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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
O artigo explora as experiências e registros de viagens de Oscar Niemeyer durante quatro grandes viagens pela Europa e Oriente Médio, documentadas no livro “Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-66”, lançado em 1968.

english
The article explores the experiences and travel records made by Oscar Niemeyer during four great trips through Europe and the Middle East, which were documented in the book “Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-66”.

español
El artículo explora las vivencias y registros de viaje realizados por Oscar Niemeyer durante cuatro viajes por Europa y Medio Oriente, los cuales fueron documentados en el libro “Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-66”.


how to quote

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Quase memória. Registros de viagem de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 284.00, Vitruvius, jan. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.284/8961>.

Foto da capa do exemplar n. 2.920 do livro
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

As viagens de Oscar Niemeyer fazem parte de uma ampla pesquisa sobre sua trajetória. Na condição de um arquiteto em trânsito é possível explorar suas experiências e deslocamentos, seu modo de viajar, além de também poder especular sobre as experiências de projetar e outros contextos culturais, outras paisagens e outras tecnologias e materiais. As relações do arquiteto e suas viagens são um campo de reflexões que contêm nexos sobre trajetória, historiografia e projeto. O tema das viagens de estudos e das viagens de arquitetos possui amplas abordagens. Tratando especialmente de Niemeyer, destacamos os artigos já produzidos: “Niemeyer for export: arquitetura e trajetória de Oscar Niemeyer mundo a fora” (1) e o artigo “As viagens de Oscar Niemeyer” (2). O primeiro artigo realiza uma abordagem panorâmica sobre a obra de Niemeyer produzida fora do Brasil. Já o segundo artigo explora a primeira viagem do arquiteto para Europa, em meados dos anos 1950, quando ele realiza o seu Grand Tour. A relevância desta viagem à Europa é tanta, que este seguindo artigo já foi ampliado para ser publicado oportunamente.

Oscar Niemeyer já possuía reconhecimento internacional desde o pavilhão brasileiro na Feira Mundial de Nova York (1938-1939), incluindo sua destacada presença na exposição Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1943 (1942-1943) e o projeto para a sede da ONU (1947-1949), além dos livros de caráter monográfico, publicados por Stamo Papadaki também nos Estados Unidos. Depois da inauguração de Brasília, entre encomendas oficiais, demandas particulares e prospecções de novos projetos, Niemeyer realmente se lança em uma trajetória profissional internacional, projetando com regularidade na Europa, África e Ásia, ratificando sua dimensão transcontinental. Apesar disso, Niemeyer constrói um discurso mitificador que reforça o caráter de um personagem que, tal qual Ulisses, sai de seu lugar de origem, desloca-se, percorre territórios, passa por embates —físicos, existenciais etc. — estabelece novas conquistas, para então retornar, heroicamente, ao seu ponto de partida.

Viajar é preciso

Tomada como metáforas para processos de descoberta e transformação, mas também como experiências para ampliar a visão de mundo, as viagens se configuram como um tema vasto para pesquisas. A abordagem de Fernanda Peixoto recobra as categorias com que as viagens podem ser tratadas, incluindo viagens de estudos, viagens de pesquisa e formação, viagens de passeio e turismo, viagens exteriores e viagens interiores, além de viagens livrescas e expedições (3). Ou seja, a viagem como tema impõe uma reflexão ampla, incluindo as viagens dos arquitetos. Há diferenças do viajar no século 20 que já são estudadas na tensão entre profissão e vocação, superando o caráter iniciático do viajar romântico. O objetivo da abordagem de Peixoto é rever as trajetórias profissionais com a ajuda das viagens. Ou seja, a partir das viagens, ela propõe correlações com os contextos específicos em que foram realizadas. Por tudo isso, torna-se estratégico estudar e explorar as viagens de Oscar Niemeyer para pensar sobre sua trajetória. Para tanto, interessa o conjunto de suas viagens, deslocamentos e experiências mundo a fora.

Viajar é uma atividade integrada à dinâmica da vida contemporânea, proporcionando experiências culturais diretas para o viajante. As viagens são muito mais do que meros deslocamentos entre dois ou mais lugares, transgredindo fronteiras, alargando territórios e ampliando horizontes sobre a compreensão e o convívio do viajante com outras culturas, sociedades, línguas, valores e paisagens. A viagem, como tema de pesquisa transversal, pode ser tratada por miríades de abordagens, desde os itinerários e peregrinações, as viagens marítimas, o Grand Tour, as viagens científicas, até o turismo de massa e em larga escala.

Na conhecida abordagem de John Urry, o turismo é abordado como uma atividade econômica organizada e sistematizada, completamente inserida no mundo contemporâneo em sua escala massificada de consumo e trocas simbólicas (4). Para ele, o turismo de massa torna-se mera atividade de lazer, contrapondo-se às atividades cotidiana a ao trabalho. Contudo, Urry argumenta que o turismo está assumindo cada vez mais as características do Grand Tour, pois o contraponto trabalho/lazer está sendo relativizado e reduzido, já que as atividades de turismo estão se conectando cada vez mais com as atividades afins de instrução e aprendizagem. Afinal, uma viagem é construída pelos próprios deslocamentos e percursos sobre a cidade e sobre territórios e lugares, que o viajante pratica por meio da experiência de estar plenamente na condição em trânsito.

