Muito se tem escrito sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer, mas não tanto assim sobre suas propostas urbanísticas. O fato é que Oscar Niemeyer realizou inúmeras delas, inclusive para cidades inteiras. O caráter original e marcante de sua arquitetura talvez seja uma das razões que expliquem a pouca análise sobre os aspectos especificamente urbanísticos de sua produção. Uma outra explicação é que, praticamente, nenhuma de suas grandes propostas urbanísticas conseguiu sair do papel, o que pode ter diminuído o interesse em discuti-las. Por fim, uma última explicação provável é que, sobretudo a partir dos anos 1980, o questionamento de vários pressupostos urbanísticos do movimento moderno colocou em xeque suas proposições, quase todas elas baseadas no ideário da primeira metade do século 20.
Embora tenha havido muitas tentativas de análise crítica de suas proposições urbanísticas, a maioria se atém a casos específicos. É o caso das análises de Luís Recamán de Barros e de Eduardo Dias Comas, por exemplo (1). Por outro lado, muito do que se tem são as publicações da Revista Módulo (vinculada ao próprio escritório de Niemeyer) e também as abordagens que simplesmente descrevem e valorizam os projetos urbanísticos de Niemeyer, como Lionello Puppi, Jean Petit, entre outros (2). Assim, a nosso ver, restou uma lacuna no que concerne a uma análise conjunta e crítica de suas propostas urbanas. A tentativa ambiciosa do presente trabalho, portanto, foi empreender tal análise. A partir de uma abordagem geral de suas proposições, tentamos chegar a um entendimento síntese sobre o seu modo de entender o espaço urbano. Buscamos verificar, dentro disso, até que ponto suas propostas urbanísticas se vincularam ao ideário moderno e também indagar se seus projetos implicaram ou não a revisão de alguns pontos desse mesmo ideário, tal qual empreendida por determinada crítica contemporânea (3).
No que concerne à revisão crítica contemporânea, os pontos elencados foram: o questionamento ao princípio do zoneamento, a crítica à falta de vitalidade urbana de muitos assentamentos modernos, a criação de espaços residuais e extensas áreas verdes sem destinação precisa, a não inclusão da memória coletiva enquanto um dos critérios das intervenções, a aniquilação injustificada de antigos setores urbanos e, por fim, o questionamento sobre o uso da tabula rasa como princípio indiscriminado de atuação (4).
A metodologia de abordagem do pensamento urbanístico de Niemeyer consistiu em analisar, primeiramente, propostas para grandes áreas, incluindo proposições para cidades inteiras. Uma vez que muitas desses projetos implicaram grande liberdade do arquiteto em dispor do espaço urbano, o nosso entendimento foi a de que melhor expressaram sua visão sobre o urbanismo. Inclui-se nisso a proposição de Niemeyer para Uma cidade para o amanhã (5). Um segundo momento foi entender se os princípios que nortearam essas proposições foram aplicados em situações mais restritivas, como no caso de lotes no espaço da cidade tradicional (com suas ruas, quarteirões, praças etc.).
Feita esta análise, redigimos a conclusão da pesquisa a partir da seleção de alguns casos que, a nosso ver, melhor expressaram o raciocínio urbanístico que detectamos em Oscar Niemeyer.
Projetos para grandes áreas
Analisando as grandes propostas urbanísticas de Oscar Niemeyer, constatamos que ele foi um arquiteto totalmente identificado com os princípios do Urbanismo Moderno, tal qual propostos no início do século 20. A ideia da cidade imersa no verde, o distanciamento entre os prédios de modo a assegurar boa insolação e ventilação, a provisão de vias rápidas de trânsito, a separação entre tráfego de automóveis e circulação de pedestres, o princípio da reprodutibilidade das formas arquitetônicas, e, finalmente, a setorização do espaço urbano por tipos de atividades, foram algumas das principais diretrizes usadas por Niemeyer para definir os espaços por ele projetados (6).
