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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O objetivo é verificar a relação estabelecida entre a instalação desta necrópole com as reflexões médico higienistas, típicas do século 19, em torno do espaço urbano brasileiro, no contexto da capital cearense.

english
The objective is to verify the relationship established between the installation of this necropolis and the sanitary reflections of the 19th century around the Brazilian urban space, in the context of the capital of the State of Ceará, Brazil.

español
El objetivo es verificar la relación establecida entre la instalación de esta necrópolis y las reflexiones sanitarias del siglo 19 en torno al espacio urbano brasileño, en el contexto de la capital del estado de Ceará, Brasil.


how to quote

LUCENA, Emanoel de. Segregar, consagrar e sanear. Um breve histórico do Cemitério São João Batista de Fortaleza CE. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 285.03, Vitruvius, fev. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.285/8968>.

“Em 1848 aqui na Fortaleza se faziam os enterramentos nas egrejas ou nos seus arredores […].

Ainda existem no corpo da egreja do Rosário, cobertos pelo assoalho, os compartimentos rectangulares que serviam de sepultura, e é tradição que a senhora do presidente Moraes Sarmento ali tivera um desmaio, em consequencia de exalações cadavéricas” (1).

A citação em epígrafe que abre este artigo ilustra, no âmbito da cidade de Fortaleza, como se dava o trato dos sepultamentos à época colonial, trazendo à tona um evento que, devido à ausência de documentos que o comprovem, permanece quase como uma lenda memorialista. Trata-se de um suposto mal-estar sofrido na Igreja do Rosário pela esposa de Casemiro José de Moraes Sarmento, 18º presidente da província do Ceará, em consequência da inalação de gases de corpos em decomposição que ali eram sepultados. Lendas e tradições à parte, é fato que este presidente foi o responsável por capitanear, naquele ano, a obra do primeiro cemitério civil da capital cearense. Isto se deu porque, no século 19, o Brasil assinala o desenvolvimento de um processo de transformação científica no campo da medicina, já em curso na Europa desde o século anterior (2), caracterizado por dois pilares fundamentais: as reflexões em torno do sanitarismo urbano e o suporte científico ao Estado (3). Isto é, influenciada pelos ideais do Iluminismo, a medicina ampliou sua área de atuação, saindo do campo puramente operacional, do tratamento de doenças, e volta seus esforços para a prevenção desses males.

“Não é mais a ação direta e lacunar sobre a doença como essência isolada e específica que move o projeto médico. O ‘médico político’ deve dificultar ou impedir o aparecimento da doença, lutando, ao nível de suas causas, contra tudo o que na sociedade pode interferir no bem-estar físico e moral” (4).

Esta luta mencionada na citação acima passou, fatalmente, pelas reflexões em torno do planejamento urbano. O saber científico da época preconizava que muitos desses males de saúde eram causados por gases emanados da matéria orgânica em decomposição, ocasionada, de um lado, pela gestão ineficiente no tratamento de dejetos, muitos dos quais despejados diretamente sobre o espaço público e, por outro, pelos sepultamentos realizados dentro do perímetro urbanizado, mais especificamente no entorno das igrejas.

Neste sentido, já em 1801, em carta régia endereçada a Fernando José de Aguiar, vice rei e capitão-general do Estado do Brasil no Rio de Janeiro, o então príncipe regente, Dom João VI, já demonstrava suas inquietações quanto ao tratamento dado aos mortos dentro dos domínios do império português:

“Tendo chegado à minha Real Presença huma muito attendível representação sobre os damnos a que está posta a Saude Publica, por soterrarem os Cadaveres nas Igrejas que ficão dentro das cidades populosas dos meus dominios Ultramarinos; visto que os vapores que de si exhalão os mesmos Cadáveres, impregnando a Atmosphera, vem a ser a causa, de que Vivos Respirem um Ar corrupto e inficionado; e que por isso estejão sugeitos, e muitas vezes padeção molestias epidemicas, e perigozas. E tomando na minha Real Consideração hum objecto em que tanto interessa a conservação da vida dos meus fieis Vassalos: Sou Servido ordernar-vos, que quando receberdes esta Carta Regia, procureis de accordo com o Bispo desta Dioceze fazer construir em sítio separado dessa Cidade do Rio de Janeiro, e cujo terreno não seja humido, mas Lavado dos Ventos, principalmente do Norte, e Leste, hum ou mais Cemitérios, onde hajão de ser sepultados, sem excepção, todas as pessoas que falecem” (5).