De acordo com Eric Leed, a viagem e experiência são termos intimamente ligados porque é uma experiência genuína, que também transforma a pessoa que a pratica (5). A ideia de experiência é também um tipo de provação, um teste que mede as verdadeiras dimensões da natureza da pessoa, descrevendo a concepção mais geral e antiga dos efeitos da viagem sobre o viajante. Viajar implica em definir uma escala local, mapear o território e definir limites, que são demarcações feitas por aqueles que estão viajando (6). Para Leed, viajar é uma força central nas transformações históricas, porque engendra uma autoconsciência coletiva ao aproximar os viajantes com diferentes padrões, com outros referenciais, outras práticas culturais, outras paisagens, outras cidades.

Os passaportes de Oscar Niemeyer

O Grand Tour é o paradigma das viagens de conhecimento, integrada a um processo de educação e amadurecimento que resulta em uma experiência do contato direto com civilizações, cidades, paisagens ou tesouros e relíquias da cultura ocidental. Trata-se de uma viagem concebida para proporcionar vivências, adquirir escala do mundo e refinar os parâmetros de civilidade. O deslocamento pelos territórios, a vivência da mobilidade e a condição providencial de estar em trânsito, cruzando fronteiras entre o conhecido e o desconhecido, são partes intrínsecas de um exercício que reifica um senso de pertencimento cosmopolita. O chamado Grand Tour passará a ser, desde o século 18, um objetivo de vida, a fim de consagrar uma experiência intelectual de formação, legitimando prestígio e a construção de um capital simbólico, em que a viagem é um prêmio, ou se constitui como um momento de virada e inflexão na trajetória intelectual, consagrando diferentes etapas de uma vida. A Viagem a Itália de Johann Wolfgang von Goethe (7) se converteria numa espécie de guia para se aventurar por este universo cultural. Roma, Firenze, Milão e Veneza —acrescidas das ruínas de Pompéia e Herculano— se apresentam como destinos a serem experimentados em longas temporadas do Grand Tour. Ao longo dos séculos 19 e 20, este corolário de destinos conexos à formação de um arquiteto seria ampliado, incluindo Londres, Paris, Berlim, Nova York…

As viagens dos arquitetos se constituem como um assunto frequente, mas talvez ainda pouco explorado pela historiografia brasileira. Arquitetos viajam por motivos diversos, desde tratar de encomendas, ou fugas de situações políticas adversas. Na mesma chave de abrangência do Grand Tour, as viagens de formação são uma constante na trajetória de arquitetos, incluindo o duplo caráter de amadurecimento pessoal e profissional que tais deslocamentos podem configurar. A condição de trânsito para um arquiteto se apresenta como oportunidade para conhecer edifícios, espaços, materiais, paisagens e ambientes em diversas escalas. Trata-se de um exercício extraordinário, ou seja, uma experiência para além da ordem do cotidiano.

No caso de Oscar Niemeyer, a viagem para a Europa, em 1955, é uma oportunidade para ele ter contato direto com arquiteturas e espaços que são importantes na formação de um arquiteto. Esta experiência se torna ainda mais significativa quando inserida numa linha cronológica, porque a viagem precede Brasília. Yves Bruand registra o impacto e a importância desta viagem na transformação da atuação profissional do arquiteto, detonando um processo de autocrítica, concisão formal e reforço do caráter plástico de sua arquitetura (8). Apesar do registro historiográfico, o próprio Niemeyer pouco contribui para esclarecer o que ocorreu nesta viagem que durou meses, em que ele passou por Roma, Florença, Veneza, Lisboa, Paris, Praga, Berlim, Varsóvia e Moscou. Em 1958, Niemeyer afirmaria: “depois que voltei da Europa, após haver […] viajado de Lisboa a Moscou, muito mudou minha atitude” (9). Bruand reitera que houve uma “virada decisiva de 1955” na obra de Niemeyer, valorizando indiretamente os efeitos a viagem para a Europa (10). Esta viagem é um ponto de inflexão na arquitetura porque proporciona o contato direto com novas escalas edilícias, incluindo a experimentação de espaços e configurações urbanas diversificadas, o convívio com paisagens e ambientes citadinos de estratos temporais diversos, a observação da implantação, a presença dos edifícios na paisagem, bem como tomar contato com outras soluções técnicas e questões tectônicas. Ou seja, a viagem é o fator transformador de sua maneira de atuar. Portanto, esta viagem é o Grand Tour de Oscar Niemeyer!

