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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo trata de conceitos e abordagens relativos ao fenômeno neocolonial. O objetivo é entender que papel desempenham e de que maneira se inter-relacionam dentro do discurso que embasa a expressão arquitetônica neocolonial brasileira.

english
This article deals with concepts and approaches related to the neocolonial phenomenon. The objective is to understand what role they play and how they interrelate within the discourse that underlies the Brazilian neocolonial architectural expression.

español
Este articulo trata de conceptos y enfoques relacionados con el fenómeno neocolonial. Se intenta comprender qué papel juegan y cómo estos conceptos se interrelacionan dentro del discurso que subyace a la expresión arquitectónica neocolonial brasileña.


how to quote

LUCENA, Emanoel de; CAVALCANTI FILHO, Ivan. Modernidade, modernização e identidade nacional. Uma muito breve arqueologia de lugares-comuns relativos à historiografia da arquitetura neocolonial brasileira. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 279.02, Vitruvius, ago. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.279/8870>.

“En tesis, aqui se tuvo una resistencia que impuso la tradición arquitectonica como camino para alcanzar uma recomendable ‘identidad’ cultural. Se trataba del rescate de uma arquitectura olvidada” (1).

O neocolonial não é somente nacional e moderno: representa a vanguarda da arquitetura brasileira” (2).

Esses termos e expressões grifados nas citações acima — como “identidade cultural” (em outros casos “identidade nacional”), “tradição arquitetônica”, “nacional” (e suas derivações, como nacionalismo, nacionalidade), entre outros — são apenas alguns dos ‘lugares-comuns’, isto é, conceitos-chave, utilizados na historiografia para contextualizar a arquitetura neocolonial.

Apesar de serem recorrentes na literatura relativa ao tema, não são restritos a ele. O dicionário lhes atribui uma definição, mas na prática discursiva essa definição não é fixa, variando segundo diversos fatores, como a época em que determinado discurso é proferido, o viés ideológico que lhe é aplicado, ou simplesmente de acordo com a subjetividade do autor do discurso.

Este artigo propõe uma seleção de alguns lugares-comuns recorrentes na literatura relativa à arquitetura neocolonial, de modo a entender o papel que desempenham e de que maneira se inter-relacionam dentro do discurso que embasa a expressão arquitetônica neocolonial brasileira. Para atingir tal objetivo, o ensaio adota uma análise de discurso arqueológica para investigar os recortes de abrangência dos lugares-comuns aqui trabalhados na construção da narrativa em torno da arquitetura neocolonial no Brasil.

Isto posto, quando se propõe analisar arqueologicamente um dado saber, significa investigar as camadas que estão por baixo deste saber, aquilo que o sedimenta e o cristaliza, semelhantemente à tarefa de um arqueólogo em plena atividade de escavação, quando vai descobrindo novos dados acerca de um determinado sítio à medida que o escava. Analogamente a tal processo se dá a análise arqueológica do discurso, segundo Michel Foucault (3).

Nesse sentido, o presente ensaio está disposto em duas seções, onde, na primeira, são analisados os conceitos de modernidade, modernização e nacionalismo. A segunda, por sua vez, analisa o conceito de identidade nacional. Longe de propor uma definição unificada a tais conceitos, a principal contribuição deste trabalho é propor recortes de abrangência a esses lugares-comuns recorrentes na historiografia da arquitetura neocolonial brasileira.

Uma vez estabelecidas as devidas considerações, o ensaio finaliza propondo uma reflexão em torno da reapropriação do vocabulário colonial como arauto do ideário nacionalista republicano.