Com certeza deve ter sido extremamente significativa e marcante para Oscar Niemeyer a experiência que teve ao lado de Le Corbusier, quando este fez os primeiros esboços para a Universidade do Brasil (Rio de Janeiro, 1936). Isso porque ao desenhar o Centro de Treinamento da Aeronáutica (São José dos Campos, 1947), sua primeira grande proposta urbanística, Niemeyer não só manteve os mesmos princípios e o mesmo espírito do projeto de Corbusier como o fez de modo muito similar à proposta do arquiteto franco-suíço. Mais que isso: daquele momento em diante não teve mais dúvida de que seriam essas as diretrizes que iria utilizar em todas as propostas posteriores. Fundamentalmente, são esses princípios: a ideia da cidade imersa no verde e integrada à natureza, o espaçamento entre os edifícios (de modo a favorecer a ventilação e a boa insolação), a setorização do espaço urbano por funções, a produção serial dos elementos construídos e, por fim, a separação entre circulação de pedestres e tráfego de veículos.
Essas mesmas diretrizes iriam determinar sua proposta para uma cidade no deserto israelita do Neguev, em 1964. Definido a partir de uma elipse, o plano organizava o espaço urbano como cidade-parque. Torres habitacionais com cinquenta andares eram distribuídas de modo ordenado em meio ao verde. O esquema viário era reduzido ao essencial; o objetivo era diminuir drasticamente a presença do automóvel no espaço urbano, privilegiar os trajetos a pé e, consequentemente, reduzir custos com vias motorizadas. A cidade era organizada por setores, o que incluía uma grande praça central e vinculada ao comércio. Niemeyer estipulara, ademais, a produção em série de praticamente todos os elementos construídos, o que atendia à aspiração moderna referente ao modo de produção da arquitetura. A ideia era, por fim, produzir a cidade a partir de um desenho planejado, plasticamente ordenado e que implicasse, inclusive, um número máximo de habitantes. E, desde que a cidade era considerada, neste caso, como solução ideal para a vida moderna, a perspectiva era que fosse o primeiro de uma série de assentamentos urbanos a serem replicados (7).
O Plano Neguev, que, ligeiramente modificado, é retomado anos mais tarde em sua proposta para uma Cidade do Amanhã, traz em si todas as diretrizes que Niemeyer tentou seguir ao longo de sua extensa produção arquitetônica e urbanística (8). E implica, a propósito, vários dos princípios e diretrizes que, de modo sintético, são propostos na Carta de Atenas, por exemplo (8). A nosso ver, revela o indefectível vínculo do arquiteto com o ideário moderno.
A proposta também expressa a preocupação de Niemeyer com o rigoroso controle estético do espaço urbano, algo que fica evidenciado, aliás, em todas as suas proposições urbanísticas. Bom exemplo dessa preocupação estética é a proposta para o Centro Administrativo do Recife. Proposição de 1980, neste projeto pode ser vista a preocupação recorrente de Niemeyer em definir eixos, buscar ritmos e organizar composições harmoniosas. Blocos paralelos, idênticos e dispostos em sequência, geram determinado ritmo que também acontece na replicação dos blocos curvos. Exceto alguns edifícios com caráter mais nobre, todas as unidades arquitetônicas são estruturas seriais. Este, aliás, é um aspecto interessante que também acontece em várias outras proposições do arquiteto: Niemeyer reserva para os elementos nobres (auditórios, espaços de reunião etc.) a possibilidade de fugirem do caráter serial. Atribui a esses edifícios formas inusitadas e, com isso, reforça sua importância em relação às demais construções do conjunto (9).
Outro aspecto plástico de todas as propostas urbanísticas de Niemeyer, e que acontece também no Centro Administrativo do Recife, é o uso do branco enquanto algo que confere unidade a todo conjunto. Trata-se de um traço marcante, aliás, das composições urbanísticas e da arquitetura que realiza a partir dos anos 1950.
Por fim, um outra característica estética e simbólica de suas composições é a criação de extensas praças secas, as quais, constituindo os elementos focais de seus projetos, aspiram ser ambientes do encontro e da expressão coletiva.
Substituição de estruturas pré-existentes
Estruturas urbanas como o Centro de Treinamento da Aeronáutica (São José dos Campos, 1947), o Plano Neguev (Israel, 1964) ou o Centro Administrativo de Pernambuco (Recife, 1980), entre outras, foram propostas para áreas ainda não urbanizadas e deixaram o arquiteto totalmente livre para estabelecer os modelos que propôs. Sua preocupação, neste caso, prendeu-se aos cuidados com as condições naturais (orientação solar, topografia etc.) e com o estabelecimento de conexões com a cidade pré-existente. Muitos de seus grandes projetos urbanísticos, todavia, foram projetos para áreas urbanizadas; e algumas dessas áreas implicaram certa densidade histórica. Nestes momentos, vê-se que Niemeyer mostrou-se coerente com o seu modo de pensar e com a ideologia moderna. Tal qual Le Corbusier, por exemplo, quando propôs a redefinição do centro de Paris ou de um setor devastado pela guerra, em Saint-Dié (1946), orientou-se por substituir as estruturas pelo novo modo de pensar a cidade e o solo.