Quase memória: nexos a recuperar

Apesar da importância desta viagem à Europa, o arco temporal de Niemeyer sobre sua trajetória demarca Brasília como ponto de múltiplas inflexões e como ponto de partida de deslocamentos Brasil-mundo. Neste sentido ele afirmaria que Brasília representou uma grande oportunidade em sua vida profissional, mas as viagens e o trabalho na Europa, no Oriente Médio e no norte da África lhe proporcionaram uma experiência tão extraordinária, que talvez nenhum arquiteto tenha vivido. Assim, depois de estudar e aprofundar as especificidades do Grand Tour de Oscar Niemeyer, interessa analisar as questões de sua trajetória a partir do livro de sua autoria Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-1966.

Ao acompanhar os relatos sobre esses itinerários de Niemeyer neste livro, é possível especular sobre a tensão entre profissão e vocação, além de apurar como e o quanto o ato de viajar —com suas experiências de deslocamento e formação dos saberes sobre o mundo— interfere na atuação dele. Há uma correlação entre tais experiências de deslocamento e a formação dos saberes, pois uma viagem gera produções por meio de ensaios, relatos, fotografias, desenhos, correspondências, texto jornalísticos, anotações… ou projetos de arquitetura e urbanismo. Diferentes suportes promovem, divulgam e colocam em circulação os resultados da experiência de uma viagem. No caso de Oscar Niemeyer, com os relatos deste livro, esta tensão entre trajetória profissional e as experiências das viagens permanece como uma questão em aberto para reflexão, porque com esta experiência valiosa o período entre 1961 e 1966, ele passa a coordenar uma agenda de projetos, além de conhecer muitas cidades e países, nas viagens de trabalho relatadas entre a Europa e o Oriente-Médio. Esta etapa profissional em sua trajetória fica ainda mais dramática nas contingências pós-64, sendo estratégico para Oscar Niemeyer ficar mais afastado do país, permanecendo em longas temporadas de trabalho.

Um livro e muitos registros de viagens

Com o título Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-1966, este livro é uma obra preciosa. Trata-se do segundo livro de sua autoria, sendo que o primeiro livro de Niemeyer foi publicado em 1961, com o título Minha experiência em Brasília”. É um livro aparentemente singelo e discreto, com 102 páginas, com os desenhos característicos de Niemeyer, que nunca foi reeditado, permanecendo fora de circulação. Publicado em 1968, pela Civilização Brasileira, em plena Ditadura Militar, os exemplares são numerados, sugerindo a tiragem da edição. A numeração 2.920 indica uma tiragem da ordem de 3 mil exemplares, o que não é pouco para o mercado editorial brasileiro. A capa do livro tem uma saturação cromática quente de rosa e vermelho, com um círculo vermelho no topo e, na parte de baixo, tem uma fotografia da maquete da Universidade de Haifa bem contrastada na cor da tinta preta. Ente eles, a tipografia em branco ressalta o longo título do livro, enquanto a tipografia em preto destaca o nome do arquiteto em caixa alta, tensionando o campo visual da capa. O próprio título do livro já adianta que se trata da experiência de Oscar Niemeyer nas viagens realizadas entre 1961 e 1966, abordando as peripécias e os resultados práticos decorrentes delas. É um livro sobre viagens e sobre trabalho.

O título revela uma ambiguidade, pois ao usar a palavra quase para dimensionar a memória, Niemeyer apela para um recurso cuidadoso sobre algo eventualmente preterido na narrativa. Ao mesmo tempo, ao usar a palavra memória, ele recobra ao leitor que se trata de uma experiência própria, aproximando-se deste leitor. O assunto das viagens fica evidente, mesmo sem indicação de destinos e itinerários, mas impressiona o período de cinco anos em que este assunto será abordado, entre 1961 e 1966. As abas laterais da capa e contracapa contêm um texto assinado pelo principal engenheiro-calculista das obras de Brasília, Joaquim Cardozo, que retoma uma conhecida frase de Perret: “Il faut faire chanter le point d´appui”. Já na apresentação livro, Niemeyer confirma que o texto é voltado para arquitetos e estudantes, destacando seu aspecto didático, por abordar temas de projeto, obras de arquitetura e suas próprias soluções formais. O tom de informalidade do texto, pretendendo ser uma conversa com o leitor já aparece aqui bem consolidado. Trata-se de um recurso que será recorrente em outros textos de sua autoria. O texto possui uma escrita direta e bastante fluida, que convence o leitor sobre a validade dos argumentos que são expostos sobre assuntos e problemas construtivos que são complexos.

No itinerário do próprio livro, a falta de um índice deixa o leitor à deriva, sem saber das treze partes com tamanhos irregulares que estruturam a leitura por vir. Ao folhear o livro, destacam-se os desenhos de Niemeyer que se articulam com o texto. Um caderno com cinco folhas sem numeração, entre as páginas 58 e 59, traz fotografias em formato preto e branco das maquetes dos projetos elaborados pelo arquiteto. Não há indicação de bibliografia consultada, mas na última página há a indicação da data da revisão final do livro: 15 de junho de 1967. É curioso notar que nesta última página Niemeyer também aponta a posse do General Costa e Silva com tom de esperança sobre mudanças possíveis no comando militar instalado para governar o país em 1964.

