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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo (re)apresenta e representa, no limiar da história-ficção, muitos personagens da complexa obra-figura do arquiteto Sergio Bernardes (1919-2002), em geral, reduzida à enfadonha alcunha “mito 2ª geração modernista carioca” relegado ao ostracismo.

english
This paper (re)introduces and acts, on the historical-fictional borderline, many characters from Sergio Bernardes’ (1919-2002) work, generally reduced to the boring nickname “myth 2nd generation modernist from Rio de Janeiro” relegated to ostracism.

español
Este artículo (re)presenta y escenifica, en la frontera histórico-ficcional, numerosos personajes de la obra de Sergio Bernardes (1919-2002), generalmente reducido al mote de "mito modernista carioca de segunda generación", relegado al ostracismo.


how to quote

FELICETTI, Marcelo. Re[a]presentando Sergio[s] Bernardes. 1991/1961. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 284.04, Vitruvius, jan. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.284/8970>.

É preciso começar tudo de novo, disse ele. Sim, é preciso começar tudo de novo, digo eu. Afinal, quem é Sérgio Bernardes (1919-2002)? (1) — pergunta Casa & Decoração. Quem é este homem que decide de uma hora pra outra mudar a vida de uma cidade? Quem é este homem que já projetou um aeroporto subterrâneo para Brasília (o qual não chegou a ser viabilizado) e que vendeu há pouco tempo um outro projeto a ser executado no Polo Norte? (2) — esmiúça O Fluminense. Ele é arquiteto, mas se autodenomina um vagabundo preocupado (3), se diverte Jô. Como? Sérgio Vladimir Bernardes é assim, interpela Bloch — filho de jornalista, não quis saber da imprensa. Cursou arquitetura até o terceiro ano e depois trancou matrícula. Formou-se finalmente em 1948 na Faculdade Nacional de Arquitetura (atual UFRJ), sem nunca ter feito curso brilhante. Andava sempre muito ocupado para ser bom aluno. Estava longe de imaginar que em 1959 ali iria lecionar Composições de Arquitetura como professor convidado (4).

“Eu gostava de carpintaria, marcenaria e motor de automóvel. Comecei ainda estudante a fazer projetos, a idealizar coisas” (5).

Para completar a ficha técnica, ecologista, cientista social, humanista. Um homem que conhece o fascínio de cada canto do mundo, mas continua brasileiro, carioca (6) — retoma Casa & Decoração. Não se altera nem mesmo quando é perguntado se a exposição [Revolução, MAM RJ, 1983] vai causar polêmica. Se seus conceitos políticos e filosóficos, ao desconhecer a existência do socialismo — falar apenas do capitalismo de Estado e do capitalismo privado —, não irão contra a maré e se, afinal, é o arquiteto não alinhado, chamado por alguns de Flash Gordon da arquitetura ou o arquiteto que planeja pro ano 2000 (7) — provoca JB.

E comentarista de TV. Comentarista de TV? Sim! Cultura de massa, midiatismo cult, showbusiness, articulação pop… Ora, são anos 1980, Brasil quase (re)democrático… Então, Sérgio, conte-nos:

Você se imaginava comentarista do Noites Cariocas, na TV Record, defendendo a reurbanização do Rio de Janeiro como reformulação da estrutura social da cidade? (8).

“Em [19]59 perdi meu emprego para mim mesmo. Vi que estava tudo errado. O que eu estava fazendo ao bolar prédios e prédios não passava de uma arte-final para uma série de condicionamentos — políticos, jurídicos, econômico-financeiros. Eu tentava ser criativo, mas não me preocupava com as causas. Trabalhava por efeito. E trabalhava inutilmente num tecido canceroso, sem me preocupar com esse problema essencial, a doença urbana. Foi aí que entendi que não basta a criatividade. É preciso empregá-la a serviço das causas. Entendi que era necessário, antes de mais nada, perceber, desenvolver este sentido que é o primeiro no homem, a visão, até que você adquira uma macrovisão” (9).

Diante disso me perguntam o que penso sobre as transformações que a categoria dos arquitetos vem sofrendo desde a década de 1960… Ora, é de uma participação penosa. As transformações são inerentes às transformações políticas e sociais resultantes da instabilidade do quadro do Poder, do esfacelamento do Poder, e do esfacelamento de todas as expectativas em torno da atividade do arquiteto, que apenas manteve o ato de arquitetar a sua própria sobrevivência. A participação do arquiteto na sociedade é penosa já que o Poder age através de propostas imediatistas, baseadas em modelos caducos. Modelos sem nenhum interesse quanto a trazer uma melhoria da qualidade de vida ao homem. Portanto, o arquiteto que é um pensador, além de ser um técnico, se vê prejudicado pelas condições inerentes às propostas do Poder (10).