Um desses casos foi a proposta para um conjunto urbanístico em Argel (1968). Implicando estruturas habitacionais e administrativas, o extenso projeto seria implantado junto ao mar e viria substituir estruturas urbanísticas pré-existentes. Nas colagens que realizou para ilustrar o projeto, podem ser vistos os núcleos circulares propostos. Observe-se que, implicando blocos integrados ao verde e distanciados uns dos outros, os novos núcleos nada tinham a ver com a urbanização existente; foram pensados para substituí-las (10).
Essa mesma orientação de substituir o pré-existente por estruturas que considerava mais adequadas, Niemeyer a adotaria mesmo nos anos 1980, período que representou o auge do debate sobre a necessidade de revisão de alguns pressupostos do urbanismo moderno. Veja-se, pro exemplo, a proposição de 1980 para a cidade do Rio de Janeiro. Esboçada no livro Rio: de província à metrópole, trazia o entendimento de Niemeyer sobre o que seria uma situação desejável para a capital carioca. Em Copacabana, por exemplo, propunha substituir a estrutura existente por torres circulares; tais edifícios estariam distanciados uns os outros e integrados a um grande parque à beira-mar. Segundo Niemeyer, isso permitiria não só melhores condições de ventilação e insolação como a recuperação da visada para as montanhas do rio, algo dificultado pela implantação atual (11). Não há qualquer cogitação, por outro lado, sobre a possibilidade de uma revitalização urbana ou sobre a preservação de edifícios ou conjuntos urbanísticos que tivessem qualquer interesse enquanto memória coletiva.
Situação similar é, também, a que propõe para o Parque do Tietê (São Paulo, 1986). O projeto, que abrange uma extensa área ao longo do rio, repensa a ocupação feita até aquele momento. Para Niemeyer e equipe, a área ribeirinha deveria ser disponibilizada como parque público. Isso tornaria possível a construção de estruturas integradas ao verde: torres residenciais, comerciais, equipamentos culturais, de lazer e, ainda, um novo centro administrativo para a cidade de São Paulo. A idéia seria, portanto, substituir a velha estrutura urbanística por um modelo considerado mais adequado para a área ribeirinha e que, na visão do arquiteto, contribuiria significativamente para a qualidade urbana da metrópole. Indagado sobre a possibilidade de tão somente requalificar o amplo setor, o qual abrangia antigos bairros e zonas com interesse enquanto memória coletiva, Niemeyer argumenta que não gostaria de se ocupar com situações pontuais, soluções que, segundo ele, não resolveriam os pungentes problemas urbanísticos da capital (12). Ou seja, a ideia seria reconstruir totalmente o espaço urbano.
A nosso ver, fica claro que, em todas as suas proposições de larga escala, incluindo suas últimas propostas (século 21), Niemeyer se manteve convicto a respeito das vantagens do modelo moderno, tendo sido este o modo como pensou o urbanismo ao longo de sua vasta carreira.
Intervenções em quarteirões e lotes
Implantações em cidades modernas
A perspectiva de Oscar Niemeyer sempre foi atuar em áreas onde pudesse implantar livremente o modelo de cidade que considerava ideal; neste sentido, Brasília constituiu o lócus privilegiado de sua atuação. Lá pôde realizar propostas coerentes com o seu modo de entender a cidade. Soma-se a isso a possibilidade de dispor livremente os edifícios, seja para chegar às soluções desejadas seja para obter harmoniosos arranjos formais.
Dois exemplos talvez bastem para esclarecer essa perspectiva de atuação. Se, por um lado, explicitam as condições urbanísticas que Niemeyer considerava ideais, por outro lado eles põem em evidência alguns pontos questionados por alguns críticos contemporâneos.
