sociotécnica, com protagonismo dos moradores? A correta execução da mistura do concreto? A moldagem dos pisos, com aplicação precisa dos pigmentos? A instalação da calçada de acordo com o mosaico? A construção da base e instalação do sistema de drenagem conforme o projeto de permeabilidade sem infiltração no solo? A adoção das tecnologias de drenagem e urbanização propostas, reduzindo o aterramento dos córregos e a ocupação dos espaços públicos?
O protocolo de desenho das calçadas, os procedimentos de fabricação dos pisos e a tecnologia de pavimento permeável sem infiltração no solo podem se sustentar nas condições sociais e ambientais críticas da periferia? Os dispositivos concebidos nos laboratórios podem se afirmar em meio às polêmicas técnicas e ocupações predatórias na várzea?
Replicar um experimento é, estendendo o laboratório, consolidar as tecnologias propostas. Isso se faz por ajustes sucessivos, consertos e ampliação de competências. Inclui treinamento dos moradores, exigência de precisão no preenchimento das fôrmas e na aplicação dos pigmentos, rigor na sequência de fabricação das lajotas e composição do mosaico, consistência na construção da base do pavimento e na disposição dos equipamentos hidráulicos e de monitoramento.
Mas como fazer as tecnologias operarem adequadamente fora dos laboratórios? O deslocamento para fora dos espaços controlados coloca a questão das alianças que os projetos são capazes de articular. Não se trata de simplesmente transpor a tecnologia testada no parque Jardim Helena para a rua, como um kit fechado. Como fazer a transposição para a várzea, um ambiente não controlado, complexo, sujeito a interferências? As tecnologias de produção dos blocos de concreto e de pavimento permeável são flexíveis, capazes de incorporar elementos materiais, as demandas da gestão pública e o conhecimento e práticas dos moradores?
ZL Vórtice iniciou negociações com a Sabesp, visando obter apoio para desenvolver na área urbana um protótipo dos procedimentos de drenagem e pavimentação, de modo a avaliar tecnicamente o seu desempenho, aderência social e potencial para aplicação no restante do bairro e em áreas de características similares.
Para a estruturação do protótipo, foram escolhidas três ruas. As ruas Laranjeiras e dos Anjos, que apresentam graves problemas de empoçamento, drenam em direção à rua Cachoeira de Itaguassava, às margens do Córrego São Martinho. A proposta consiste em projetar e implantar a pavimentação das ruas, com desenho e blocos de concreto articulados, associada à solução de microdrenagem.
Na rua Cachoeira de Itaguassava, na altura em que o escoamento superficial proveniente das ruas perpendiculares forma um ponto de grande acúmulo de água, propõe-se implantar um espaço público, constituído por calçada desenhada com os moradores, com blocos de concreto fabricados no local e assentados conforme a tecnologia de pavimento permeável sem infiltração no solo.
Vários fatores devem ser considerados ao se implantar o protótipo em área urbana, tornando a operação muito mais complexa: o desenho e a estrutura do pavimento permeável são impactados pelo escoamento das ruas transversais; a topografia das ruas, com pontos de empoçamento; as múltiplas interferências (entradas das moradias, desníveis entre ruas e casas, postes, árvores) da ocupação urbana no desenho da pavimentação.
Está desenhado o contexto sócio–técnico–ambiental requerido, no Jardim Pantanal, para que as tecnologias possam operar. Tudo depende da capacidade de manutenção da rede sociotécnica: desenho da calçada, mistura cimentícia, modo de produção local dos pisos, sistema de drenagem, moradores, pesquisadores, gestores públicos e empresas apoiadoras.
ZL Vórtice precisa consolidar suas redes sociotécnicas, garantir a instalação das tecnologias desenvolvidas. O protótipo visa testar a viabilidade da fabricação de infraestrutura pelos próprios moradores e provar que as tecnologias elaboradas nos laboratórios são efetivas na redução dos impactos das chuvas, o empoçamento das ruas. É preciso uma complexa negociação com o poder público e a comunidade sobre os procedimentos a serem implementados, encontrar um compromisso que permita estender os laboratórios o suficiente para que o desempenho das tecnologias propostas seja assegurado.