Modernidade, modernização e nacionalismo

De acordo com Victor José Baptista Campos (4), ocorre, na historiografia da arquitetura, certa dificuldade na conceituação do termo “moderno”, bem como de suas derivações, tais como “modernidade” e “modernização” (5). No tocante à modernidade, a elaboração de um conceito consistente desse termo no campo da arquitetura e do urbanismo é uma tarefa desafiadora para historiadores e críticos (6). Isto porque esses termos são absorvidos por um discurso predominante que atribui a representatividade do movimento moderno unicamente ao racionalismo arquitetônico, em razão de uma abordagem historiográfica que, de acordo com Maria Lucia Bressan Pinheiro, “privilegia a completa ruptura” entre as propostas do referido movimento e “demais manifestações culturais que lhe são contemporâneas” (7). Constrói-se, deste modo, uma narrativa que desconsidera contextos modernos específicos, como aquele que ocasionou o fenômeno neocolonial na arquitetura, por exemplo. Conforme se verá mais adiante, no caso brasileiro, esse fenômeno foi fruto de uma busca por aquilo que Micael Herschman e Carlos Pereira definem como “modernidade nativa” (8), a qual, em linhas gerais, pode ser entendida como a associação de valores tradicionais à onda nacionalista modernizante, típica do discurso republicano pela Ordem e Progresso.

Isto posto, o sociólogo francês Alain Tourraine (9), define a modernidade como uma “antitradição” (10), ou seja, uma inversão de convenções, costumes e crenças pré-estabelecidos. Essa noção converge para a definição do termo por Japiassú e Marcondes no Dicionário básico de filosofia, onde se lê:

“Em um sentido geral, a modernidade se opõe ao classicismo, ao apego aos valores tradicionais, identificando-se com o nacionalismo, especialmente quanto ao espírito crítico, e com as ideias de progresso e renovação, pregando a libertação do indivíduo do obscurantismo e da ignorância através da difusão da ciência e da cultura em geral” (11).

Note-se nesta passagem a relação estabelecida entre modernidade e o componente nacionalismo. Isso porque, essa oposição a valores tradicionais, evocada por essa modernidade supramencionada, é intrínseca ao processo de “formação de nações” (12), que, por sua vez, é consequência de uma nova estrutura social. A marca dessa nova estrutura é a supressão de todo e qualquer “particularismo”, seja de ordem regional, étnica, social, legal e/ou administrativa (13), em nome de uma nova entidade política unificada, então denominada Estado Nacional.

A modernização, por sua vez, deve ser entendida, no âmbito deste artigo, enquanto aquilo que o historiador francês Jacques Le Goff considera como um “projeto de civilização” (14), o qual se deu com a introdução daquela modernidade supramencionada, nos países em desenvolvimento. O referido projeto pode ser entendido, em outras palavras, como mais uma fase do processo de ocidentalização desses países, o qual se traduz pela assimilação de aspectos da cultura europeia ocidental (15), intimamente ligados aos progressos científicos da Revolução Industrial.

Diante do exposto, a modernização pressupõe uma ruptura com algo pretérito (a ser superado), ao mesmo tempo em que oblitera conflitos do passado, para cosmetizar uma realidade pré-existente, visando o progresso. Nesse contexto, a arquitetura neocolonial, enquanto fenômeno cultural, deve ser apreendida como o resultado de um questionamento de um determinado processo de modernização comum a todos os países da América Latina. No Brasil, a Proclamação da República representou o início desse novo projeto de civilização, aqui traduzido como modernização republicana. Essa modernização consistia, em linhas gerais, no afã pela mudança de status de um país, predominantemente agrário, escravocrata, para um país urbanizado, industrializado e civilizado, ou seja, em pé de igualdade com as nações do Hemisfério Norte (16).

Sobre tal contexto, de acordo com Herschmann e Pereira (17), o Brasil assistiu àquele momento uma procura por inovações tanto no campo das ciências aplicadas como técnicas, as quais se tornaram ferramentas cruciais para o desenvolvimento daquele projeto de nação “imaginado” por essa elite (18).

Considere-se “imaginar” enquanto o processo de seleção criteriosa de determinados eventos da história de um lugar para a criação de uma imagem ideal daquele mesmo lugar (19). Nessa ótica, selecionam-se marcos históricos que enaltecem a história local, ao mesmo tempo em que se esquece e/ou se reduz o peso daqueles marcos que pungem a mesma história. A título de ilustração, conforme apontado por Lilia Schwarcz (20), no caso do Brasil este “exercício de obliteração” pode ser verificado na letra do Hino da Proclamação da República, escrito em 1890, quando se entoa que “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País…”. Ora, a Abolição havia sido promulgada apenas um ano antes da dita Proclamação, e já era tida como matéria de um passado longínquo. O fato ilustra bem o que a referida autora classifica como “amnésia coletiva”, sobre a qual se constrói a imagem dessa Nação fetichizada pela nova elite brasileira. Destarte, conforma-se o princípio nacional republicano, ou melhor, o nacionalismo republicano, entendido nesse período inicial da República como uma “força unificadora” do território (21), que estabelece a ideia de uma coletividade fraternal, independentemente das desigualdades e explorações vivenciadas pelas populações das diversas regiões do território brasileiro.