O primeiro é a proposta para o setor hoteleiro vinculado à reforma do Grande Hotel de Brasília. A ideia era construir mais cinco blocos de hotéis, um centro comercial com lojas, restaurantes e cinemas; e, por fim, criar “uma praça com um grande cais e 9.000m² de lojas (restaurantes, bares, cafés, livrarias, lojas de som etc, assim como garagens de barcos e oficina)” (13). A implantação é uma espécie de modelo reduzido da lógica de organização de Brasília, implica a setorização dos equipamentos por funções e a definição do espaço urbano como cidade-parque. Implica também uma liberdade total de agenciamento dos equipamentos. Se, para alguns críticos contemporâneos, um dos questionamentos prende-se à questão das áreas verdes, excessivamente extensas e sem destinação precisa, para Niemeyer, todavia, isso significa a possibilidade de integração entre arquitetura e natureza e, também, o recurso para separar áreas tranquilas de outras mais agitadas, e que seriam destinadas, neste caso, ao comércio e ao lazer.
O outro é a proposta para um conjunto de tribunais na Asa Sul de Brasília (edificados a partir de 1989). A nosso ver, é também coerente com o modo de Niemeyer pensar certos aspectos de suas implantações urbanísticas. A organização do conjunto não somente traduz o princípio de setorização do espaço urbano como permite liberdade para agenciar livremente as formas e obter os resultados esperados. Na proposta para esses tribunais, também aparecem as recorrentes praças pavimentadas, as quais não só funcionam como fundo para as figuras (os edifícios) como trazem em si o significado de encontro e expressão coletiva. O problema é que, diferente das superquadras, onde um desenho prévio definia equipamentos de apoio para as habitações (comércio, escolas, serviços etc.), neste caso os próprios edifícios tem de prover espaços de apoio e serviços que tornem mais viável e confortável os espaços criados (equipamento como restaurantes, cafés, agências bancárias etc.). Uma vez que o arquiteto distribui, de modo esparso (e, inclusive, em pavimentos superiores), determinados serviços de apoio às atividades (restaurantes etc.), o que se tem, a nosso ver, é uma espécie de esvaziamento do espaço público: as praças, desprovidas de tais equipamentos, tornam-se lugares vazios e inóspitos. Os enormes estacionamentos, as áreas verdes sem destinação determinada e, ainda, o próprio caráter setorizado do conjunto, reforçam esse sentido de desolação do espaço; restrito a um só tipo de atividade (as funções relativas às causas jurídicas, trabalhistas etc.), o setor perde, ademais, qualquer interesse nos dias e horários em que os tribunais não funcionam.
Implantações na cidade tradicional
Situações de ruptura e desconexão
Uma vez que a perspectiva niemeyeriana de intervenção articulava-se à convicção de que a velha estrutura era inadequada à vida moderna; uma vez que Niemeyer entendia que tal estrutura devia ser substituída pelo urbanismo moderno, é natural que muitas de suas intervenções tivessem surgido como elementos de ruptura no tecido tradicional ou como pontos de tensão nos contextos pré-existentes.
A nosso ver, dois exemplos que expressam tal questão são o Edifício Niemeyer, de 1954, e o projeto para a Assembléia Legislativa, de 1965. Ambos são para o entorno da praça da Liberdade, um dos pontos mais antigos e nobres de Belo Horizonte. O Edifício Niemeyer tem cerca de quinze andares contra os não mais de quatro pavimentos dos prédios ecléticos vizinhos. Não obstante a generosidade do espaço interno dos apartamentos, o interesse plástico de sua forma sinuosa ou ainda a qualidade de sua arquitetura, o edifício deixa de estabelecer qualquer diálogo com o contexto. Fica a pergunta se a perspectiva visualizada por Oscar Niemeyer seria a de renovação total da área. A proposta para o prédio da Assembléia Legislativa, na mesma praça, parece responder a essa questão. O edifício, com mais de trinta andares, substituiria o antigo Palácio do Governo Estadual. Neste caso, a perspectiva de Niemeyer era evidente: não se tratava de manter um velho edifício eclético, o qual considerava inadequado para atender às novas demandas de uma grande capital (14).
Outro exemplo que exemplifica esta dificuldade de ajuste entre edifício e entorno tradicional é a proposta de 1989 para o Teatro Municipal de Uberlândia. No caso deste projeto, o objetivo de Niemeyer era prover um grande teatro para a cidade e de criar, ao mesmo tempo, uma praça seca que servisse para o encontro público. Além de sediar grandes eventos ao ar livre, tal praça teria também a função de servir de plateia, já que o palco do teatro se abriria tanto para o interior do edifício quanto para essa extensa área pavimentada. Para servir de apoio à praça e ao resto do conjunto, Niemeyer previa um prédio que, além de abrigar a administração, teria galeria de arte e um café. O prédio não foi construído, o que comprometeu muito a sustentabilidade da proposta. Entretanto, mesmo que esse complemento fosse construído, acreditamos que, ainda assim, haveria dificuldade de garantir-se a vitalidade urbana para um equipamento com tal importância na vida da cidade. A nosso ver, isso se deve à má localização do conjunto e à falta de estratégias que garantissem a animação esperada.