Diante do exposto, esta carta pode ser considerada a primeira lei brasileira a combater todo tipo de sepultamento intramuros, embora não tenha sido posta em prática de imediato (6). No entanto, em 1811, no Rio de Janeiro, tem-se a inauguração daquele que pode ser considerado o primeiro cemitério a céu aberto da então Colônia, o Cemitério dos Ingleses. Contudo, a construção desta necrópole se deveu, em essência, por questões religiosas, ao invés de sanitaristas. Isto porque era proibido o sepultamento desses ingleses, em sua grande maioria protestantes, no interior ou nos adros das igrejas católicas, conforme pregava o costume (7). No ano seguinte, porém, foi publicado pela Impressão Régia do Rio de Janeiro o Ensaio sobre os perigos das sepulturas dentro das cidades e nos seus contornos (1812), pelo médico sanitarista pernambucano José Correia Picanço (8). Neste ensaio, dividido em duas partes, Picanço discute, em linhas gerais, acerca de legislações relativas aos sepultamentos, segundo diferentes culturas, bem como acerca dos problemas de insalubridade pública oriundos das inumações no interior e entorno imediato dos templos (9). Neste sentido, treze anos após a publicação do referido ensaio, em decreto datado de 18 de novembro de 1825, o imperador Pedro I, citando a Carta Régia de 1801, “pelo bem dos povos” resolve “acabar com o supersticioso costume de se enterrarem os mortos nas Igrejas, catacumbas e cemitérios [intramuros]” da capital fluminense (10). Três anos depois, a lei imperial de 1º de outubro de 1828 estende às demais províncias, em seu artigo n. 66 § 2º, a exigência para construção de cemitérios fora do recinto dos templos (11), conferindo autonomia às câmaras municipais para regular a instalação de necrópoles, segundo especificidades locais e em concordância com as normas eclesiásticas. Nestes termos, a cidade de Salvador foi pioneira na elaboração de uma reforma no trato dos sepultamentos no Brasil, construindo, na década de 1830, o Cemitério do Campo Santo. Essa reforma logo nas décadas seguintes repercutiria nas demais capitais do império (12).

Vida e morte do primeiro cemitério civil da capital cearense: o São Casemiro

Diante deste contexto, em 1848 a cidade de Fortaleza inauguraria sua primeira necrópole, segregada do núcleo urbanizado, o Cemitério São Casemiro, que recebeu esta denominação em homenagem ao então presidente da província, citado no início do texto, Casemiro José de Moraes Sarmento (13). Conforme consta na Descripção da Cidade de Fortaleza, publicada na Revista do Instituto do Ceará do 1° e 2º trimestres de 1895, pelo naturalista, historiógrafo e poeta cearense Antônio Bezerra de Menezes,

“A lei n. 319 do 1 de agosto de 1844 mandou que se edificasse um Cemiterio junto ao Morro do Croatá e o § 5 do art. 3º que a obra se iria fazendo com as consignações que nas leis orçamentárias se fossem decretando para esse fim” (14).

Apesar de, nesta citação transcrita acima, Menezes mencionar o Morro do Croatá, a escolha do terreno da necrópole só foi discriminada no expediente do Governo da Província de 15 de dezembro de 1847, publicada na edição de n. 112 do jornal O Cearense. Nela, “a determinação do lugar mais apropriado da capital para edificação de um cemiterio” ficava a cargo de uma comissão composta pelo “médico de pobreza”, pelo “cirurgião mor” e pelo "cirurgião ajudante do corpo fixo de caçadores [da província] (15). Nestes termos, a Chronica Médica da cidade do Ceará, publicada pelo Dr. Castro Carreira, informava que no dia 2 de janeiro de 1848 a supracitada comissão concluiu que era a região do morro do Croatá — situado a aproximadamente quatro quadras a oeste da Catedral de Fortaleza — aquela que “reunia todas as condições hygienicas necessárias, por quanto ficando a sota vento da cidade, e sendo lavado pelos ventos geraes das quadras de Leste a Sul” (16), de modo a dissipar “as emanações que exhalar-se possão dos cadáveres que ali se interrarem” (17).