Mas Sérgio, e aquele boato…

– Que boato?

Ora, de que Sérgio pai está ativando um projeto vertiginoso. Esse projeto é nada mais nada menos do que a instalação de um escritório em Nova Jersey, onde um grupo brasileiro planejará estradas para o Governo norte-americano. O office de Sérgio Bernardes será a turnpike mais movimentada do mundo… (11). E, além disso, seu escritório e Amaury Destefano se associaram ao Grupo Financeiro Aurea [n]a elaboração de projetos para construção de habitações multifamiliares. O primeiro projeto da dupla de arquitetos será executado pelo Grupo Aurea em Porto Alegre, numa área de 110 mil metros quadrados no morro de Santa Tereza, um dos mais pitorescos lugares da capital gaúcha (12).

– Meu caros, isso tudo foi antes… Era época do “milagre brasileiro”, entre 1968 e 1973…

Está certo, Sérgio, foi mesmo antes… Mas agora — retoma Jô Soares — você apesar de arquiteto renomado no mundo inteiro, quer dizer, de fama internacional — você que é considerado um dos gênios da arquitetura, você se autodenomina um vagabundo preocupado, por que isso? (13).

“Por uma razão. Eu me oponho a esse sistema que está aí. Oponho-me à posição de inquirir. A televisão aparece e não me dá nenhuma chance de ver a minha profissão, o que eu estiver estudando, porque eu trabalho numa busca. Eu digo trabalho porque eu nunca trabalhei, não tenho hábito de trabalhar. Eu só faço o que eu gosto. E o que eu gosto, até chegar ao que eu gosto, é muito triste. Eu analiso efeitos. E os efeitos que recaem sobre a sociedade são péssimos. O imediatismo sacrifica todo o futuro. Então, o que eu procuro fazer é trabalhar para o anônimo. São essas pessoas que eu não conheço aqui pelas quais eu trabalho e dou o meu tempo, que não tem retorno. Mas eu me nego a dar esse tempo, que não tem retorno, para esse sistema de poder que está aí. Isso é no mundo inteiro” (14).

E como é esse projeto para mudar a sociedade brasileira que começa inclusive pela moeda? (15) — prossegue Jô.

“O poder humano de criação é inesgotável e desenvolve-se por soma de conhecimentos numa progressão fantástica gerando um mundo tecnológico. Esse desenvolvimento é tão forte que às vezes suplanta o próprio homem. É privilégio do arquiteto estabelecer através de sua sensibilidade o equilíbrio entre a tecnologia e o homem” (16.)

“O papel do arquiteto brasileiro, antes de mais nada é projetar para o Brasil. Criar uma arquitetura que se enquadre dentro de nossa economia, de nossa maneira de ser, das nossas regiões, de nosso povo. O arquiteto é o analista, o coordenador legítimo do progresso do País, para o conforto e bem-estar social” (17).

“Eu faço projetos, ninguém me pede. Meu trabalho é esse, tenho as ideias, faço as propostas, as pessoas aceitam ou não. Faço isso porque há 34 anos [desde 1952] sou viciado em Brasil. Não é amor, é vício. O amor acaba, o vício não. Se eu gostar de você, acaba, mas se eu viciar em você, cada vez será mais forte minha dependência. Foi assim, por vício, que fiz todos os meus projetos. Passo por louco, mas tudo o que faço é perceber” (18).

“Mas especificamente sobre este projeto, Jô, é o seguinte. — Democracia é um processo de botar gente nova em corpo velho. Esse é o processo democrático. Mudam a gente e o sistema é de trezentos, quatrocentos anos atrás. É preciso ver que nesse meio tempo surgiu o satélite. Esse satélite vai a 900 km de altura. E o satélite à décima potência vê qual é o biquíni que a menina está usando e qual é a cor. Esse satélite vai a 200 metros de profundidade. Ele caminha na superfície, faz a fotointerpretação.

Ah, um satélite voyeur! — Ironiza, Jô.