A criação desse princípio nacional, mencionado no parágrafo anterior, passava pelo enaltecimento dos pontos em comum do vasto território — como a língua e a natureza — em detrimento dos particularismos regionais mencionados anteriormente. Tais “particularismos”, “levantavam barreiras intransponíveis entre as diversas comunidades do mesmo território” (22), ou seja, entre as antigas províncias imperiais, no caso do Brasil. Uma forma que a República encontrou de transpassar essas barreiras foi a unificação “perpétua e indissolúvel”, promulgada pela Constituição de 1891, que elevou as ditas províncias à categoria de “Estados Unidos do Brasil” (23).

Em resumo, tal unificação visava a construção de uma consciência nacional moderna, e, nestes termos, a arquitetura neocolonial desponta como um dos vetores a permitir o despertar e a manutenção dessa consciência. Nestes termos, conforme pontua Bressan Pinheiro na sua obra Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil, “se pensarmos no objetivo precípuo do neocolonial como primeira iniciativa, em arquitetura, de valorização das raízes brasileiras e busca de uma identidade nacional, seu papel para a cultura brasileira do período assume outra dimensão” (24). Ou seja, a dimensão de não ser apenas mais um “modismo eclético” (25), mas como um dos componentes do arquétipo que a nação brasileira construía de si mesma, denotando a maneira como desejava ser percebida (26).

Identidade nacional

De acordo com Michael Pollak (27), a “identidade” [nacional] se constitui a partir de três elementos “essenciais”. O primeiro consiste na “unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas”, o que, no âmbito de uma nação, pode ser traduzido como a expansão dos seus limites geográficos. Conforme aponta Benedict Anderson, “mesmo a maior [das nações] possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existe outras nações” (28). Depreende-se, portanto, que o estabelecimento de limites é decisivo na conformação de uma identidade nacional, na medida em que a demarcação de espaços facilita a assimilação daquilo que Pollak chama de “sentimento de pertencimento a um grupo” (29).

O segundo elemento constituinte da identidade nacional, segundo Pollak (30), refere-se à “continuidade” ao longo do tempo daquela unidade física citada no parágrafo anterior, que pode ser entendida, nas palavras de Anderson como a “soberania” nacional (31). Por fim, o terceiro elemento manifesta-se no “sentimento de coerência” através do qual “os diferentes elementos que formam um indivíduo” (no caso, a nação), “são efetivamente unificados”, estabelecendo-se, portanto, a “ideia de um ‘nós’ coletivo”, ou seja, aquela “coletividade fraternal”, imposta pelo nacionalismo republicano (32). Nesse sentido, Pollak acrescenta que, “a construção da identidade [nacional] é um fenômeno que se produz em referência […] aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade [e] de credibilidade […] dos outros” (33).

Destarte, quem ditava tais critérios para o Brasil era a Europa, especialmente a França, “com seus circuitos literários, cafés, teatros e uma sociabilidade urbana almejada em outras sociedades” (34). No decreto de 12 de agosto de 1816, por exemplo, o rei Dom João VI, já expunha seus anseios em incutir o gosto pelas Bellas Artes aos habitantes da colônia, por meio da instituição da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, chefiada por uma missão científico-cultural francesa (35).

Complementando o exposto, Bressan Pinheiro adiciona que, especialmente ao findar do século 19, “em razão da paulatina inserção de regiões brasileiras no mercado internacional” se fortaleceu no seio das elites locais a associação “entre valores culturais” franceses, “e as noções vigentes de modernidade e de civilização, manifestados nos costumes, nas artes, na moda […] [e na] arquitetura” (36), a qual, segundo palavras da autora, era “capaz de evocar/emular paisagens urbanas dignas das metrópoles europeias” (37). É, portanto, nesse contexto de final de século que se fortalece, no âmbito da arquitetura e do urbanismo nacionais, uma política classificada por Hugo Segawa como “anticolonialista” (38), segundo a qual o arcabouço arquitetônico colonial, então calcado em tons barrocos e mouriscos, estava associado ao atraso e à subserviência (39). Neste sentido, em nome da modernização pregada pela Ordem e pelo Progresso, a República levou essa política dita “anticolonialista” ao extremo, incentivando de maneira mais incisiva e em maior escala o apagamento de quaisquer reminiscências arquitetônico-urbanísticas associadas ao mundo colonial.