Analisando-se a localização, vê-se que o teatro implanta-se junto a uma área isolada e que não provê apoio para atividades culturais. O terreno ladeia uma via de trânsito rápido (avenida Rondon Pacheco), o que, se por um lado facilita o acesso de veículos, constitui uma barreira para o pedestre. O entorno ao edifício é também uma área sem nenhuma afinidade com um equipamento cultural de tal porte: é constituído de residências, alguns armazéns, depósitos, e não tem qualquer comércio ou serviço que possa promover movimento. Diríamos que a escolha do local, portanto, ao invés de contribuir para o sucesso do empreendimento, coloca uma dificuldade inicial; para transformá-lo num espaço cultural e socialmente pulsante seriam necessárias estratégias; isso poderia incluir o estabelecimento de fortes articulações com a área ou mesmo a indução de comércio e de serviços. Ora, nada disso é feito. Ao invés, Niemeyer determina uma forte cisão entre o bairro e o setor residencial: interpõe uma grande área de estacionamento entre o teatro e a vizinhança. Para piorar, cria um acentuado talude entre o edifício e a rua, o que gera uma outra barreira de acesso. Assim, não bastasse a localização desfavorável, Niemeyer ainda esquece ou evita deliberadamente quaisquer estratégias para transformar o edifício e a praça num local pulsante. O resultado é um espaço que, se acessado facilmente de automóvel, passa a ter um uso muito restrito na cidade. Sem nenhuma proteção contra o sol, ademais, a praça é usada somente à noite e quando há eventos. Nestas ocasiões, ademais, demanda equipamentos improvisados para suprir as necessidades do público (foodtrucks, banheiros químicos e tendas provisórias).
A nosso ver, a desconexão entre o edifício do teatro e o seu entorno imediato confirmam a constatação de que Niemeyer, por diversas vezes, manifestou certo desconforto ou pouca disposição para trabalhar em contextos tradicionais. Confirma também a hipótese de que poucas vezes assimilou a ideia de revitalização do entorno ou a intenção de garantir a vitalidade das áreas pré-construídas, questões trazidas pela crítica contemporânea.
É importante considerar, contudo, que, a despeito desse raciocínio, houve muitas ocasiões em que o arquiteto soube adequar corretamente suas propostas ao ambiente urbano pré-edificado. A nosso ver, isso resultou de situações em que a adequação ao entorno foi demandada pelos clientes ou surgiu como imposição explícita e determinada. É o que consideraremos a seguir.
Situações de diálogo com o entorno
Percebe-se em algumas propostas de Niemeyer certa tentativa de ajuste ao contexto, bem como certa intenção de trabalhar a partir da lógica e dinâmica do espaço pré-existente. Como consideramos, a nosso ver isso acontece em virtude da forte imposição dos clientes e de estritas restrições urbanísticas.
O Banco Boavista (Rio de Janeiro, 1946), o Edifício Copan (São Paulo, 1951) e o projeto para o Journal L’Humanité (Paris, 1979–1987) são situações que nos ajudam a compreender essa questão.
No caso do Banco Boavista, o edifício precisava adequar-se às diretrizes urbanísticas para o entorno da Igreja da Candelária (Rio de Janeiro). O plano urbanístico definia a igreja como o ponto culminante do eixo estabelecido pela avenida Presidente Vargas e organizava, em seu entorno, edifícios com altura definida, além de especificar alinhamento à testada do lote e passeio coberto (loggia). Seguindo essas diretrizes, Niemeyer projeta um edifício que se articula de modo discreto à paisagem urbana, ao mesmo tempo em que a enriquece com a qualidade arquitetônica da construção. Tal qualidade, que inclui soluções racionalistas ligadas ao layout dos andares, também pode ser percebida no cuidado com a insolação e com a privacidade dos escritórios: uma vez que a fachada oeste fica bem próxima do prédio vizinho, Niemeyer resolve o problema com quebra-sóis, os quais também ajudam no controle da iluminação e da insolação (especialmente nos andares superiores). A qualidade arquitetônica do projeto pode ser notada, ademais, no salão de atendimento ao público; neste, uma parede ondulada de tijolos de vidro não só confere graça e privacidade em relação ao passeio, como também produz uma iluminação suave que valoriza o tom do mármore que reveste o ambiente interno. Ou seja, no caso do Banco Boavista, ao mesmo tempo em que utiliza recursos e princípios modernos na elaboração da arquitetura, Niemeyer se ajusta à logica urbanística local. O resultado é um edifício que, além da excepcional qualidade arquitetônica, mantém um diálogo harmonioso com o contexto urbanístico em que se insere.