— Todos eles são! Então, o satélite hoje [1991] é usado para o policiamento, queimadas… Temos que pegar isto que é tecnologia e reformularmos o uso do país. Porque todo o território do planeta Terra é da defesa nacional de cada país. E dão partido[s] político[s] para a gente brincar de pátria. Brinca com o Dr. Ulysses, brinca com não sei quem, brinca… Eu não quero brincar com essa gente! Eu quero o país para minha gente! E o meu país para minha gente é facílimo de fazer. Nós temos uma moeda que todos nós que estamos aqui damos um tempo que não volta mais e recebemos uma moeda que não compra mais. É triste você dar um tempo que não volta e receber uma moeda que não compra. Então a proposta que eu faço, e deixo registrado aqui com você Jô, é que nós podemos fazer isso em seis, oito meses no máximo. Todo o Brasil está levantado. Se eu fizer a tomada de posição do que dá a superfície da terra no Brasil, eu tenho toda a produtividade do país. Se eu fizer o mesmo satélite indo a 200 metros de profundidade, eu tenho toda a geologia, tenho todo o potencial [da terra]. É preciso achar só uma coisa, um responsável por essa terra. E os responsáveis são proprietários. Ora, se eu fizer esses dois mapas, e botar sobre esses dois mapas um mapa da propriedade, eu encontrei o responsável pela produtividade naquele ponto. E se eu [os] encontrei, isto passa a ter valor bancário, eu posso ter a produtividade da terra limitada aos metros quadrados que cada um tem. Então você passa a ter pátria pela primeira vez. E não partido político” (19).

Que eloquência, não, meu caro leitor?! Mas mesmo antes disso, há cerca de vinte anos (1970), o arquiteto Sérgio Bernardes [já] sugeriu que o Brasil lançasse um satélite — “cujo preço não [era] maior do que um DC-8 da Varig” — para transmitir programas de Educação. Esta sugestão foi feita durante uma conferência pronunciada para estudantes de um colégio carioca, na qual o famoso arquiteto [propunha] a criação de um polo de desenvolvimento em Goiás — em Niquelândia — de onde se irradiaria um esforço em todos os campos: educação, industrialização, transportes etc. (20)

Desejo, certeza, delírio, ficção? Seria mesmo tudo isso (im)possível? Voltemos um pouco. E sobre a arquitetura?

Sérgio — inquere JB — [nesses últimos anos — 1961-81] houve o desenvolvimento de uma metodologia de projeto de arquitetura? Como você a situaria no seu trabalho? (21)

“O projeto é sempre uma síntese. Por conseguinte, tanto a intuição como o equacionamento dos dados objetivos devem ocorrer concomitantemente. Nesta duplicidade de coordenadas (engenho e arte) é que reside precisamente a dificuldade da arquitetura. Tanto mais capaz será o arquiteto quanto conseguir atender adequadamente à ambas coordenadas. Acontece apenas que mesmo para o equacionamento dos dados objetivos a intuição sempre deve estar presente como força criadora, necessária ao encontro das soluções. Não se pode considerar só a intuição em desapreço das condições arquitetônicas. Isso seria transformar a arquitetura em arte gratuita e alienada da realidade. Não se podem também considerar só os dados objetivos para mecanicamente resolvê-los. Isso seria reduzir a arquitetura a um processo mecânico de juntar elementos desinformados de conteúdo. O verdadeiro processo arquitetônico é aquele que coordena intuitivamente os dados objetivos. Arquitetura é uma soma e não uma divisão; síntese e não análise. Só que por intuição não se pode aceitar o estalo ou o sopro divino que acontece. Intuição, no caso, é a capacidade, a experiência acumulada, os conhecimentos, a imaginação cultivada que transfere para o subconsciente os processos mentais que racionalmente se realizam conscientes” (22).