Ainda de acordo com Bezerra de Menezes, o referido Cemitério ficaria sob a tutela da Santa Casa de Misericórdia e, a partir de 24 de março de 1848, o já mencionado presidente da província, evocando o artigo n. 3º do Decreto n. 583 — aqui transcrito parágrafos acima — estabelecia, por meio do regulamento n. 24 que, a partir daquele próximo mês de maio em diante “os cadaveres dos individuos que fallecessem nesta cidade e seus suburbios só poderiam ser sepultados no Cemiterio de São Casemiro” (18). Em seguida, Menezes adiciona que este regulamento passou a compor a Lei n. 464, de 25 de agosto daquele ano, promulgada pelo referido presidente, a qual também instituía aplicação de multa de 25$000 réis a quem o descumprisse (19). Esta multa se dava em resposta à resistência que o Estado enfrentava pela população no que tange o enterramento fora dos templos e de seus entornos.

Conforme relato do Dr. Castro Carreira na sua supracitada Chronica, no caso de Fortaleza, esses enterramentos aconteciam até então em “duas exíguas capellinhas” da cidade, ou “no meio da rua” (20), bem como nos arredores da Igreja Matriz, que se achava em processo de reconstrução (21). Isto se dava pois havia no imaginário popular uma crença cristã, herdada dos primeiros séculos da colonização, de que a igreja era o local mais próximo dos céus para garantir a salvação da alma após a morte (22). Em vista disso, tornava-se imperativa a consagração das necrópoles por alguma autoridade eclesiástica, além da construção de uma capela e/ou um cruzeiro nas suas dependências, de modo que pudessem ser atenuadas as resistências religiosas da população para com aquele campo de sepultamentos afastado do espaço dito “sagrado”.

Planta da Cidade de Fortaleza, levantada no ano de 1856, pelo padre Manoel do Rêgo Medeiros
Desenho Guaraci de Lavor com edição do autor [Acervo Wikimedia Commons]

Neste sentido, “por bem da religião e da saúde pública” fortalezense, o Cemitério São Casemiro foi projetado “em pedra e cal” ostentando “uma elegante capella” (23), segundo palavras do próprio presidente Moraes Sarmento, extraídas de ofício endereçado ao cônego visitador da província, Antonio Pinto de Mendonça. Neste mesmo ofício, datado de março de 1848, o presidente ainda solicitava licença para que algum sacerdote realizasse a bênção do Cemitério e de sua respectiva capela, cerimônia sem a qual, conforme convém destacar de suas palavras, “não poderá começar a inhumação dos cadaveres” (24).

O Cemitério São Casemiro não teve, contudo, uma vida útil muito longa. Em 1855, segundo relata Bezerra de Menezes em seu já citado artigo na Revista do Instituto do Ceará, o então presidente da província, Vicente Pires da Motta (1854-1855), já reconhecia que a área da referida necrópole não era proporcional à alta taxa de mortalidade da população local (25). No ano seguinte, ainda de acordo com o relato de Menezes, o novo presidente, Francisco Xavier Paes Barreto (1855-1857), temendo “o apparecimento do cholera morbus", que estava em epidemia Brasil afora, ordenou a ampliação do cemitério em “150 palmos de frente e 300 de fundo, tornando-se assim tres vezes maior do que era” (26). Entretanto, Bezerra de Menezes sinaliza mais adiante que

“O Presidente José Bento, no seu relatorio de 1º de outubro de 1862 diz que além de achar-se quasi dentro da cidade o cemiterio, sendo invadido das areias do Morro do Croatá, accrescia que numa parte delle já fora sepultado grande parte de cholericos, pelo que julgava conveniente a construcção de um novo cemiterio” (27).