Foto do exemplar nº. 2.920 do livro
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

Abrindo a partes do livro, no capítulo 1 está justamente a demarcação de Brasília como um ponto fundamental em sua trajetória profissional, cujos desdobramentos são novas encomendas e crescentes demandas internacionais por projetos de arquitetura e urbanismo. No capítulo 1, Niemeyer afirma que as viagens que ocorreram neste período abordado pelo livro não se constituem apenas como uma viagem profissional convencional para “resolver um problema de arquitetura” (11). Trata-se de uma experiência mais profunda em que ele, auxiliado por um assistente e um maquetista, passa a circular pelo mundo para encarar temas projetuais complexos em tempo recorde! Hans Müller e Guy Dimanche são nomeados seus companheiros e colaboradores neste ciclo de trabalhos no exterior. Hans Müller é um alemão que fugiu de Berlim após a Guerra e que trabalhava no escritório de Niemeyer, sendo “o auxiliar mais eficiente” (12) e que melhor se adaptou ao ritmo de trabalho. Guy Dimanche é um francês que havia morado no Brasil e que é reencontrado nesta etapa profissional. Niemeyer não deixa de apontar que tais viagens tem um caráter contraditório com a sua ojeriza a avião e os impactos em sua vida familiar. Contradizendo o próprio título e o período de viagens indicado no título, Niemeyer informa que irá tratar também da viagem de 1947, quando projetou a ONU em Nova York; abordará a viagem de 1954 para Venezuela, quando projeta um museu e vai retomar a viagem para Europa, quando projeta um edifício residencial em Berlim. Daí, finalmente ele abordará as viagens e experiências mundo a fora após Brasília.

É importante considerar o arco histórico que está sendo forjado por Niemeyer sobre sua própria trajetória, uma vez que os livros até então publicados sobre ele destacavam as obras e os projetos de arquitetura. Estes ajustes cronológicos feito neste livro no capítulo 2 passam a funcionar como um preâmbulo que justificam e ampliam o potencial do ciclo de trabalhos no exterior que o livro interessa tratar. Curioso é marcar Nova York/1947 como ponto desta abordagem, quando a primeira temporada novaiorquina é de 1938-1939, acompanhado por Lucio Costa para projetar o pavilhão brasileiro para a Feira Mundial. Em 1947, de volta a Nova York, o projeto do complexo projeto da sede da ONU coloca Niemeyer ao lado dos grandes arquitetos, numa oportunidade de desenvolver o seu projeto e trabalhar em parceria com o próprio Le Corbusier, com que conviveu ao longo dos sete meses que lá permaneceu. De maneira sintética, em sete linhas de texto, Niemeyer explica suas viagens para Venezuela e Alemanha! Em 1954, a convite de Inocêncio Palácios, o arquiteto ficou lá por um mês para projetar o conhecido Museu de Caracas, que não foi construído, mas foi bastante publicado, assim como o edifício residencial projetado em Berlim Ocidental, contribuindo para a reconstrução da cidade.

Articulações entre desenho e texto, como é recorrente nos livros de Niemeyer
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

Fotografias de maquetes do ICC-UnB e da ONU
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

Projetar é preciso, viajar também

No capítulo 3 Oscar Niemeyer aponta a paralisia no ritmo de trabalho, na encomenda de novos projetos e no andamento das obras de Brasília depois da saída do Presidente Juscelino Kubistchek. Niemeyer se refere à perda de legitimidade que JK lhe conferia para resolver tudo com enorme independência e autonomia. As mudanças decorrentes do novo governo implicariam em redução de trabalho nos canteiros da nova capital, abrindo sua prancheta para encomendas de outras partes do mundo. Ao longo das décadas seguintes, este argumento será reiteradamente ampliado, assinalando a perda de oportunidades de trabalho com presença dos militares no poder, justificando também os seus constantes afastamentos do país. Entretanto a historiografia recente comprova que Niemeyer e suas equipes desenvolviam projetos complexos ao mesmo tempo, como é o caso do Palácio Itamaraty para sediar o Ministério das Relações Exteriores que seguiu sendo projetado, construído e mobiliado entre 1959 e 1970 (13).

Após a saída de Jânio Quadros e a posse de João Goulart na Presidência da República, Niemeyer finalmente pode partir para o Líbano, iniciando este ciclo de projetos alhures. Os contatos diplomáticos de Niemeyer ainda precisam ser devidamente pesquisados, pois nomes de embaixadores e outros membros do corpo diplomático aparecem de modo difuso em seus textos. Assim, o capítulo 4 se inicia em 1962, quando o Embaixador Bolivar de Freitas é o responsável pelo telegrama de Beirute, que confirma o convite para Oscar Niemeyer projetar o recinto da Exposição Internacional Permanente de Trípoli. Niemeyer afirma ter postergado a viagem ao máximo, chegando a Beirute somente em julho de 1962, quando passou cerca de três dias, tempo suficiente para conversar com as autoridades locais e encontrar seu colaborador C. A. Camargo que havia chegado antes para coletar informações e dar base para o desenvolvimento do projeto. Niemeyer não faz comentários sobre a secular arquitetura de Beirute, mas recorda-se da viagem de carro para Trípoli, por uma estrada que margeava o Mar Mediterrâneo. Niemeyer destaca a permanência de dois meses trabalhando no conjunto arquitetônico da feira, apenas com uma escapada para pegar uma praia e fazer uma visita a cidade de Biblos.