E crítico, Bernardes provoca:

“A arquitetura continua a ser um processo de exceção. Se não há um objetivo ou se não há uma estrutura para garantir o objetivo — existe a condição incipiente do imediatismo — como é que o arquiteto vai utilizar metodologia, antes de saber do objetivo e antes de saber da estruturação desse objetivo? Não adianta saber de que forma eu trabalho porque seria querer conhecer muito bem o know-how, que é o que nós estamos conhecendo hoje, e não conhecer o know-why: o porquê fazer. As metodologias adequadas podem ser encontradas facilmente, mas estamos vivendo uma época em que o porquê fazer é mais importante do que o saber fazer. Nós temos que enfrentar o processo político que conduz a destruição do Poder. Trata-se da autodestruição do Poder, porque o poder se destruiu por si próprio e nós fazemos parte desse processo. Quanto à metodologia no meu trabalho, obviamente eu procuro situar. Quando eu tenho algum trabalho a realizar, vinculo primeiro os objetivos e não tenho nenhuma preocupação em determinar metodologia, mas sim em alcançar os objetivos que, em última instância, pretendem a melhora da qualidade de vida, mas isso é um privilégio. Eu posso ser considerado uma exceção, como todos os arquitetos que têm tido possibilidade de trabalho. Além disso, considero o meu trabalho diferente, em natureza e caráter, porque trabalho mais numa linha de visão global e de busca de instrumentos que possam gerar as melhorias de qualidade profissional. O objetivo é abrir o mercado de forma respeitosa de modo que [o profissional] possa vir a exercer a profissão dignamente. Porque não basta ser arquiteto para ser um bom arquiteto. O ato de arquitetar não é um ato que pertença ao arquiteto. Todos são arquitetos da sua sobrevivência, todos são arquitetos das suas vocações. O arquiteto apenas cria a possibilidade de fazer o abrigo do homem, mas ficou evidente nessa época de decadência, de fim de festa, na autodestruição do Poder, que nós participamos dessa autodestruição, fazendo as piores obras de arquitetura, contribuindo para que a cidade vá por um caminho péssimo, com modelos negativos. É a própria sobrevivência da cidade e a sobrevivência do mercado de trabalho que se veem prejudicadas” (23).

Opa! Corta! Um momento: esse discurso merece algumas (re)conexões, (contra)posições políticas (ideológicas) mais e menos antigas. Sérgio Bernardes foi breve assessor de urbanismo (1962) da Secretaria de Obras do Governo Carlos Lacerda, Estado da Guanabara (1961-65), quando ‘razões de consciência’ o impediram de continuar no grupo de trabalho que organizava o plano diretor do Rio de Janeiro.

“A briga foi por causa das favelas. Eu era contra remoção pura e simples achando que se podia fazer um trabalho de reurbanização com a colaboração do próprio favelado. Foram contra. Eu saí porque gosto de deitar no meu travesseiro e dormir” (24).

Ok! Sérgio, mas posteriormente, a Revista Afinal disse-me em palavras que não eram suas: O construtor de utopias ataca outra vez. Bernardes, agora um socialista: em 1964, apoiou abertamente o movimento militar que derrubou o presidente João Goulart. Em 1972, construiu um imponente mausoléu para o presidente Castelo Branco. Hoje [1984] se diz socialista, desiludido com o poder, a tecnologia e o capitalismo (25).

[Risos] — Os generais americanos (General Eletric, General Motors, General Dynamics) são microditaduras econômicas, com um sucesso espantoso. Já os generais brasileiros, coitadinhos, estão amarrados ao regulamento, dependendo de criar inimigos para exercer a profissão (26). O Brasil foi invadido por um produto da vida ou da morte: o dólar. Os generais americanos chegaram à conclusão que não precisavam de exércitos para nos invadir. E com essa visão, o povo brasileiro saiu da jogada (27).

Quer dizer que como o governador [Leonel Brizola — PDT (1983-87)] e o prefeito [Saturnino Braga — PDT (1986-89)] o senhor é um socialista? (28) — pergunta Fatos.

“Sou um socialista brasileiro. Meu socialismo é da primeira civilização tropical. Meu socialismo tem por base que nenhum homem vai aceitar a orientação de outro homem” (29).

Então é anarquismo? — insiste a revista.

“Sim, em seu sentido original. No sentido pejorativo, anarquismo é o que estamos vivendo. Mas o verdadeiro anarquismo se propõe dar liberdade a todos os indivíduos e dar condições de serviço a todos” (30).

Opa! Corta novamente! Isso aqui já está ficando confuso. Vale um esclarecimento, porque os personagens Bernardes são muitos: liberal de direita, socialista, anarquista, ecologista, arquiteto de mercado, comentarista showman… Voltemos um pouco.

Na virada de 1977 para 1978, JB pergunta:

Sendo você pessoa com atuação na vida cultural brasileira, quais as dificuldades encontradas para exercê-la em 1977? De qual maneira gostaria que ela fosse exercida em 1978? (31).