Trata-se de ampliar a rede, converter a várzea em laboratório (8). Transformar suficientes aspectos da várzea em condições similares à de um espaço laboratorial, de modo que os experimentos sejam considerados evidências do funcionamento adequado das tecnologias em implantação. O bastante para responder às críticas e evitar mais aterros e assoreamento dos córregos. Aproveitar o sistema de manejo de água, a várzea hidráulica, criada pela Sabesp. Expandir as redes sociotécnicas e fazer viajar por elas conhecimentos e instrumentos.
O protótipo estende os requisitos de verificação que existem nos laboratórios. Os pesquisadores procuram transportar para a várzea as condições que tornam possíveis práticas laboratoriais — desenho e montagem do mosaico, mistura cimentícia e moldagem dos pisos, pavimentação permeável sem infiltração no solo. Construir redes no interior das quais artefatos técnico-científicos têm eficácia. Garantir que os parâmetros metrológicos estabelecidos nos laboratórios serão mantidos constantes ao serem estendidos para situações críticas.
Para que o funcionamento das tecnologias seja efetivo, é preciso adequar a várzea, de modo que procedimentos e equipamentos possam sobreviver. Garantir que blocos intertravados e pavimentos permeáveis sejam produzidos conforme as especificações dos laboratórios e das normas técnicas, que possam resistir às críticas técnicas e às práticas de ocupação desordenada do território. A extensão dos laboratórios, a instrumentalização da várzea, não é só uma questão técnica. Ela é também política. É muito trabalhoso negociar o apoio do governo e manter o engajamento dos moradores, ter voz na definição das políticas públicas.
Seguir como as tecnologias são configuradas em situações críticas mostra como elas são reprogramadas no interior das redes sociotécnicas em que vão se inserir. Como uma tecnologia se move de um contexto a outro, o que viaja junto e o que fica para trás? Como, fora da sua rede original, tecnologias se tornam instáveis e como são reestabilizadas? O agenciamento adquire a forma de uma batalha técnico-política em que a própria tecnologia é o terreno no qual as questões são negociadas (9).
O desenho da tecnologia é político, expressando a relação entre os procedimentos técnicos e as condições existentes. O projeto tem de levar em consideração as demandas sociais, as interferências políticas, as limitações legais e de padronização dos materiais. Os laboratórios devem testar os dispositivos e considerar as contribuições que possam aumentar a aceitação pelos moradores e pela administração pública. A comunidade deve participar ativamente na configuração dos procedimentos técnicos e na definição das políticas públicas. O sucesso da tecnologia depende da capacidade do projeto agenciar os elementos heterogêneos que constituem uma situação crítica.
O transporte de um artefato tecnológico do laboratório para a várzea do rio Tietê evidencia os mecanismos de ajuste recíproco entre a tecnologia elaborada no laboratório e as condições sociais, ambientais e políticas locais. As propostas serão aceitas pelo governo como políticas públicas? Os moradores vão adotar os procedimentos propostos, em vez das práticas correntes de aterramento, assoreamento dos córregos e ocupação desordenada do terreno? Os dispositivos técnicos são sempre o resultado de uma relação de forças, um compromisso complexo entre demandas, desempenho e regulações.
O deslocamento de parâmetros técnicos dos laboratórios para lugares críticos não só muda as configurações sociotécnicas em que se inserem, mas também as próprias tecnologias se transformam ao se transferir. Parâmetros técnicos são coisas distintas em diferentes locações (10). Esses elementos técnicos — piso intertravado, moldagem local, mistura cimentícia, desenho da base do pavimento para possibilitar permeabilidade sem infiltração no solo — estão em movimento: em que medida, ao se deslocarem, eles vão mudar na relação com a várzea e seus moradores? Ao mesmo tempo, como o Jardim Pantanal será transformado pela implantação dessas tecnologias?
O processo de extensão do laboratório para situações críticas pode ser problemático. Moradores, organizações sociais e gestores públicos não estão necessariamente dispostos a incorporar as propostas dos laboratórios, inscritas nos aparatos tecnológicos. Eventos extremos, como inundações, ilustram as dificuldades que os laboratórios encontram na sua empreitada de estender seus parâmetros e procedimentos. Em momentos de grande perturbação, os dispositivos podem não operar adequadamente. Essas situações problematizam expertises e tecnologias estabelecidas. As enchentes são situações em que proposições e artefatos são submetidos à avaliação pública. Experimentos em que conhecimento e tecnologias são colocados em risco (11).