Na capital paulista, por exemplo, Annatereza Fabris destaca que, de 1885 até 1910 foram demolidos “quase todos os exemplos da arquitetura colonial, entre os quais as igrejas do Colégio, de Santa Ifigênia, de São Bento e a primitiva Sé” (40). A cidade buscava adquirir uma feição construtiva afrancesada, segundo a estética do urbanismo sanitarista parisiense, encabeçado pelo Barão de Haussmann. Entretanto, o reflexo mais significativo dessa “iconoclastia anticolonial” brasileira se deu na modernização do Rio de Janeiro ocorrida entre 1900 e 1906, durante a administração do prefeito Francisco Pereira Passos.

Capital da República, o Rio de Janeiro era a vitrine que expunha a modernização republicana a toda a nação, ditando as últimas tendências emprestadas da França, ou seja, o baluarte da modernidade à época (41). Por esse viés, ao longo da primeira década do século 20, a cidade sediou duas exposições nacionais: a Exposição comemorativa do IV Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, e o Centenário da Abertura dos Portos às Nações Amigas, em 1908. Tais certames, de caráter nacionalista, pretendiam exaltar o progresso científico-tecnológico pátrio a partir da mostra de produtos da indústria brasileira, bem como da arquitetura com a qual se idealizava o cenário desse “Brasil moderno” no início do século. Herschmann e Pereira corroboram este acontecimento ao defenderem que:

“A cidade, com sua organização físico-espacial, seus rituais de ‘progresso’ — como no caso das exposições nacionais e internacionais — passa a ter um caráter pedagógico. Torna-se símbolo por excelência de um tempo de aprendizagem, de internalização de modelos. Assim, quando estes especialistas-cientistas se propunham a reformar, a organizar, mesmo que em nível superficial, a esperança que tinham era de que essa projeção externa, pública, citadina, pudesse atingir e orientar os indivíduos” (42).

A abertura da avenida Central em 1904, no Rio de Janeiro, ilustra bem essa “ambição pedagógica modernizante”, quando a prefeitura carioca promove um concurso de fachadas para o local, a fim de “servir de guia ou de modelo ás [construções] que deviam ser feitas pelos proprietarios e compradores de terrenos daquella nova via publica” (43).

A cidade de São Paulo, por sua vez, seguindo o exemplo carioca, promoveria mais tarde, em 1917, um concurso para a construção de um monumento comemorativo à Independência do Brasil, situado no Bairro do Ipiranga. Esse certame por si só apressaria a abertura da avenida da Independência (44), que comunicava o aludido bairro com o centro da cidade, seguindo os mesmos moldes modernizantes da avenida Central carioca.

Avenida Central, Rio de Janeiro
Foto José dos Santos Affonso, ca. 1905–1915 [Wikimedia Commons]

Antiga avenida da Independência, atual Dom Pedro I, São Paulo
Foto de Werner Habekorn, ca. 196? [Wikimedia Commons]

Buscava-se, com tais concursos, conferir uma imagem moderna a essas cidades, inserindo-as dentro dos parâmetros de aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade internacionais, por meio da construção de uma identidade nacional à francesa, o qual era entendido como o padrão que melhor refletia o anseio republicano de ser/parecer moderno naquele início de século. Nesse sentido, quaisquer expressões artísticas ou arquitetônicas que não remetessem aos tempos coloniais, eram consideradas modernas.