O parecer de José Bento, mencionado na citação acima, respondia, no entanto, à recomendação do engenheiro Adolpho Herbster, publicada dois anos antes, no Relatório das Obras Públicas de 15 de janeiro de 1860 (28).

Para fundamentar sua defesa em prol do abandono do São Casemiro, o engenheiro argumenta que, além sua localização muito próxima à cidade, havia muita despesa para remediação de embargos ocasionados pela invasão da necrópole pelas areias do Morro do Croatá, que sofria avançado processo de erosão. Isto posto, era mais conveniente construir outro cemitério em local mais adequado (29). É neste contexto que ocorre a fundação do Cemitério São João Batista.

Nascimento e segregação do Cemitério São João Batista

Em comissão organizada em 16 de dezembro de 1862, formada pelo presidente da Câmara Municipal mais três engenheiros, ficou acordado que o então novo cemitério seria construído para além do Riacho do Jacarecanga, nas imediações da Estrada de Soure (30), atual Mister Hull.

Adolpho Herbster, planta Exacta da Capital do Ceará, 1859
Editado pelo autor [Acervo Wikimedia Commons]

Contudo, em 1865, quando os muros do novo cemitério estavam ainda em construção, a obra foi suspensa por passar muito próxima àquele riacho, o qual era considerado a melhor fonte de água potável da capital, segundo consta no Relatório do então presidente da província, doutor Lafayette Rodrigues Pereira:

“Convencendo-me , á vista de informações de pessoas competentes na matéria, que a collocação do cemiterio no lugar indicado deterioraria a corrente do Jacarecanga, e considerando que seria um erro deploravel inutilsar-se a melhor fonte d’agua numa cidade onde é tão sensível a falta d’aquelle elemento, mandei sobr’estar a obra e dar-lhe outro destino” (31).

Nestes termos, ainda segundo o referido relatório, de modo a aproveitar aquela construção em andamento, a câmara municipal adquiriu o terreno, mediante pagamento de “10:209$900” (32) ao tesouro provincial, para instalação do matadouro público no local. Em seguida, foi nomeada por Rodrigues Pereira uma nova comissão higienista, composta pelos médicos Rufino de Alencar e José de Castro e Silva, para escolha do sítio do novo cemitério (33). De acordo com Bezerra de Menezes, esta comissão determinou, portanto, a quadra situada a um quilômetro da Catedral, a oeste, na porção final da antiga travessa das Flores, compreendida entre a rua Padre Mororó e o antigo Boulevard Jacarecanga, atual avenida Filomeno Gomes (34).

No mapa da cidade de Fortaleza, elaborado por Adolpho Herbster em 1888, já é possível notar, consolidadas no traçado urbano, as distintas áreas do matadouro público e do novo cemitério. Note-se ainda que a antiga Travessa das Flores, que conectava a Catedral ao São Casemiro, precisou ser prolongada mais a oeste em razão da situação do novo cemitério, o São João Batista. Além disso, já naquele mapa de 1888, Herbster eleva essa travessa à categoria de rua, a qual passa a denominar-se Castro e Silva, homenageando, portanto, um dos médicos sanitaristas que compuseram a comissão higienista, nomeada Rodrigues Pereira, para definir a localização do terreno da nova necrópole de Fortaleza.

Adolpho Herbster, planta da cidade de Fortaleza Capital da Provincia do Ceará, 1888
Editado pelo autor [Acervo Wikimedia Commons]

Finalmente, a 5 de abril de 1865, ocorreu a consagração do novo cemitério, então batizado de São João Batista, e foi decretado o fechamento definitivo do São Casemiro, menos de vinte anos após sua inauguração (35). Assim, na sessão ordinária de 10 de julho de 1879 da Santa Casa de Misericórdia, foi autorizado o aterramento do São Casemiro “com areia do morro que se acha junto a este” (36), para dar início às obras daquela que seria a primeira estação de trens de Fortaleza, a Estação Central.