“Eu exerço minha vida exatamente como pretendo. É uma vida em que crio todas as minhas programações para oferecer um produto final ao meu país. Não sei em que governo terei este produto pronto. Como estou fazendo um Laboratório de Investigações Conceituais, estou criando diretrizes que irão gerar eventos para o país, enquanto que o governo trabalha com eventos que geram diretrizes” (32).

“A crise é conceitual e de diretrizes, razão pela qual criei este espaço que é o laboratório” (33).

Meus caros leitores, Sérgio ‘reconceitua’ o tempo todo, como ele mesmo diz. No início dos 1980, por exemplo, não apenas o tema das favelas mas a questão ecológica agrourbana também povoava seu imaginário.

Durante o seminário Análise e Perspectiva da Agricultura Brasileira 1981/1982, [Bernardes propôs] a criação de uma Sociedade Anônima para promover o Desenvolvimento Agrourbano Municipal, que lançaria as concessões de direitos municipais. Isso seria feito na proporção das áreas municipais públicas, privadas, ruas, parques, estacionamentos. A sociedade teria por sigla Sadau — Sociedade Anônima do Direito Agrourbano — e a entidade não [poderia] deixar de lado a parte política dentro de sua participação societária” (34).

“Para [mim], o tipo de luta desenvolvida pelos ecologistas brasileiros é uma utopia, pois somente é analisado o efeito, deixando-se de lado as causas, que não são combatidas. O problema da favela não está na favela, mas fora dela” (35).

E falando de militância — passada e futura — o governo Lacerda (1961-1965) não foi a única (ligeira) participação do grande Sérgio na gestão pública. 1984, o ano do Big Brother de George Well, em Primeiro Passo, JB nos contava que o arquiteto [começava] pela Baixada Fluminense a execução do ambicioso plano […] de valorização da terra em função do mercado de trabalho. Bernardes aceitou o convite do Prefeito de Nova Iguaçu, Paulo Leone, e [em 24 abr. 1984 se tornou] o Secretário de Planejamento do Município, com plenos poderes para tocar a frente seu projeto (36).

E como a ocasião faz o ladrão, o personagem-gestor já performava uma insólita troca de papéis:

Mais do que reformular todo o planejamento urbano do município, o arquiteto Sérgio Bernardes, que há semanas assumiu a Secretaria de Planejamento de Nova Iguaçu, pretende cuidar da segurança da região. Está tentando aprovar uma proposta sui generis: reunir todos os chefes do crime organizado da cidade e propor a contratação de seus serviços pela municipalidade (37).

“Em lugar de assaltar, [quero] ver os bandidos na rua fazendo a segurança do município” (38).

Diante da vida pública em Nova Iguaçu, possivelmente se conformava, inconsciente ou não, sob a inquitetude de colocar em prática suas ideias, a gestação da candidatura do arquiteto para a prefeitura do Rio de Janeiro, em 1985, um de seus maiores projetos ficcionais.

“[Ora] — Máfias elegem qualquer prefeito. — Foi assim que o candidato [do] PMN (Partido Mobilização Nacional) […] à prefeitura carioca, o arquiteto Sérgio Bernardes, mundialmente conhecido, se apresentou à imprensa paulistana [em 4 set. 1985] num agitado dia de visita a São Paulo. De manhã Sérgio Bernardes recebeu os jornalistas no velho Bar dos Amigos do Museu, no centro de São Paulo (39), onde também teve contato com empresários — ‘velhos amigos meus’. Depois do almoço, [acompanhado do] empresário Antônio Maurício da Rocha em sua firma Tenenge, Bernardes foi recebido por João Saad, proprietário da TV Bandeirantes, retornando em seguida ao Rio” (40).

Mas entre políticos, mafiosos, empresários e carnavalescos, pouco tempo atrás ocorrera outro intenso tititi não exatamente político, todavia sobre um tal polo noturno — “QI de Régine” — no Leblon, que prometia bombar o mercado do entretenimento carioca:

Em primeira mão vamos revelar o boato […] que marca a entrada do empresário Leônidas Bóreo no metier da vida noturna carioca. Localizado em um Shopping Center, no Leblon, Régine [Choukroun] e [Leônidas] Bóreo farão surgir um complexo de lazer que ocupará uma área de 1.000 m2 constituído de uma discoteca e um restaurante. A discoteca, que vai se chamar QI, será um projeto revolucionário, inédito na América Latina, envolvendo a grife do arquiteto Sérgio Bernardes e Marcos Vasconcelos, além dos nomes de Mário Borriello, Arlindo Rodrigues e Joãozinho Trinta na decoração (41).