Ao contrário dessa perspectiva anticolonial, que visava o apagamento e esquecimento de quaisquer elementos do passado colonial português, a estética neocolonial, por sua vez, não negaria as influências portuguesas, mas sim buscaria referências morfológicas no mundo colonial português, para, assim, fazer releituras na nova realidade do Brasil independente do século 20. Diante do exposto, a arquitetura neocolonial deve ser entendida como uma dessas expressões arquitetônicas modernas, mas que vai questionar, a partir da segunda década do século 20, aquele ideal iconoclasta “anticolonialista” (45), trazido pelo afã modernizador da República. Por essa ótica, o neocolonial contradiz o princípio da modernidade enquanto “antitradição” (46), na medida em que busca, na própria tradição colonial, o sentido de uma “modernidade nativa” (47). Isto porque, o Neocolonial, enquanto fenômeno latino-americano, pregava “o retorno de uma tradição arquitetônica nacional” (48). Nesses termos, entendia-se, de um lado, que a citada tradição residia na cultura construtiva pré-colonial dos povos autóctones da América; do outro, que tal tradição teria iniciado com a aclimatação da cultura construtiva trazida à América pelos colonizadores ibéricos à época da colonização. O fato é que, quando o neocolonial pregava o retorno de uma tradição arquitetônica nacional, considerava-se que essas tradições haviam sido interrompidas em função do processo de modernização vivenciado pelas nações latino-americanas a partir de finais do século 19 (49).

No Brasil, a arquitetura neocolonial, desenvolve-se de um desdobramento do processo de modernização republicana, o qual Herschmann e Pereira identificam como a “construção da modernidade nativa” (50), rota a partir da qual aquele nacionalismo republicano passaria a reivindicar a “configuração […] de uma [nova] ‘identidade nacional’”, não mais inspirada na França, mas “calcada sobre a afirmação da ‘força nativa’” (51).

O conceito dessa aludida modernidade converge para aquilo que Le Goff teorizou como processo de “modernização tateante” (52). Para explicar esse conceito, o referido autor toma como estudo de caso a colonização da África Subsaariana, identificando nesse processo, inicialmente, dois elementos de tensão: de um lado do ringue, o ideal moderno trazido pelos colonialistas europeus, que não se adaptou à realidade das nações africanas; do outro, o “atraso histórico” daquelas nações, a necessidade de acertar seus ponteiros com o mundo dito “civilizado”, através do qual a tradição dessas nações era tida como entrave do “progresso”. Le Goff ainda explica que, devido a essa tensão, tateia-se para “encontrar no ‘moderno’ o que convém à África”, estabelecendo “um equilíbrio, especificamente africano, entre tradição e modernização” (53).

Isto posto, a arquitetura neocolonial no Brasil, reflete aspectos de uma “modernização tateante”, na medida em que seleciona, cosmetiza e oblitera matizes do passado colonial para compor o seu repertório formal moderno. Ou seja, conforme afirma Ramon Brandão (54), “todo passado colonial do Brasil assim como sua arquitetura, estavam repletos de matizes, mas somente alguns deles seriam absorvidos” (55). Por tal perspectiva, houve uma seleção dos matizes que pudessem “ressaltar os aspectos positivos, heroicos, românticos, e afetivos” dessa arquitetura colonial, aproveitando-se da atmosfera nacionalista, inflada com a Proclamação da República. Afinal, não era pressuposto da expressão neocolonial recuperar, em pleno século 20, valores patriarcais do século 16, refletidos na arquitetura em peças como: alcovas, camarinhas “para reclusão quase monástica de moças solteiras”, gineceus (56) e senzala (57). Esta seleção, conforme corrobora Carlos Kessel (58), se dá em torno da recuperação “de elementos arquitetônicos, na qual ocorre a glorificação da cultura produzida pela aristocracia rural, apontada como expressão máxima da nacionalidade” (59). A partir de então opera-se a cosmetização desses matizes selecionados, isto é, o processo de releitura e adaptação do repertório arquitetônico colonial para torná-los superficialmente atrativos à era industrial (60).

É o caso, por exemplo, da residência do médico pernambucano José Marianno Filho, o Solar Monjope, que pode ser considerado um baluarte da arquitetura neocolonial brasileira. A edificação mesclava diversos elementos construtivo-decorativos, resgatados de construções coloniais autênticas, com reproduções de peças inspiradas diretamente no vocabulário barroco jesuítico. Este vocabulário deveria ser, segundo os ideais do médico pernambucano, o cânone para inspiração de toda arquitetura no Brasil. Neste sentido, ao definir esse recorte estético bem preciso, frente à gama de linguagens arquitetônicas que se fizeram presentes ao longo do período colonial brasileiro (61), evidencia-se a seleção criteriosa que o médico operava para composição de um estilo “novo” (62), artificial ou cosmetizado, capaz de refletir uma identidade nacional, calcada no mundo português.