A edição de 5 de março de 1880 do jornal Cearense: órgão liberal, por sua vez, trazia deliberação da mesa administrativa da Santa Casa, por ocasião de sessão ordinária ocorrida no dia 26 de fevereiro, pela qual informava acerca da construção, no São João Batista, “de um grande jasigo para os restos mortaes que existião naquelle cemitério” (37). Esta mesma mesa solicitava em nota

“Àquelles que tiverem documentos que provem a posse do terreno a título perpetuo, os queirão apresentar […] a fim de ser designado outro terreno no novo cemitério para o qual sejão trasladados os restos mortaes da pessoa, a que se refira o documento, ficando para isso marcado o prazo improrrogável de trinta dias, a contar desta data” (38).

No já citado mapa da cidade de Fortaleza, assinado por Adolpho Herbster (1888) este cemitério aparece recuado a trezentos palmos (cerca de 7m), aproximadamente, das quadras a sudoeste, e a 1500 palmos (cerca de 340m) da costa atlântica a nordeste. Neste mesmo mapa, o Largo Boulevard do Jacarecanga, atual avenida Filomeno Gomes, separava-o do futuro loteamento a oeste. Em suma, esta necrópole, encontrava-se segregada no tecido urbano, recuada dos quatro lados, numa região da cidade até então pouquíssimo adensada, em acordo, portanto, com os mais modernos preceitos urbanísticos sanitaristas vigentes àquela época.

Antiga Estação Central de Fortaleza
Foto Emanoel de Lucena, 2022

Adolpho Herbster, planta da cidade de Fortaleza Capital da Provincia do Ceará, 1888
Editado pelo autor [Acervo Wikimedia Commons]

Considerações finais

Em síntese, o percurso histórico aqui delineado, ao utilizar a cidade de Fortaleza como objeto empírico, buscou traçar um panorama das transformações urbanas e sociais que marcaram o trato dos sepultamentos no Brasil no século 19. Desde os enterramentos nos interiores e arredores das igrejas, até a construção dos primeiros cemitérios civis, a trajetória aqui exposta reflete a confluência de fatores religiosos, sanitários e urbanísticos, rumo à adaptação da cidade brasileira às novas exigências de salubridade pública, buscando encontrar um ponto de equilíbrio na convivência entre a tradição e a ciência.

Isto posto, a citação que serve de epígrafe a este artigo, ao resgatar o desmaio da esposa do presidente Moraes Sarmento, além de ilustrar a atmosfera tétrica e insalubre dos hábitos funerários da época, introduz a discussão acerca dos sepultamentos na Fortaleza oitocentista. A falta de documentação concreta sobre este episódio, conforme mencionado no início do texto, torna-o quase lendário, mas esse evento é significativo para a história local, uma vez que pode ser considerado o marco inicial das reflexões sanitaristas no contexto urbano fortalezense, o qual culminou com a fundação do primeiro Cemitério extramuros da capital: o São Casemiro. Embora de vida curta, o São Casemiro desponta, na historiografia local, como testemunho eloquente na capital do Ceará da secularização, então em curso, do trato dos sepultamentos no Brasil.

A fundação do São João Batista, por sua vez, revelava a consolidação dessa secularização no contexto fortalezense. Neste sentido, cabe destacar que a decisão de batizar a principal via que lhe dá acesso com o nome de um dos médicos envolvidos na escolha do local do novo cemitério, Castro e Silva, reforça o reconhecimento da contribuição científica nas reformas urbanas, ao tempo em que revela, também, uma secularização do espaço urbano, que buscava desvencilhar-se do costume colonial de atribuir aos logradouros nomes que faziam menção ao quotidiano da cidade. Nestes termos, convém esclarecer que referida Rua era conhecida como Travessa das Flores (39), pois era por onde se percorriam os cortejos fúnebres da Sé ao antigo Cemitério, São Casemiro e, posteriormente ao São João Batista (40). Este último devidamente segregado, em respeito à ciência, e consagrado, em favor da tradição, foi logo aceito sem resistências pela população de Fortaleza, conforme consta na matéria de 28 de janeiro de 1850 do jornal O Cearense:

“O bom juiso do povo da nossa capital aceitou a inovação sem murmurar, não prevalecendo em seo animo a suprestição, que fas julgar como menos proprios para o descanso dos restos mortaes de nossos paes e parentes os cemiterios do que as igrejas, cujo pavimento é quotidianamente calcado pelos pés dos vivos” (41).