Um saber considerado transportável, porque elaborado de acordo com os cânones dos procedimentos laboratoriais, muitas vezes se mostra intransferível. É preciso uma cadeia de conversões, de ajustes sucessivos — redesenho do mosaico, reorganização da produção, adequação do sistema de drenagem, negociação da pavimentação com a comunidade e com a administração pública —, para que as tecnologias elaboradas nos laboratórios sejam implantadas com sucesso em situações críticas, para que funcionem adequadamente na várzea.
É comum pensar que infraestruturas de manejo da água e urbanização são estáticas e sólidas. Mas esses equipamentos nunca são estáveis, eles corroem, rompem, se desestruturam. Tecnologias de drenagem e urbanização na várzea dependem de cuidado. Em situações críticas, a implementação e manutenção de infraestruturas incluem adaptações e reparos feitos pela comunidade. Mesmo sistemas tecnológicos complexos são sustentados por ajustes e consertos constantes (12).
Na várzea, várias ações são necessárias para garantir o funcionamento de infraestruturas. Elas indicam o cuidar que os moradores dedicam aos sistemas hidráulicos: abrir válvulas de drenagem, verificar eventuais acúmulos de água sob o pavimento, remover terra e folhagem que possam obstruir a infiltração da água pelas juntas dos pisos. Ações que completam o monitoramento realizado por sensores. A tecnologia só é funcional se receber a necessária atenção. Sem manutenção não se tem calçamento permeável, próprio para áreas de inundação.
Uma tecnologia é resultado do trabalho do laboratório, mas também de técnicos e moradores, que redefinem suas características, adaptando-a às condições específicas do local. Para que uma tecnologia seja realmente incorporada, é preciso que os proponentes aceitem reconfigurar o sistema. É necessário mudar a concepção do artefato, de modo a obter um compromisso entre suas características técnicas e as demandas da comunidade. Estabilizar um arranjo que satisfaça engenheiros, agentes públicos e moradores.
Compromissos sociotécnicos e negociações são essenciais para a adoção de uma tecnologia. Se faz por experimentações: começa como um projeto básico e se transforma progressivamente, em função do conhecimento técnico aportado e do saber prático local, em um dispositivo capaz de interessar diferentes grupos sociais. A tecnologia se transforma permanentemente em função das provas a que é submetida, do interesse que desperta. Inicialmente, o artefato ainda é uma proposta, à que se acrescenta desenhos, cálculos básicos, testes, demandas e especificações. A cada novo participante, a lista de especificações é estendida, corrigida, reescrita. A proposta tem de ser negociada e redesenhada, para conservar os interesses engajados.
As chances de uma tecnologia residem, portanto, na escolha dos que vão participar na sua elaboração, discutir o projeto e transformá-lo até que seja aceito. A tecnologia depende das negociações constantes, dos testes e das exigências contraditórias que eles impõem. O dispositivo resulta dos acordos sociotécnicos que articula. Trata-se de saber com quem e com o que se pode contar para realizar o projeto e prever como serão redistribuídas as alianças se ocorrerem mudanças.
Um projeto de inovação fracassa porque os diversos protagonistas envolvidos não conseguem concordar sobre o que ele deve fazer. Laboratórios, governo e moradores eventualmente não mantêm o interesse pela tecnologia e o dispositivo técnico não é capaz de sustentar o envolvimento deles (13).
Os proponentes vão resistir à transformação do projeto original ou serão capazes de renegociá-lo para integrar novos interesses e outras condições? Essa é uma questão crucial no desenvolvimento de tecnologias modernas. Se os proponentes forem capazes de redesenhar o dispositivo, a tecnologia poderá atrair o interesse de muito mais pessoas, ampliando sua cadeia sociotécnica. Se não forem capazes de lidar com tantos interesses conflitivos, eles vão se aferrar ao projeto inicial e a tecnologia proposta não passará de um experimento de laboratório.
Muitas vezes um projeto inovador é concebido como uma tecnologia radicalmente nova, cujas chances de sucesso residem na consistência dos princípios e procedimentos propostos, que não devem ser submetidos a compromissos políticos e técnicos. Os proponentes se recusam a reavaliar parâmetros de projeto básicos. Eles impõem escolhas técnicas como irreversíveis, sem que possam ser colocadas em causa, quando o próprio projeto ainda está sendo avaliado pelos interlocutores institucionais que devem viabilizar sua implantação.