No caso do Edifício Copan, Niemeyer também trabalha a partir da lógica urbanística do centro de São Paulo: alta densidade e diversidade de usos (moradia, comércio, serviços etc.). O térreo organiza-se como uma galeria comercial, totalmente acessível desde o exterior. A circulações da galeria funcionam como extensão da própria rua, sendo que algumas lojas se abrem diretamente para o passeio. A idéia é, portanto, produzir um conjunto que seja continuação do espaço público e que reforce, ao mesmo tempo, o caráter comercial do centro. Dentro dessa concepção, e de modo coerente com a idéia de um edifício integrado à cidade, o acesso aos apartamentos é feito no espaço de circulação da própria galeria.
Observe-se que, no caso do Banco Boavista e do Copan, Niemeyer está atuando dentro dos limites e das exigências de planos urbanísticos vinculados à lógica da cidade tradicional. Como temos comentado, todavia, não era essa a lógica que correspondia à convicção mais profunda do arquiteto. O ideal de cidade que visualizava era a cidade moderna, setorizada e integrada ao verde. Ao nosso ver, portanto, os projetos para o Banco Boavista e para o Copan podem ser tomados como exemplos das inúmeras concessões que Niemeyer fez à lógica tradicional.
Por fim, uma outra situação de ajuste à lógica tradicional da cidade é a proposta para o Journal L’Humainité (Paris, 1979–1987) (15). O sítio era o entorno da Basília de Saint-Dennis, um dos lugares mais antigos de Paris. A orientação urbanística local, vinculada ao debate sobre a revalorização de aspectos da cidade tradicional, demandava a preservação das estruturas históricas locais, o reforço do caráter multifuncional da área e sua qualificação enquanto zona preferencial para pedestres. As orientações urbanísticas especificavam, ainda, um limite de altura para os edifícios, construções à testada do lote, loggias ao nível do térreo e um caráter multifuncional que, mesclando habitação, comércio e serviços, garantisse a vitalidade do setor. Atendo-se a essas orientações, Niemeyer projetou um edifício que se adequou ao contexto urbanístico e o enriqueceu com a qualidade de sua arquitetura. É interessante observar que o caráter moderno é dado pela volumetria e pela estrutura, as quais sugerem um edifício sobre pilotis. Essa sugestão é reforçada pelo recuo dos espaços envidraçados ao nível do térreo. Niemeyer também deixa livre uma pequena ponta do terreno, destinando-a a uma pequena praça. O caráter moderno é dado ainda pelo uso do concreto, das vidraças contínuas e pela sequência de aberturas circulares no último pavimento. Por fim, diríamos que as proporções do edifício e a sua implantação determinam um edifício que estabelece um diálogo harmonioso com a antiga estrutura urbanística e com a velha igreja. Isso é reforçado pelo tom do concreto, que parece aludir à tonalidade das pedras da antiga basílica, e pelo azul-esverdeado das vidraças, algo que nos leva a estabelecer alguma relação com a cobertura verde da edifício gótico. Não obstante toda essa adequação e esse caráter harmonioso com o sítio, é interessante observar que, ao falar sobre o projeto, Niemeyer não se refere nem às restrições nem à orientação contextualista do urbanismo local. Ao contrário, destaca as qualidades modernas do edifício e o contraste com os prédios vizinhos. Nas palavras do arquiteto: "A ideia era procurar uma solução que aproveitasse bem o terreno e fosse estruturalmente simples, econômica, pré-fabricada. Depois, a idéia evoluiu, surgindo como opção os grandes painéis de vidro e com isso o contraste desejado com os prédios vizinhos destinados à habitação social”. (16). A nosso ver, isso comprova a hipótese de que ajustes a contextos urbanísticos tradicionias ou citações a linguagens do passado nunca foram preocupações de Niemeyer. Arquiteto radicalmente moderno, sempre apostou na inovação, na técnica, no acerto das soluções racionais, no movimento em direção ao futuro, evitando articulações com o passado que pudessem, segundo acreditava, comprometer de algum modo a atualidade de sua arquitetura. Assim, se o edifício do Journal L’Humainité se ajusta ao contexto e se aproxima da discussão contemporânea, a nosso ver isso acontece mais em função das exigências urbanísticas locais do que que de improváveis preocupações contextualistas do arquiteto.