Ora, isso é 1981! Vésperas da estreia do mais novo comentarista arquiteto no Noites Cariocas do Nelsinho e da Scarlet… O personagem Sérgio Pop, como naqueles tempos quando:

Numa noite [de novembro de 1965] Bernardes recebeu [o Senador Bobby] Kennedy numa festa [na casa da avenida Niemeyer] em que todo mundo conhecido no Rio estava. Terminou como sempre. Solistas de samba e derivados se exibiram para o senador. Jovens e bêbados dançaram. Esquerdistas pediram a Kennedy que assinasse manifesto contra o governo Castelo Branco [pela] liberdade de alguns intelectuais […] presos por se manifestarem publicamente contra o general-presidente diante do Hotel Glória. Kennedy se recusou. Soubemos mais tarde que [ele] tinha falado particularmente ao general pelos presos, que foram soltos sem maiores consequências (42).

E vinte anos depois, a quatro dias das eleições municipais cariocas (1985), Millôr Fernandes apelava aos leitores do JB por um crítico Vote Certo que tocava, para bem ou para mal, no nome de nosso outro (inexpressivo) personagem candidato:

Votar certo é não transformar seu voto num pressuposto, numa aberração do voto. É não votar em branco em nenhuma hipótese. […] É não votar voto útil, essa proposta sempre equívoca, que parte do pressuposto que você deve votar num canalha para evitar a ascensão de canalha pior. Só ao propor isso o canalha menor se transforma em canalha maior. […] Caso nenhum dos partidos majoritários o atraia, vote em candidatos de partidos menores, como (só para exemplo) […] Sérgio Bernardes, um arquiteto que acredita no bem público, um planejador deslumbrado pela profissão e que conhece o Rio palmo a palmo. [Em qualquer caso] […], você não estará perdendo o seu voto — estará fazendo com que vozes sinceras e importantíssimas tenham mais força no contexto social, na vida da comunidade (43).

Todavia, em [15 de] novembro de 1985, o PMN, [que] concorreu à eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro apresentando a candidatura do arquiteto Sérgio Bernardes, [defensor da] descentralização administrativa e [da] criação de conselhos comunitários dotados de recursos próprios […], obteve apenas 9.787 votos, ficando na 13ª posição entre os 19 concorrentes (44).

E já na última década do século 20, inquirido pelo JB quanto ao futuro inserto da moradia humana, Bernardes ao contrário de outros arquitetos proferia em tom realisticamente sarcástico:

“Para quem, há trinta anos projetou imensos [bairros] na forma de torres com 600 metros de altura como solução para humanizar e trazer o verde de volta à cidade — (Copacabana seria implodida e cada torre substituiria um quarteirão inteiro, com o teto de um [conjunto de lotes de] apartamento[s] servindo de jardim para o [conjunto de lotes de] apartamento[s] de cima) — a casa do futuro é a favela” (45).

“Nós vamos virar lixo e subir o morro. Só os conservadores terão futuro e são eles que vão morar em palacetes absolutamente robotizados e mecanizados, porque ninguém mais vai querer servir” (46).

De súbito Bernardes lembrou-se de Jô Soares que ali parecia ainda atento, ouvindo todas essas histórias… Possivelmente mesmo esquecido da pergunta que lhe fizera sobre a tal moeda mágica de transformação do sistema econômico-territorial do Brasil, por ele inventada — o abstrato. E assim o Sr. Selvagem arquiteto (do Admirável Mundo Novo) retomou o assunto:

“[Olha Jô] — então, essa coisa da moeda é simples de fazer, porque as propriedades estão aí, estão registradas, os satélites registram isso, é facílimo Jô. E depois tem uma condicionante fantástica, é o que tá na superfície que a terra deve dar. Então eu tenho a condição tributária: eu pago pelo que a terra diz que tem. Esse é o tributo. E não o tributo da cafetinagem do poder; manter o poder para nós fazermos parte de uns poderes e não termos poder. E outro é a moeda mineral, a moeda agrícola que faz parte da superfície da terra. A moeda mineral que é a que tem na sua profundidade. Mas isso é rapidíssimo de fazer. E a moeda da inventividade do homem. Porque o homem é o único ser que inventa. Inventa até que está vivo. Então essa moeda da inventividade do homem é a moeda industrial. Mas isso tudo com circulação bancária, com posições bancárias” (47).