Neste vai e vem, entre o mundo e o Brasil, em 1962, Niemeyer volta sua prancheta para os projetos de Brasília, assim que retorna do Líbano. No capítulo 5, ele relata que além do desenvolvimento do projeto para o palácio-sede do Itamaraty, também está envolvido com o desenvolvimento do campus e da arquitetura da Universidade de Brasília. A solução formal de seu principal edifício, o Instituto Central de Ciência prevê dois volumes paralelos com diversos níveis, separados por um jardim, com um formato arqueado, tal qual um bumerangue. Com extensão de cerca de 700m, esta solução recobra a estratégia de solucionar a feira de Trípoli. O campus universitário contempla outas especulações projetuais como o protótipo da unidade de habitação pré-fabricada com módulos empilhados a serem montados com guindastes.

Desenhos de projetos em Brasília: Itamaraty e UnB
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

Ainda em 1963, durante suas atividades na Universidade de Brasília, inclusive como coordenador do curso de arquitetura, Niemeyer receberia das mãos do embaixador russo o Prêmio Lênin. Isso comprova a relativa tolerância ideológica que ainda poderia ser exercitada antes do golpe de 1964. Justamente neste ano, no capítulo 6 o arquiteto nos conta que passaria a maior parte do tempo em Israel, atendendo a demandas de projeto que há muito tempo eram adiadas. Depois de ficar um mês hospedado em Paris, Niemeyer relata que foi para Lisboa a fim de encontrar Hans Müller e seguir viagem para Gana na África, atendendo um convite da Universidade de Acra. De Lisboa, Niemeyer acompanhou o golpe de Estado pelo rádio no Hotel Victória. As notícias recebidas informavam sobre a invasão de seu escritório e as ameaças da nova ordem política o deixaram aflito e revoltado.

Os planos de viagem para Acra foram alterados e Niemeyer aceitou o convite de Xiel Federmann para ir para Israel. Na temporada de seis meses que passou em Tel Aviv, Niemeyer morou no Hotel Dan, às margens do Mar Mediterrâneo e por fim morou no Hotel Dan Carmel, em Haifa. Acompanhado de Hans Müller e Guy Dimanche, Niemeyer trabalhava na sobreloja do hotel, desenvolvendo projetos variados encomendados por Federmann. De sua prancheta saíram o conjunto Nordia, o conjunto Panorama, o hotel Scandinávia, a Universidade de Haifa, o plano para a cidade de Negev, além de uma casa para o próprio Federmann. Niemeyer relata que após uma troca de cartas, o engenheiro Samuel Rawet, que estava na Europa, foi incorporado a equipe, fazendo o cálculo das estruturas e colaborando com seus conhecimentos técnicos. O trabalho foi tão intenso e profícuo que foi realizada uma exposição desses projetos no próprio hotel, Seis meses em Israel”, incluindo os textos explicativos, as pranchas de projeto e as maquetes. Os projetos de arquitetura e urbanismo que foram desenvolvidos são programas complexos e grandes dimensões, com impactos na paisagem e na dinâmica da vida urbana, mesmo quando a argumentação deixa toda explicação muito lógica.

O Conjunto Nordia, que foi o motivo do convite para esta viagem, por exemplo, prevê uma solução mista de escritórios e apartamentos, num arranjo de torres cilíndricas com 40m, 30m e 25m de altura que serão equilibradas com edifícios de quatro pavimentos para lojas e atividades comerciais. A habitação é complementada com escola primária, jardim de infância, centro de puericultura, inclusive o grande jardim suspenso para playground. Toda implantação do conjunto articula seus espaços e o sistema viário, minimizando o impacto de sua inserção. O uso da técnica do concreto armado se articula com os materiais fornecidos pela indústria da construção, possibilitando grandes balanços, flexibilidade nos arranjos internos, uso de ar condicionado, uso de grandes placas de cristal das fachadas e os quebra-sóis. O projeto para a cidade no deserto de Negev, apresentava a mesma complexidade das proposições de elaboração do Plano Piloto de Brasília, enquanto que a Universidade de Haifa seria solucionada com a mesma estratégia de concentração dos usos, destacando como elemento central uma praça seca sob a qual se localizariam restaurantes, bibliotecas, laboratórios, classes e espaços administrativos, e que também articularia o crescimento dos futuros edifícios.

Niemeyer nada reporta sobre o projeto para uma residência para o próprio Federmann, um prisma retangular com pátio interno e varanda, debruçado sobre uma topografia em desnível. Destaca-se o cuidado com as proteções nas aberturas e os recuos para definir áreas protegidas do sol. Niemeyer relata que ao longo desses seis meses ele pouco viajou por Israel, mas reafirma seu encantamento em conhecer o deserto de Negev e a boa impressão da experiência de conhecer o kibutz de Ben-Gurion. Ao fim desse longo período de muito trabalho em Israel, Niemeyer pega um navio em Haifa para retornar ao Brasil.