Conclusões
Este breve artigo procurou esboçar algumas conclusões, obtidas numa pesquisa sobre o pensamento urbanístico de Oscar Niemeyer. Tal pesquisa indagou sobre o modo como o arquiteto pensava a cidade, investigou até que ponto se identificava com o urbanismo moderno e em que medida suas propostas adentraram alguns pontos do debate urbanístico contemporâneo. A análise das proposições para grandes áreas levou-nos à conclusão de que, ao longo de sua extensa carreira, Niemeyer manteve-se convicto acerca da adequação e das vantagens do modelo moderno. A ideia da cidade imersa no verde, o distanciamento entre os edifícios, a preocupação com a boa ventilação e insolação, a produção serial das unidades arquitetônicas, a setorização do espaço urbano por funções, a provisão de vias rápidas de trânsito, e, por fim, o compromisso com as novas técnicas e com a linguagem moderna, foram alguns dos pontos dos quais jamais abriu mão. Tal lógica foi utilizada em todas as suas propostas para grandes áreas, sem que praticamente nenhuma delas tenha sido construída, todavia.
No que concerne às suas intervenções na cidade tradicional, verificou-se que, visualizando a redefinição total do espaço urbano, Niemeyer muitas vezes tentou aplicar o princípio da tabula rasa; ou seja: muitas vezes sua intenção foi reconstruir totalmente os contextos pré-existentes, o que o liberou de preocupações contextualistas. Isso resultou, várias vezes, em rupturas e dificuldades de relação com os ambientes urbanos pré-existentes. Outras vezes adequou-se ao entorno e estabeleceu modos de relacionamento que, partindo da lógica da estrutura urbana pré-construída, não somente a reforçaram como geraram situações de enriquecimento dos sítios em que interveio. Uma vez que não era esse, entretanto, o ideal urbanístico que visualizava, nossa conclusão foi a de que essas situações de ajuste decorreram muito mais das imposições dos programas do que das convicções do arquiteto, ou, mesmo, de uma suposta adesão a reavaliações contemporâneas.
Concluindo, diríamos que, uma vez que as propostas urbanísticas de Oscar Niemeyer procuraram traduzir os ideais do Urbanismo Moderno, tal qual discutido na primeira metade do século 20, a extensa e profícua produção do arquiteto ficará como uma referência importante para futuras discussões e para a reflexão sobre o valor e sobre os limites das ideias que nortearam seu pensamento sobre o espaço urbano.
notas
1
BARROS, LUIZ ANTÔNIO RECAMÁN. Oscar Niemeyer: forma arquitetônica e cidade no brasil moderno. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH USP, 2002; BARROS, Luiz Antônio Recamán. Por uma arquitetura, brasileira. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 1996; COMAS, Carlos Eduardo. Nemours-sur-Tietê, ou a modernidade de ontem. Revista Projeto, n. 89, São Paulo, jul. 1986; COMAS, Carlos Eduardo. Pré-Brasília. A legitimidade da diferença. Revista AU, n. 55, São Paulo, ago./set. 1994.
2
PUPPI, Lionello. A arquitetura de Oscar Niemeyer. Rio de Janeiro, Revan, 1988; PETIT, Jean. Poète de l’Architecture. Paris, Bibliothèque des Arts, 1995.
3
A presente abordagem é uma síntese de uma pesquisa desenvolvida em 2013 junto ao Programa de Pós-Doutorado da Universidade de São Paulo e intitulada Cidade diversa. Oscar Niemeyer e o debate urbanístico. Teve supervisão do professor doutor Rodrigo Cristiano Queiroz. Para efeito da análise, adotamos o termo urbanismo moderno ao nos referirmos ao pensamento urbanístico hegemônico durante a primeira metade do século 20 e cuja melhor expressão são, a nosso ver, as diretrizes discutidas pela Carta de Atenas (1933). LE CORBUSIER. A carta de Atenas. São Paulo, Hucitec/Edusp, 1993.