A singela capela do local, por sua vez, afirmava a consagração do espaço. Edificando-a, já a partir do lançamento da pedra fundamental do cemitério, buscava-se suprir a necessidade, herdada da tradição colonial, de se descansar pela eternidade mais próximo dos santos: se não mais nas igrejas urbanas, por determinação estatal, que fosse num espaço sacralizado por alguma autoridade eclesiástica, um campo “santo”. Reproduzindo palavras de Henrique Sérgio de Araújo Batista, para complementar esta reflexão, “se interdita foi a igreja para sepultamentos, uma tática é reproduzi-la nos cemitérios públicos para que os enterramentos continuem a acontecer sob sua proteção” (42). No São João Batista de Fortaleza, os enterramentos nas dependências da capela continuam até hoje, não em seu interior, mas em carneiros externos, situados junto ao embasamento sobre o qual a edificação é assentada.

Cemitério São João Batista. Fundos da capela
Foto Emanoel de Lucena, 2022

Cemitério São João Batista. Detalhe de carneiro ao sopé da capela
Foto Emanoel de Lucena, 2022

notas

NA — O conteúdo deste artigo compõe contribuição do autor na instrução de tombamento do Cemitério São João Batista de Fortaleza CE, elaborada junto ao corpo técnico responsável da Coordenadoria do Patrimônio Histórico-Cultural — CPHC, da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza CE — Secultfor, e aprovada pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico-Cultural — Comphic em reunião ordinária datada de 1 de fevereiro de 2023.

1
NOGUEIRA, João. Enterros no tempo antigo. Revista do Instituto do Ceará, anno XLVIII , 1934, p. 76. Grifo do autor.

2
Cf. ZORZANELLI, Rafaela Teixeira; CRUZ, Murilo Galvão Amâncio da. O conceito de medicalização em Michel Foucault na década de 1970. Interface: comunicação, saúde e educação, n. 22 (66), Botucatu, 2018, p. 721-731.

3
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Katia. Danação da Norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1978, p. 155.

4
Idem, ibidem. Grifo do autor.

5
JOÃO VI, Rei de Portugal. Carta régia. Destinatário: Fernando José de Portugal, vice-rei e capitão-general do Estado do Brasil no Rio de Janeiro. Palácio de Queluz, 14 jan. 1801. Biblioteca Digital Luso-Brasileira <https://bit.ly/3TfLkyL>.

6
ALMEIDA, Rafaela Carolina Noronha; MENDES, Cibele de Matos. O processo de luto no século XIX: história e memória na literatura, nos jornais e epígrafes, tumulares de Salvador — BA. XI Semana de Mobilização Científica. Salavor, Universidade Católica do Salvador, 2018, p. 1 <https://bit.ly/49vrLIq>.

7
LUCENA, Felipe. História do Cemitério dos Ingleses, o mais antigo do Rio. Diário do Rio, Rio de Janeiro, 17 fev. 2018 <https://bit.ly/3TdUsDX>.

8
Esta obra foi diretamente inspirada na Memoria sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos cadaveres no templo e methodo de os prevenir, de autoria do cientista português Vicente Coelho de Seabra Silva Teles, publicada em Lisboa, em 1800. Esta última serviu de base para elaboração da supracitada Carta Régia de 1801.

9
Cf. PICANÇO, José Correia. Ensaio sobre os perigos das sepulturas dentro das cidades e nos seus contornos. Rio de Janeiro, Impressão Regia, 1812.

10
Imperio do Brasil. Diário Fluminense, n. 117, Rio de Janeiro, 18 nov. 1825, p. 473.

11
Imperio do Brasil. Lei de 1º de Outubro de 1828: Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Planalto, Brasília <https://bit.ly/3SUmsey>.