“O homem do rabanete, por exemplo. Vou pegar esse homem do rabanete que tem dezenove rabanetes e rabanete produz açúcar. Bom, então é bom ele não tomar muito porque vai ficar bom talvez da pressão e diabético. Agora se este homem pagar ao banco em rabanete [será] quanto ele vender de rabanete, é quanto ele vai pagar ao banco. [São] 10%, 20%, 30%, não tem [isso]. A moeda passa a ter lastro. Então essa moeda que existe aí e passa assumir um nome que nós poderíamos dizer assim, talvez, seja a moeda abstrata. Um abstrato vale tantos tomates, um abstrato vale tantos chuchus, não é? É uma moeda cambial. Mas isso feito com o apoio da tecnologia que hoje está sendo usada do ponto de vista policial apenas” (48).

Num misto de incredulidade, certo transe e algum cansaço, por fim, Jô Soares entoou:

Ô Sérgio, já que você falou tanto em governo, que ficam brincando de pátria, […] que você não compactua com nenhum deles, para terminar, eu queria te fazer uma pergunta: e nas eleições, você vota? (49).

“— Não voto. Nunca votei.

— Nunca votou?

— Não. Eu não posso eleger meu carrasco. Porque o homem é o único ser que transfere poder. O leão não transfere poder para a girafa, a girafa não transfere poder para o hipopótamo, eu não transfiro poder. Eu não transferi nem para pai nem para mãe o que eles me deram de passado. E o passado estraga todo o futuro, a herança que a gente recebe. Eu não consigo ver tanta mentira. É favela subindo morro, a favela é a habitação da subutilização e isso aí, a arquitetura brasileira hoje é a favela, é respaldada por todos os políticos de uma maneira geral, que empurram com a barriga o destino das pessoas…

Vocês me desculpem eu ter tomado o tempo de vocês. Vocês são meus anônimos muito queridos!” (50).

notas

1
BERNARDES, Sérgio. Urbanismo Ano I. Casa & Decoração, n. 52, Rio de Janeiro, set.1979, p. 84-86.

2
BOTELHO, Simone. Sérgio Bernardes, afinal a realização de seu sonho. Seção Encontro. O Fluminense, Rio de Janeiro, 28-29 out. 1984, p. 1 <http://bit.ly/4a9L0Hl>.

3
BERNARDES, Sérgio. Jô Soares Onze e Meia. São Paulo/Rio de Janeiro, SBT/TVS, Canal 11, 5 fev.1991. Transcrição do autor.

4
BLOCH, Pedro.Vida, pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira: entrevistas / Pedro Bloch. Rio de Janeiro, Bloch, 1989, p. 229-234.

5
Idem, ibidem.

6
BERNARDES, Sérgio. Urbanismo Ano I (op. cit.).

7
Exposição Sérgio Bernardes MAM — Rio (out./nov.1983). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 out. 1983, Caderno B, p. 1 <https://bit.ly/3wEUUCc>.

8
“Noites Cariocas” — Programa de entrevistas/variedades, TV Record, RJ (1980), apresentado por Scarlet Moon e Nelson Motta. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 jun. 1982, Caderno TV, p. 14 <https://bit.ly/3uZp4j7>; Divirta-se. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 jun. 1982, Caderno B, p. 5 <https://bit.ly/3SVmpir>.

9
BERNARDES, Sérgio. Urbanismo Ano I (op. cit.).

10
Resposta Bernardes ao “2° Inquérito Nacional de Arquitetura”, Jornal do Brasil (1981), sobre transformações sofridas pela categoria de arquiteto entre 1960 e 1980. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 nov. 1981. Especial de Domingo, p. 2 <https://bit.ly/4bWjSx2>.

11
Diário da Tarde
, Curitiba, 11 out. 1968, Coluna Heron Domingues, p. 4 <https://bit.ly/4bVeJpi>.

12
Aurea. Diário da Tarde, Curitiba, 26 jun. 1973. Supermercado de Negócios, p. 9 <https://bit.ly/48tFRsh>.

13
BERNARDES, Sérgio. Jô Soares Onze e Meia (op. cit.). Transcrição do autor.

14
Idem, ibidem.

15
Idem, ibidem.

16
FILHO, A. Pereira. Sérgio Bernardes: arquiteto humanista. Jornal do Dia, Rio Grande do Sul, 19 abr. 1964. Seção Arquitetura, p. 7 <https://bit.ly/49SEG78>.