Quais ajustes e adaptações serão aceitos para que as tecnologias sejam implementadas fora do laboratório, na várzea? Quais os compromissos que podem ser feitos? De que modo ZL Vórtice deverá adequar suas propostas de pavimentação e drenagem do Jardim Pantanal, em função dos projetos da prefeitura?
O que é negociável e o que não é? O projeto de cada trecho da calçada deve ser variável, requerendo a adaptação do mosaico. Os parâmetros técnicos do LME têm de ser conciliados com as normas da Siurb e com as condições de fabricação em grande escala. A tecnologia de pavimento permeável sem infiltração no solo deve poder ser aplicada em várias situações no território. O que não é negociável: a integração de produção local dos pisos e sistema de drenagem. As decisões de projeto não são puramente técnicas: a opção por pavimentação acoplada a dispositivo de drenagem sem infiltração no solo indica que o calçamento é concebido especificamente para áreas sujeitas à inundação, portanto as várzeas ocupadas na periferia da metrópole.
O desenvolvimento e implantação de tecnologias de drenagem e urbanização na várzea do rio Tietê é uma empreitada extremamente complexa. Implica configurar redes sociotécnicas articulando laboratórios de pesquisa, moradores, artistas e agentes públicos, materiais (água, concreto), conhecimento e instrumentos (mapas, modelos, fôrmas, sensores). A extensão das condições laboratoriais para a periferia requer trabalho e negociações.
A implantação de tecnologias sustentáveis e inclusivas depende da capacidade dos laboratórios reunidos por ZL Vórtice, em conjunto com a comunidade, de ampliar as redes sociotécnicas mobilizando mais parceiros e instrumentos, de adequar seus projetos para integrar outros interesses, de trabalhar de acordo com as condições locais. O resultado do projeto de urbanização no Jardim Pantanal, na várzea do rio Tietê, será paradigmático das possibilidades de promover inovação tecnológica em áreas críticas da metrópole.
notas
1
BJORKMAN, Lisa. Pipe Politics, Contested Waters. London, Duke University Press, 2015.
2
VIRGILLIS, Afonso. Construção de pavimentos permeáveis com estruturas reservatório e a especificação técnica da PMSP. 19º Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, Maceió, 2011.
3
HARVEY, Penny; KNOX, Hannah. Roads: An Anthropology of Infrastructure and Expertise. Itihaca, Cornell University Press, 2015.
4
LATOUR, Bruno; AKRICH, Madeleine; CALLON, Michel. A quoi tient le succès des innovations? 1: L’art de l’intéressement; 2: Le choix des porte-parole. Paris, Annales des Mines, 1988.
5
LATOUR, Bruno. Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade a fora. São Paulo, Editora Unesp, 2000.
6
CALLON, Michel; LATOUR, Bruno. Unscrewing the big Leviathan: how actors macro-structure reality and how sociologists help them to do so. In KNORR-CETINA, Karin. Advances in Social Theory and Methodology. London, Routledge, 1981.
7
CALLON, Michel, LASCOUMES, Pierre. Agir dans un monde incertain: Essai sur la democratie technique. Paris, Editions du Seuil, 2001.
8
Latour, Bruno. Give Me a Laboratory and I will Raise the World. In KNORR-CETINA, Karin. Science Observed: Perspectives on the Social Study of Science. London, Sage, 1983.
9
SCHNITZLER, Antina. Traveling Technologies: Infrastructure, Ethical Regimes and the Materiality of Politics in South Africa. Cultural Anthropology, vol. 28, issue 4, 2013.
10
DE LAET, Marianne. Patents, travel, space: ethnographic encounters with objects in transit. Environment and Planning D: Society and Space, vol. 18, 2000.
11
WHATMORE, Sarah, LANDSTRÖM, Catharina. Flood apprentices: an exercise in making things public. Economy and Society, v. 40, n. 4, nov. 2011.
12
MOL, Annemarie, GUZMÁN, Carolina. Caring for water in Northern Peru: On fragile infrastructures and the diverse work involved in irrigation. Nature and Space, I-19, 2021.
13
LATOUR, Bruno. Aramis ou l'amour des techniques. Paris, Éditions de la Découverte, 1993.
sobre o autor
Nelson Brissac Peixoto é doutor em Filosofia pela Universidade de Paris-Sorbonne e professor do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, da PUC SP. Publicou Paisagens Críticas – Robert Smithson: arte, ciência e indústria (Editora Senac/Educ, 2010) e Arte/cidade Zona Leste (Editora Dardo, Espanha, 2011).