Solar Monjope
Foto José Marianno Filho, 1940 [Wikimedia Commons]

Considerações finais

A partir do que foi visto, a construção da consciência nacional, típica dos anos iniciais da República ao adentrar o século 20, estava intimamente ligada ao reconhecimento do Brasil enquanto Estado soberano. Essa soberania, por sua vez, exigia da parte dos republicanos a construção de uma nova imagem do país, que deveria ser visto e entendido, a partir de então, não apenas como uma nação independente, mas sobretudo moderna (63), ou seja, com os ponteiros ajustados às nações ditas civilizadas. Configurava-se, dessa forma, o ideal nacionalista brasileiro, o qual fomentava uma política anticolonialista, segundo a qual quaisquer reminiscências do passado português passariam a ser consideradas símbolos de atraso e de subserviência, devendo, portanto, serem apagadas.

Diante desse quadro, a arquitetura neocolonial brasileira desponta como um questionamento a essa política modernizante anticolonialista, e propõe uma mudança de paradigma acerca daquela modernidade em curso. Essa mudança se dá a partir de um apelo discursivo à memória (64), lançando mão de um revisionismo seletivo e cosmetizado do passado colonial, de modo a desenvolver um estilo arquitetônico nacional. Através desse estilo, intentava-se afirmar, na arquitetura brasileira, uma marca ou feição própria do país.

Nesse contexto, considerando que, de acordo com Roberto Segre, a “[re]apropriação do vocabulário colonial” suscite um questionamento “puramente estilístico e decorativo, [ela] representava uma posição de rejeição e questionamento do classicismo cosmopolita”, o que abriu, por sua vez, “uma perspectiva de renovação a qual lhe permitiu vincular-se ao movimento moderno” (65). Ora, ainda segundo este autor “em diversos países [latino-americanos] os protagonistas fundamentais da vanguarda arquitetônica [‘racionalista’] aplicaram preceitos do neocolonial em suas primeiras obras” (66).

Esse processo de reapropriação reflete aspectos de uma “invenção de tradição”, termo proposto por Erick Hobsbawn e Terrenece Ranger (67) na medida em que estabelece uma conexão com o passado arquitetônico como afirmação identitária de um povo. Também reflete tons de uma “invenção de objetos históricos”, a qual, segundo o historiador brasileiro Arno Wehling se dá a partir da (re)descoberta de um objeto pré-existente que “jazia ignorado e desprezado”, vindo à tona por meio do discurso (68). No caso do Brasil, este objeto pré-existente seria a própria arquitetura colonial, relegada ao ostracismo nos primeiros anos da era republicana e posteriormente ressignificada enquanto expressão de identidade nacional.

notas

NE — Este artigo é produto de dissertação de mestrado produzida sob orientação de Ivan Cavalcanti Filho e defendida no dia 25 de março de 2022. LUCENA, Emanoel Victor Patrício de. Arquitetura neocolonial: uma análise arqueológica do discurso nos cenários paulistano e carioca. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PPGAU UFPB, 2022.

1
LEMOS, CARLOS. El estilo que nunca existió. In AMARAL, Aracy (org.). Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos. São Paulo, Fondo de Cultura Economica, 1994, p. 147. Grifo dos autores.

2
KESSEL, Carlos. Estilo, discurso e poder: a arquitetura neocolonial no Brasil. História Social, n. 6, Campinas, 1999, p. 122. Grifo dos autores.

3
FOUCAULT, Michel [1966]. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 2000; FOUCAULT, Michel [1969]. A arqueologia do saber. 7ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008.

4
CAMPOS, Victor José Baptista. Apud FARIAS, Fernanda de Castro. Cidade em expansão, arquitetura em transformação: o Art Déco na João Pessoa de 1932–1955. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PPGAU UFPB, 2011, p. 29.