No capítulo 7, Niemeyer volta a tratar de um período de permanência de cerca de oito meses no Brasil, relatando o interrogatório a que foi submetido assim que chegou, em razão de seus vínculos com o Partido Comunista Brasileiro. Do Rio de Janeiro, Niemeyer informa que foi para Brasília verificar o andamento das obras, o desenvolvimento dos projetos e a situação geral após o golpe. O clima de ameaças, a situação de paralização das atividades profissionais e seu afastamento da Universidade seriam interrompidos por uma nova viagem, quando em junho de 1965 ele embarcou novamente para Haifa e Paris. No capítulo 8, Niemeyer conta muito rapidamente sua passagem por Haifa para tratar de ajustes no projeto da universidade, além de nova encomenda para um complexo arquitetônico de recreação com apartamentos, hotéis, cinemas, bares e até praia artificial. Isso atrasou um pouco sua chegada a Paris, quando poderia ver exposição “Oscar Niemeyer, Architecte de Brasília”, dedicada à sua obra no Museu de Arte Decorativa do Louvre, organizada por Jean Petit e Guy Dupuis.

A exposição apresentava mais de cem projetos, com grande destaque para Brasília, utilizando maquetes fotografias e projeção de imagens. Havia ainda um conjunto de treze grandes painéis com textos e croquis do próprio arquiteto, em que ele explicava a evolução do seu trabalho. Niemeyer aponta o sucesso da exposição que em quinze dias atraiu 15 mil visitantes, incluindo JK, outros amigos que estavam em Paris, além de André Malraux. Durante a estada em Paris, Niemeyer projetou um conjunto urbanístico em Cesaréia, Israel, para Edmond Rothschild, para quem ele também projetaria uma residência que não foi construída. A vida de Niemeyer em Paris estava animada por encontros com brasileiros exilados, como Miguel Arraes. Ao mesmo tempo em que sua estadia proporciona o convite para fazer uma palestra sobre sua obra para os estudantes da Escola de Belas Artes de Paris, também proporciona novas encomendas de projeto. Seu vínculo com o Partido Comunista o colocou em contato com George Gosnat, importante membro com quem discutiria o programa da nova sede do Partido. Curiosamente, nenhuma informação sobre onde mais ele esteve em Paris, que café frequentava, hotel etc., é explorada.

Retornando ao Brasil em outubro de 1965, no capítulo 9, Niemeyer se mostra mais pessimista com a situação política. Mesmo assim, vai para Brasília elaborar o projeto da Casa de Chá, na praça dos Três Poderes, adicionando um lugar semienterrado para prover a praça de infraestrutura indispensável para seus visitantes. Neste período de permanência no Brasil, ele desenvolveu também o plano do Algarve, em Portugal, um grande complexo com hotel, apartamentos, clubes, comércio, igreja etc. Entre deslocamentos Rio-Brasília, Niemeyer comenta o novo interrogatório policial a que foi submetido, interessado em extrair informações que pudessem comprometer JK, questionando sobre o projeto para um apartamento num edifício residencial na Avenida Vieira Souto em Ipanema, projetado por ele em 1962. No capítulo 10, Niemeyer não decola, nem zarpa para lugar nenhum. O capítulo é uma defesa de seu projeto para o aeroporto de Brasília, importante obra na capital, que desta vez não saiu de sua prancheta. Entre tensões políticas e uma extraordinária encomenda não conquistada, Niemeyer argumentará a favor de suas soluções, interrompendo o fluxo narrativo sobre as viagens. Paradoxalmente, o assunto do aeroporto ocupa dez páginas, mas não contribui para o assunto geral do livro.

O capítulo 11 trata da quarta e última viagem à Europa abordada neste livro, em 1966. O destino de Niemeyer é Paris, mas antes ele precisava passar por Lisboa. Em terras lusitanas, Niemeyer precisava tratar do projeto do Algarve. Já em Paris, ele tinha reuniões para tratar do projeto urbano para Grasse e para a sede do Partido Comunista Francês — PCF. Ou seja, esta viagem retoma demandas de projeto iniciadas em viagens anteriores. Desta vez, Niemeyer relata impressões maiores sobre Lisboa, demonstrando boa impressão sobre a tradição arquitetônica tão próxima da nossa cultura colonial. A visita a Cintra evoca as queijadinhas, mas também a literatura de Eça de Queiroz. A partir daí, Niemeyer confessa ser um leitor voraz interessado em Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa e tantos outros autores brasileiros. Nos dez dias que ficou em Portugal, o arquiteto pode novamente reencontrar JK, compartilhando sua preocupação com a situação política do Brasil.