12
BABIERI, Jeverson. A cerimônia de adeus do atraso colonial. Jornal da Unicamp, Campinas, ano 20, n. 300, set. 2005, p. 9.

13
PAULINO, Nicolas. Conheça a história do cemitério de Fortaleza que teve apenas um enterro. Diário do Nordeste, Fortaleza, 24 ago. 2022 <https://bit.ly/3SW1kEL>.

14
BEZERRA DE MENEZES, Antônio. Descripção da Cidade de Fortaleza. Revista Trimensal do Instituto do Ceará, ANNO IX, 1895, p.197. Grifo do autor.

15
O CEARENSE. Governo da Provincia: expediente do dia 15 de dezembro. O Cearense, n. 112, 23 dez. 1847, n. p.

16
CARREIRA, Castro. Chronica Médica da cidade do Ceará. Id., n. 122, 3 de janeiro de 1848. p. 4.

17
Idem, ibidem.

18
BEZERRA DE MENEZES, Antônio. Op. cit.

19
Idem, ibidem.

20
CARREIRA, Castro. Op. cit., p. 4.

21
Idem, ibidem.

22
BABIERI, Jeverson. Op. cit.

23
O CEARENSE. Governo da Provincia: expediente do dia 21 de março. O Cearense, n. 137, 27 mar. de 1848, n. p.

24
Idem, ibidem.

25
BEZERRA DE MENEZES, Antônio. Op. cit., p. 198.

26
Idem, ibidem.

27
Idem, ibidem, p. 198-199. Grifo do autor.

28
Apud BATISTA, Henrique Sérgio de Araújo. Assim na morte como na vida: arte e sociedade no Cemitério São João Batista (1866-1915), p. 48.

29
Idem, ibidem.

30
BEZERRA DE MENEZES, Antônio. Op. cit., p. 199.

31
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Relatório com que foi entregue a Administração da Província. Cearense, anno XIX, n. 1839, 20 jun. 1865, p. 1. Grifo do autor.

32
Dez contos, duzentos e nove mil e novecentos réis.

33
Idem, ibidem.

34
BEZERRA DE MENEZES, Antônio. Op. cit., p. 197.

35
Idem, ibidem, p. 199.

36
SANTA CASA DE MIZERICORDIA. Sessão ordinária de 10 de julho de 1879. Cearense: orgão liberal, anno XXXIII, n. 102, 19 set. 1879, p. 4.

37
CAVALCANTI, José Pompeu de Albuquerque; Camara, João Eduardo Torres; MOREIRA, João da Rocha; ROCHA, Guilherme Cesar da. Santa Casa de Misericórdia. Cearense: orgão liberal, anno XXXIV, n. 23, 5 mar. 1880, p. 4.

38
Idem, ibidem. Grifo do autor.

39
FALCONERY, Lucas. Beco das Almas, Rua do Fogo e Travessa das Flores: conheça nomes antigos de 50 vias de Fortaleza. Diário do Nordeste, Fortaleza, 10 nov. 2022 <https://bit.ly/4bQY1qW>.

40
Idem, ibidem.

41
O Cemitério. O Cearense, n. 302, 28 jan. 1850, p. 2.

42
BATISTA, Henrique Sérgio de Araújo. Op. cit., p. 74.

sobre o autor

Emanoel Victor Patrício de Lucena é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal da Paraíba (2017) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da mesma instituição (2022). Possui experiência em docência nas áreas de teoria e história da Arquitetura e do Urbanismo, representação gráfica e planejamento urbano e regional (Ufersa/2021-2022; Unichristus/2023 _). Publicou “De Haussmann a Le Corbusier: o processo de fragmentação do tecido urbano e a ‘explosão’ da quadra na cidade moderna”, no periódico Resenhas Online (Vitruvius, 2019), e “A presença do Neocolonial: a versão luso brasileira e a variante hispano-americana”, na coletânea Entre o rio e o mar: arquitetura residencial na cidade de João Pessoa (Editora UFPB, 2016).

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