5
Idem, ibidem.

6
Cf. ABASCAL, Eunice Sguizzardi; BRUNA, Gilda Collet; ALVIM, Angélica Benatti. Modernização e modernidade: algumas considerações sobre as influências na arquitetura e no urbanismo de São Paulo no início do século 20. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 085.05, Vitruvius, 08 Jun 2007 <https://bit.ly/3E6JlEq>.

7
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo, Edusp, 2011, p. 15.

8
HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20–30. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 29.

9
TOURRAINE, Alain. Apud MACEDO, Maria de Lurdes de Souza. A modernidade para além da utopia tecnológica. Dissertação de mestrado. Braga, Universidade do Minho, 2007.

10
Idem, ibidem, p. 12.

11
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 132. Grifo dos autores.

12
Cf. SMITH, Anthony. Apud ROESLER, Carlos Eduardo Noronha. Nacionalismo, tradição e modernidade. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 2008, p. 60.

13
Cf. KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Cadernos liberais: patriotismo e nacionalismo, v. 3, São Paulo, Massao Ohno Editor, 1997, p. 11.

14
LE-GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, Editora da Unicamp, 1990, p. 192–272.

15
Para mais informações acerca dos conceitos de Ocidente e ocidentalização. Cf. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Oriente, ocidente e ocidentalização: discutindo conceitos. Revista da Faculdade do Seridó, v. 1, n. 0, jan./jun. 2006 <https://bit.ly/3so4De7>.

16
Cf. HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Op. cit.

17
Idem, ibidem, p. 26.

18
A principal base teórica para lutar contra essas referidas mazelas sociais, e atingir aquele ideal de nação almejado por essa nova elite intelectual, baseava-se em correntes cientificistas calcadas, sobretudo, no darwinismo social, segundo a teoria do filósofo, biólogo e antropólogo inglês Herbert Spencer, e no positivismo francês. Cf. SCEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In SCEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. Volume 3. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 14.

19
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

20
SCHWARCZ, Lilia. Imaginar é difícil (porém necessário). In ANDERSON, Benedict. Op. cit., p. 16–17.

21
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Op. cit., p. 11.

22
Idem, ibidem, p. 11.

23
BRASIL. Constituição [1891]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, 1891 <bit.ly/47EirS5>.

24
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Op. cit., p. 16. Grifo dos autores.

25
Idem, ibidem.

26
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, v. 5, n. 10, Rio de Janeiro, p. 200–212, 1992.

27
Idem, ibidem, p. 204.

28
ANDERSON, Benedict. Op. cit., p. 33.

29
POLLAK, Michael. Op. cit., p. 204.

30
Idem, ibidem, p. 242.

31
ANDERSON, Benedict. Op. cit., p. 34.

32
SCHWARCZ, Lilia. Op. cit., p. 12.

33
POLLAK, Michael. Op. cit., p. 204.

34
SCHWARCZ, Lilia. Op. cit., p. 19.

35
BRAZIL. Decreto de 12 de agosto de 1816: concede pensões a diversos artistas que vieram estabelecer-se no paiz. Collecção das Leis do Brazil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1890, p. 77–78.

36
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Origens da noção de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Risco. Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, n. 3, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2006, p. 4–5 <https://bit.ly/3KY5qc7>.

37
Idem, ibidem.

38
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900–1990. 2ª edição. São Paulo, Edusp, 2002. p. 29–40.

39
Cf. REIS FILHO, Nestor Goulart. O neoclássico da Academia Imperial. Quadro da arquitetura no Brasil. 9ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2000, p. 113–122.

40
FABRIS, Annateresa. Arquitetura eclética: o cenário da modernização. Anais do Museu Paulista, 1993, p. 282–283.

41
SALIBA, Elias. Cultura. In SCHWARCZ, Lilia. História do Brasil nação: 1808–2010. Volume 3. Rio de Janeiro, Objetiva, 2012.

42
HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Op. cit., p. 27. Grifo dos autores.

43
Concurso de fachadas para a avenida Central. Renascença, n. 2, Rio de Janeiro, abr. 1904, p. 66.

44
Atual avenida Dom Pedro I.

45
SEGAWA, Hugo. Op. cit.

46
TOURRAINE, Alain. Op. cit.

47
HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Op. cit.

48
NATAL, Caion Meneguelo. A arquitetura neocolonial de Ricardo Severo e José Marianno. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 26, n. 38, Belo Horizonte, 2019, p. 110.