4
Entre os autores que discutem os pontos do urbanismo moderno e também sua revisão pela crítica contemporânea, citaríamos: ARANTES, Otilia. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo, Edusp, 1993; CHOAY, Françoise. O urbanismo. Utopias e realidades. uma antologia. São Paulo, Perspectiva, 2000; FRAMPTON, Kenneth. Historia crítica de la arquitectura moderna. Barcelona, Gustavo Gili, 1991; HOLSTON, James. A cidade modernista. Uma crítica de brasília e sua utopia. São Paulo, Companhia das Letras. 1993; JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000; LAMAS, José. Morfologia e desenho da cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta de Investigação Científica e Tecnológica, 1992; RIVAS SANZ, Juan Luis de Las. El espacio como lugar: sobre la naturaleza de la forma urbana. Valladolid, Secretariado de Publicaciones, Universidad/D.L., 1992; ROSSI, Aldo. La arquitectura de la ciudad. Barcelona, Gustavo Gili, 1971; ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. Barcelona, Gustavo Gili, 1998.
5
NIEMEYER, Oscar. Uma cidade para o amanhã. Revista Módulo, n. 56, São Paulo, set. 1979.
6
Françoise Choay denomina de urbanismo progressista este raciocínio e estas diretrizes. Segundo a autora, este modelo, que já estava presente no pensamento de críticos e utopistas como Owen, Fourier e outros, tem sua nova versão com Tony Garnier, Le Corbusier e vários pensadores e arquitetos da primeira metade do século 20, bem como encontra sua melhor expressão na Carta de Atenas (1933). Há neste raciocínio a ideia de um homem-tipo, a reprodutibilidade das soluções urbanísticas (pensadas para qualquer região e cultura), a ideia de uma cidade verde e salubre, entre outros aspectos. CHOAY, Françoise. Op. cit. Outras fontes úteis para entender todo esse ideário são: LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 1992; MUNFORD, Edward. The Ciam Discourse on Urbanism: 1928–1960. Cambridge, MIT Press, 2002.
7
NIEMEYER, Oscar. Plano Neguev. Revista Módulo, n. 39, São Paulo, mar./abr. 1965.
8
NIEMEYER, Oscar. Uma cidade para o amanhã (op. cit.).
9
NIEMEYER, Oscar. Centro Administrativo de Pernambuco. Fundação Oscar Niemeyer, 1980 <https://bit.ly/3qJr6Su>.
10
NIEMEYER, Oscar. Arquitetura brasileira na Argélia. Revista Módulo, n. 43, jun./ago. 1976.
11
NIEMEYER, Oscar. Rio: de província a metrópole. Rio de Janeiro, Avenir Editora, 1980.
12
NIEMEYER, Oscar. Parque do Tietê. São Paulo, Almed, 1986.
13
NIEMEYER, Oscar. Reconstrução do Hotel Brasília Palace. Rio de Janeiro, Fundação Oscar Niemeyer, s/d <https://bit.ly/3KWBlJZ>.
14
MACEDO, DANILO MATOSO. As obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais, 1938–1955. Brasília, Câmara dos Deputados, 2008; NIEMEYER, Oscar. Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 1965. Rio de Janeiro, Fundação Oscar Niemeyer <bit.ly/3KWBlJZ>.
15
Enquanto “lógica tradicional da cidade” estou me referindo à tradição urbanística do quarteirão, do lote e da rua, algo que as proposições modernas tentaram romper a partir da ideia da cidade parque. Discussões sobre isso e sobre a revalorização das características da cidade tradicional podem ser encontradas, por sua vez, em autores como ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Ciudad collage. Barcelona, Gustavo Gili, 1998; LAMAS, José. Morfologia e desenho da cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta de Investigação Científica e Tecnológica, 1992.
16
NIEMEYER, Oscar. L'Humanité. Paris, Humanité, s/d (folheto) <bit.ly/3KWBlJZ>. Grifo do autor.
sobre o autor
Luis Eduardo Borda é arquiteto e urbanista (Ufpel, 1984), mestre em História Social da Cultura (PUC Rio, 1994), doutor em Artes (ECA USP, 2003) e pós-doutor em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 2014). Professor titular da Universidade Federal de Uberlândia e professor permanente do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da mesma instituição.