Fotos da exposição, das maquetes de projetos na França e do edifício residencial em Berlim
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

Em Paris, Niemeyer ficou por um mês hospedado na casa do Embaixador Hugo Gouthier, cuja amizade é comprovada pelo projeto de um edifício residencial na França. Para não abusar da amizade com Gouthier, após este tempo de hospedagem e com a perspectiva de muito trabalho no projeto urbano de Grasse e na sede do PCF, Niemeyer aluga um apartamento na Rue Lauriston. As colaborações de arquitetos franceses são também relatadas, ampliando o rol de contatos profissionais decorrentes desses trabalhos e das longas temporadas no exterior. Claude Harlaut, De Roche e Chemetof são os colaboradores de Niemeyer. Ao mesmo tempo em que relata o prazer e o excesso de trabalho e de reuniões para defender e explicar os projetos para as autoridades locais, Niemeyer releva o gosto por passear pela Avenue des Champs-Élysées, pela Rive Gauche, o prazer de ficar em cafés, olhando vitrines, visitando livrarias, além das exposições. Em passagens breves, o arquiteto sugere o quanto conhecia e apreciava a cidade.

Além dos colaboradores na prancheta, Niemeyer recorda a companhia de Heron de Alencar, Luiz Hildebrando, Eduardo Sobral e outros brasileiros que por lá estavam exilados. O desenvolvimento dos desenhos e as etapas de aprovação dos projetos dilatavam o tempo de permanência, com intervalos e espera que foram otimizados. Niemeyer relata que durante esta estada em Paris fez rápidas viagens a Lisboa e ao Líbano, destacando uma parada estratégica em Roma para fazer uma palestra a convite de Bruno Zevi, na Universidade de Roma. É nesta longa temporada em Paris que Niemeyer também é convidado para fazer o projeto do centro espiritual dos dominicanos em Sainte-Baume. Em março de 1967, Niemeyer embarca no navio Enrico C. para retornar ao Brasil e nele revê o texto do livro sobre os resultados práticos de suas viagens, concluindo que conhecer terras, gentes, ter feito novos amigos e redimensionar o tamanho da própria vida em face às angustias humanas. Ainda assim, o arquiteto diz estar cheio de esperanças!

Último capítulo do livro
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti, 2023

De volta o Brasil, mas em trânsito

Ao longo do livro Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-66, Oscar Niemeyer expõe impressões e constrói uma memória sobre suas experimentações em viagens de trabalho mundo a fora. A relacionar os destinos de viagem com as encomendas de projetos de arquitetura e urbanismo, Niemeyer apresenta ao leitor seus argumentos sobre as soluções projetuais, ao mesmo tempo em que revela os nomes dos colaboradores, confirma quem são os contratantes e ainda informa uma rede de contatos socias extensa e variada. Este livro condensa um registro de quatro grandes viagens de Niemeyer para a Europa e Oriente-Médio, entre 1962 e 1967 —que são dimensionadas na escala dos meses— por cinco países e dez cidades. A tabela abaixo traz evidências visuais da permanência de Niemeyer no Brasil, ou na condição em trânsito, nas viagens. Entre 1961 e 1967, são cerca de 27 meses vivendo e trabalhando no exterior.

Tabela esquemática de permanência de Niemeyer no Brasil ou em trânsito pelo mundo nas quatro viagens relatadas no livro “Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-1966
Elaboração Eduardo Pierrotti Rossetti

O trânsito de Niemeyer entre o Brasil e Líbano, Israel, Portugal, França e Itália é bastante importante em sua trajetória profissional. O trânsito de Niemeyer entre o Rio de Janeiro/Brasília e Beirute, Trípoli, Tel Aviv, Haifa, Lisboa, Cintra, Paris, Marselha, Sainte-Baume e Roma proporciona aprimorar as perspectivas sobre suas próprias maneiras de projetar e solucionar grandes desafios arquitetônicos.

De maneira irregular e quase pontual, este livro traz impressões sobre cidades, espaços e outras arquiteturas são relatadas, mas sempre com muita concisão. Datas de partida e datas de chegada, tempo de permanência, cidades e países visitados, nomes de colaboradores e de quem encomendou os projetos também aparecem. Mas todas essas informações aparecem no texto com variados graus de precisão, neste livro de memórias, uma vez que justamente a memória pode ser tendenciosa e contradizer certos fatos. A escrita fluida e desinibida do arquiteto sobre sua própria arquitetura encontra uma inversão quando os assuntos são outras arquiteturas e outas cidades, para além de sua cidade natal, o Rio de Janeiro.

Ainda assim, é patente detectar ao longo da leitura o impacto dessas viagens em suas especulações para projetar e solucionar novas demandas. A experiência com os complexos projetos de Brasília lhe assegura um domínio de escala para novas invenções formais e projetuais. Entre o Rio de Janeiro/Brasília e suas viagens pelo mundo, o arquiteto acumulou projetos não construídos, mas que podem ser retomados em outras situações geográficas e culturais, desdobrados em soluções formais exitosas e reformulados para abrigar novas funções. Desta maneira, ao longo de décadas, Niemeyer formulou, ampliou e reinventou um repertório formal próprio que somente ele manipula com habilidade para conceber obras extraordinárias.