17
Idem, ibidem. Todavia, o texto aparece originalmente como resposta à uma pergunta do 1° Inquérito Nacional de Arquitetura realizado pelo Jornal do Brasil em 1961 — “qual o papel do arquiteto brasileiro no momento socioeconômico do País?” Jornal do Brasil, Suplemento Dominical. Rio de Janeiro, 4 mar. 1961, p. 5 <https://bit.ly/48y4xjp>.

18
ALCURE, Lenira. Fatos. Rio de Janeiro, Bloch, 3 fev. 1986, p. 14. Entrevista.

19
Sérgio Bernardes. Jô Soares Onze e Meia (op. cit.). Transcrição do autor.

20
Satélite, mania de grandeza. Fato Novo, São Paulo, 20-26 mai. 1970, p. 11 <https://bit.ly/49mrXJT>.

21
2° Inquérito Nacional de Arquitetura do Jornal do Brasil (1981). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 nov. 1981. Especial de Domingo, p. 4 <https://bit.ly/3TfVgHp>.

22
FILHO, A. Op. cit., p. 7.

23
2° Inquérito Nacional de Arquitetura do Jornal do Brasil (1981) (op. cit.), p. 4.

24
BERNARDES, Sérgio. LIC, o sonho de Bernardes aos 60 anos. O Estado de São Paulo, 8 abr. 1979, São Paulo, p. 48 <https://bit.ly/3OYPfgQ>.

25
O construtor de utopias ataca outra vez. Afinal, Curitiba, Editora C, 11 set. 1984.

26
Idem, ibidem.

27
Idem, ibidem.

28
ALCURE, Lenira. Op. cit., p.15.

29
Idem, ibidem.

30
Idem, ibidem.

31
Feliz ano novo para a cultura brasileira. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 dez. 1977. Revista Domingo, p. 31 <https://bit.ly/3uM26vX>.

32
Idem, ibidem.

33
Idem, ibidem.

34
Sérgio Bernardes quer desenvolvimento agrourbano. O Fluminense, Rio de Janeito, 17 dez. 1981, p. 8 <https://bit.ly/48GCuyA>.

35
Idem, ibidem.

36
ZÓZIMO. Primeiro passo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 abr. 1984. Coluna Zózimo, Caderno B, p. 3 <https://bit.ly/49xbD98>.

37
Idem, ibidem, p. 3.

38
Idem, ibidem.

39
Máfias elegem qualquer prefeito. Jornal do Comércio, Manaus, 5 set. 1985, p. 6 <https://bit.ly/3TewBE0>.

40
Idem, ibidem.

41
MONTEIRO, Ivan. O Fluminense, Rio de Janeiro, 31 mar. 1981, p. 9 <https://bit.ly/3UTG8BK>.

42
FRANCIS, Paulo. Robert Kennedy (1925-1968). Uma memória político-pessoal. Diário do Pará, Belém, 5 jun. 1988. Internacional, p. A-7 <https://bit.ly/48vk43v>.

43
FERNANDES, Millôr. Faltam só quatro dias: vote certo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 nov. 1985, 1° Caderno, p. 11 <https://bit.ly/42TXaS6>.

44
Partido da Mobilização Nacional (PMN) [verberte]. Fundação Getúlio Vargas <https://bit.ly/3SWWAP3>.

45
Futuro é incerto para especialistas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 abr.1991. 1°Caderno, p. 1 <https://bit.ly/3SYyBiq>.

46
Idem, ibidem.

47
BERNARDES, Sérgio. Jô Soares Onze e Meia (op. cit.). Transcrição do autor.

48
Idem, ibidem.

49
Idem, ibidem.

50
Idem, ibidem.

sobre o autor

Marcelo Felicetti é arquiteto (PUC Goiás, 1998), especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUC RIO, 2003), mestre em Arquitetura, Teoria e História do Projeto (PUC Rio, 2016) e doutor em Patrimônio, Teoria e Crítica da Arquitetura na linha Teoria e Ensino da Arquitetura/ Projeto Historiografia da Arquitetura e do Patrimônio Arquitetônico (Proarq UFRJ, 2022).

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