49
Para maiores informações acerca desse processo migratório, ver LANZA, André Luiz; LAMOUNIER, Maria Lucia. A América Latina como destino de imigrantes: Brasil e Argentina (1870–1930). Brazilian Journal of Latin American Studies, 2015, p. 90–107 <https://bit.ly/3E6th5I>.

50
HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Op. cit., p. 29.

51
Idem, ibidem.

52
LE-GOFF, Jacques. Op. cit., p. 185.

53
Idem, ibidem, p. 187. Grifo dos autores.

54
BRANDÃO, Ramón. Arquitetura neocolonial: arquitetura da felicidade. Juiz de Fora, Funalfa, 2013.

55
Idem, ibidem, p. 33.

56
Parte da habitação reservada às mulheres.

57
FREYRE, Gilberto [1933]. Casa grande e senzala. 51ª edição. São Paulo, Global, 2006, p. 43.

58
KESSEL, Carlos. Op. cit.

59
Idem, ibidem, p. 69.

60
BRANDÃO, Ramón. Op. cit.

61
O historiador de arte inglês John Bury, no livro Arquitetura e arte no Brasil colonial (2006), cita pelo menos nove estilos que foram produzidos ao longo da época colonial no Brasil, entre outros, o maneirismo, o estilo jesuítico, o estilo chão, além do barroco e do neoclássico. Bury sublinha que, em certa medida, ainda há muita subjetividade e imprecisão entre esses termos estilísticos, isto porque “características específicas de edifícios podem receber graus de avaliação distintos, segundo o crítico que as analisa”. Cf. BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil colonial. Brasília, Iphan/Monumenta, 2006, p. 207.

62
De acordo com Quatremère de Quincy, no Dictionnaire Historique d’Architecture, a palavra “estilo”, em sua etimologia, remete ao vocábulo latino stylus, que designava, incorrendo em grandes simplificações, uma haste pontiaguda destinada a escrever sobre folhas revestidas de cera na antiguidade. Tratava-se do ancestral do lápis, ou caneta atuais. Por associação a essa ideia de escrita, o “estilo” passou a designar o caráter, ou “fisionomia” particulares, relativos a textos de determinado escritor, escola literária, país, época etc. Assim, seguindo esta mesma associação, o autor conclui que o “estilo” “no âmbito dos monumentos e das artes construtivas, indica aquilo que forma, de maneira inconfundível, o traço característico do gosto local de cada civilização”. Cf. QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine. Dictionnaire historique d'architecture: comprenant dans son plan les notions historiques, descriptives, archéologiques. Tomo 2. Paris, Librairie d’Adrien Le Clere et Cie, 1832, p. 502. Grifo dos autores.

63
ANDERSON, Benedict. Op. cit.

64
Cf. NORA, Pierre [1984]. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, n. 10, São Paulo, 1993, p. 7–28.

65
SEGRE, Roberto. América Latina: fim de milênio. São Paulo, Studio Nobel, 1991, p. 123–124.

66
Idem, ibidem, p. 124.

67
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence [1997]. A invenção das tradições. 6ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008, p. 9.

68
WEHLING, Arno. Apud ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Curitiba, Appris, 2019, p. 23.

sobre os autores

Emanoel Victor Patrício de Lucena é arquiteto pela Universidade Federal da Paraíba (2017) e mestre em arquitetura e urbanismo pela mesma instituição (2022). Atua nas áreas de teoria e história da Arquitetura e do Urbanismo. Publicou “De Haussmann a Le Corbusier: o processo de fragmentação do tecido urbano e a ‘explosão’ da quadra na cidade moderna”, no periódico Resenhas Online (Vitruvius, 2019).

Ivan Cavalcanti Filho é professor associado do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba e PhD pela Oxford Brookes University (2009). É co-organizador do livro Entre o rio e o mar: arquitetura residencial na cidade de João Pessoa (Editora UFPB, 2016), e autor de "Segregação ou Integração? A galilé nos conventos franciscanos no Nordeste do Brasil colonial, e São Benedito e sua devoção nos conventos franciscanos do Nordeste colonial", no periódico Arquitextos (Vitruvius, 2020).

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