As experiências culturais e a vivência de outras situações urbanas e o contato com outras escalas e soluções construtivas de arquitetura que Niemeyer obteve com seu Grand Tour são pouco explicadas pelo próprio arquiteto. Por esta razão, explorar este livro sobre as viagens posteriores, entre 1962 e 1967, é importante para compreender os limites do discurso do próprio Niemeyer em relação a si a ao seu trabalho. Deste modo, como um efeito colateral, ao ser tão conciso nas impressões e tão pouco preciso nas informações, as viagens de Oscar Niemeyer permanecem como um objeto de pesquisa a ser continuadamente estudado, uma vez que sua trajetória profissional resulta de uma exitosa produção arquitetônica.

Situado cronologicamente entre o seu Grand Tour e essas viagens pós-Brasília, este livro adquiriu caráter documental imprevisto, permanecendo como um registro especial de um conjunto de viagens de Niemeyer. Ele continuará fazendo outras viagens e projetos mundo a fora, nas décadas seguintes, especialmente depois de ter uma base, um pied-à-terre, em Paris. Mas estas novas experiências de deslocamentos e de sua condição em trânsito não foram transformadas em reflexões em livros específicos, permanecendo apenas como anotações dispersas pela produção bibliográfica do arquiteto. É certo que tais outras viagens e experiências de projeto mundo a fora serão tratadas em outros livros, como Oscar Niemeyer (1975) e o As curvas do tempo — memórias (1998). Mas um livro como este, com tom biográfico e que se esforça para registrar passagens entre a memória e a razão da argumentação de projeto, com os respectivos desenhos, isso não se repetiu mais. Ou seja, este livro de quase memórias se tonou uma exceção na produção bibliográfica do arquiteto, que fica ainda mais raro, já que ele nunca foi reeditado.

Também ficou difícil repetir o entusiasmo registrado no título do livro. Afinal, o entusiasmo ali apontado era inerente a um momento histórico singular. O entusiasmo do título está relacionado com as extraordinárias condições de trabalho e oportunidades de atuação de Niemeyer junto da atuação política de JK. O entusiasmo do título também está relacionado com a construção de uma nova capital e de seus principais palácios, ministérios, edifícios comerciais, edifícios residenciais, igrejas, escolas, a universidade, hospital, etc. O contraponto do entusiasmo, ou seja, a revolta de Niemeyer, será sempre parte integrante de um discurso contrário, um discurso de reação aos valores conservadores. A revolta alimentará sua fala de praxe sobre um mundo injusto que nós, arquitetos, devemos transformar. A revolta, o incômodo com a situação vigente também podem ter sido um estímulo ao entusiasmo para aceitar novos convites e zarpar, decolar, seguir em trânsito e viajar para projetar sua inconfundível arquitetura brasileira em outros países, outras culturas e outras paisagens.

Como uma constante no campo da arquitetura, Niemeyer continua a convocar os pesquisadores e demandar novos estudos de sua trajetória, sua própria história, mas também sobre a historiografia da arquitetura brasileira. Niemeyer instiga pesquisar as prementes circunstâncias de cada obra fora do Brasil, para as quais concorrem as relações sociais, os convites, as tecnologias construtivas, a mão-de-obra, as legislações, os materiais, as demandas dos programas arquitetônicos, os suportes de produção e representação do projeto, as questões urbanas, as paisagens, as especificidades sociais e as oportunidades políticas de cada situação em que ele projetou ao redor do mundo.

Por tudo isso, nos desdobramentos destas pesquisas, nossa próxima parada é a Itália!

notas

1
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Niemeyer for export: arquitetura e trajetória de Oscar Niemeyer mundo a fora. Anais do 12º Seminário Docomomo Brasil, Uberlândia, PPGAU FAUED UFU, 2017.

2
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. As viagens de Oscar Niemeyer. Anais do IV Colóquio Internacional Estéticas no Centro: Estéticas das Viagens. Brasília, FAC UnB, 2021.

3
PEIXOTO, Arêas. A viagem como vocação: itinerários, parcerias e formas de conhecimento. São Paulo, Fapesp/Edusp, 2015, p.12.

4
URRY, John. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo, Studio Nobel/Sesc, 2001.

5
LEED, Eric J. The mind of the traveler. From Gilgamesh to global tourism. New York, BasicBooks, 1991.

6
Idem, ibidem, p. 18-19.

7
GOETHE. Viagem a Itália. Lisboa, Relógio d´Água Editores, 2001.

8
BRUAND. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 151.

9
XAVIER. Depoimento de uma geração. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 238. Grifo do autor.

10
BRUAND, Yves. Op. cit., p. 162.

11
NIEMEYER, Oscar. Quase memória: viagens. Tempos de entusiasmo e revolta — 1961-1966. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p.03.

12
Idem, ibidem, p. 4.

13
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Palácio do Itamaraty: questões de história, projeto e documentação (1959-70). Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 106.02, Vitruvius, mar. 2009 <

https://bit.ly/4bQqzRd>.

sobre o autor

Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto, professor e pesquisador pela FAU UnB.

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