Neste texto nos debruçamos sobre as relações entre os sistemas de caixas e de colunas que comparecem em algumas obras, principalmente residenciais, projetadas pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas, entre os anos 1940 e 1960. Referimo-nos especialmente ao uso e disposição dos elementos de sustentação vertical e à relação simbólica do invólucro (a caixa que contêm a casa ou algumas de suas partes) com a concepção da forma arquitetônica resultante. Ainda que se trate de uma redução, pois evidentemente as obras do arquiteto são bem mais complexas e não poderiam ser reduzidas só a esses dois sistemas (1), eles dão conta da forma organizativa do objeto arquitetônico. Destarte, podem ser entendidos como chaves interpretativas que assemelham o processo de concepção do projeto (nos termos colocados pela arquitetura moderna) aos elementos de composição (nos termos colocados pela arquitetura clássica), onde a arquitetura é entendida como uma arte da disposição capaz de produzir um único objeto percebido como proporcionado e completo.
Pelo menos desde a Antiguidade, a coluna tem sido um elemento importante da, e na, arquitetura ocidental. Desde os construtores gregos, que a transformaram em elemento principal do seu sistema compositivo, a coluna deve ser assumida, ao mesmo tempo, como elemento simbólico e como determinante do estilo. Ela é, também, referência para as proporções que fixam o tamanho das partes do edifício e, por tanto, depositária ontológica de sua forma final. Mas, sobretudo, ela determina um caráter identitário (le catractère), capaz de dar à obra uma personalidade. Desde Vitrúvio e, com maior certeza, desde Serlio, que, como afirma o historiador Joseph Rykwert (2), foi quem canonizou as ordens clássicas, se reconhece nelas o padrão da organização totalizadora, mas também o sentido simbólico que dá identidade a cada obra projetada ou construída. A coluna mantém com a arquitetura relações que são ao mesmo tempo alegóricas (metáfora), simbólicas (interpretação), geométricas (proporção), estruturais (tanto no sentido da sustentação como da ordem) e construtivas (sistémicas e de materiais).
Por outro lado, a caixa é também um elemento fundamental no entendimento da arquitetura, que ontologicamente remete à cabana primitiva (3). Nessa chave interpretativa entende-se como um componente fechado que é capaz de proteger um interior (cômodo) de um exterior (espaço). A caixa resolve a função primeira da construção: a de ser um abrigo. Como elemento de proteção, manifesta uma natureza artificial que se antepõe à natureza natural, em definitiva, revela a transmutação (interior fechado — exterior aberto) que dá sentido à função alegórica básica da arquitetura. A caixa remete, ainda, a um recurso de conexão, como elemento volumétrico, que dá corporeidade à arquitetura, não só sugerindo um interior diferente de um exterior, mas exibindo uma massa que revela e expõe essa relação. A caixa é capaz de sugerir até um caráter, pois se organiza através de um sistema de proporções bastante apurado, cuja origem também se encontra nas indicações de Vitrúvio, mas que se desenvolve após as experimentações da arquitetura residencial de Andrea Palladio, e que chega até o século 20, pelo menos, com as especulações modulares de Le Corbusier.
A teoria da arquitetura clássica, a tratadística, tratou deste sistemas, mas devemos reconhecer que a aproximação moderna à valorização da importância projetiva desses sistemas, tanto o das colunas como o das caixas, se deve aos estudos que Colin Rowe (4) apresentou em seus artigos sobre o neoclassicismo e a arquitetura moderna, nos anos 1970 (5). Nesses textos, o historiador e crítico inglês estabelece que esses sistemas devam ser pensados sempre de forma separada, ainda que em alguns casos possam formar parte de um sistema único, como na explicação e aplicação dos Cinq points de l'architecture moderne (Le Corbusier, 1927). Embora isto seja certo, a caixa (o bloco, nos termos de Rowe) (6) mantém sua independência formal e resulta de difícil consubstanciação com o sistema de colunas. O caso de Mies van der Rohe, citado por Rowe (7), parece fornecer um exemplo paradigmático dessa difícil relação (8). Desde um ponto de vista metodológico, nas reflexões e análises que apresentamos neste texto, manteremos esse entendimento.
Colunas e caixas, 1940-1949
Não há dúvidas sobre a dedicação que João Batista Vilanova Artigas concedeu em favor das colunas em seus projetos, já desde os anos 1940. O pequeno pilarete tripartite de madeira do canto sul da Casinha (1942) antecipava a preocupação com o elemento estrutural isento da coluna na formulação plástica das obras do arquiteto. O pilar corbusiano também formou parte das preocupações compositivas, como se pode ver no sistema de pilotis aparentes do canto sul do edifício Louveira (1946), onde as grandes colunas se revelam de forma majestosa dando imponência (e leveza) à caixa compacta do edifício (9). Ainda que os dois blocos do conjunto se encontrem sobre pilotis, o bloco sudoeste (rua Piauí esquina praça Vilaboim) apresenta as colunas de uma forma expressiva, revelando o sistema estrutural, claro, mas também indicando o direcionamento do acesso (a coluna marcando a escadaria que se abre de forma diagonal) ou, ainda, criando um bosque de acesso que se confunde com o ambiente do jardim que forma o miolo do conjunto, devido à altura das colunas (quase dois pés-direitos), a sua materialidade (pastilhas marrons) e a suas proporções (diâmetro pela altura), que conferem ao sistema de colunas um sentido alegórico de arvoredo.
Temos o pilar isento da perspectiva da sala da casa Antônio Luiz Teixeira de Barros (1946) (10), que não é outra coisa que uma escultura enriquecedora do ambiente. Corbusiano na forma e na sua materialidade, mas miesiano na sua expressão individual, na sua solidão. Essa casa, ainda, nos oferece o espetáculo das colunas metálicas da marquise que dá para o jardim: onde uma esbelta coluna se apresenta sozinha numa ponta, outras duas juntas (uma coluna dupla) se acomodam ao lado da casa e finalmente uma elegante estrutura em “V”, usando os mesmos tubos (dois, nesse caso), suporta o lado maior da laje (11).
As colunas cilíndricas, que podem ser consideradas uma alusão à arquitetura corbusiana, mas que adquirem em Artigas um caráter próprio, se repetem em várias casas, sempre mantendo o sistema de caixa e coluna separados (12). Às vezes, como nas casas Trostli (1948) ou Czapski (1949), o sistema de colunas serve de apoio à caixa (13). O sistema foi usado também em edifícios, como nos casos da Sociedade Autolon e Cine Ouro Verde (1948) ou na Casa da Criança (1950). Em outros casos, como na segunda Casa do Arquiteto (1949), os sistemas se entrelaçam sem deixar suas respectivas personalidades se misturarem, ajuda aqui a diferenciação da cor das colunas, que resulta um recurso formal muito poderoso quando o arquiteto quer diferenciar os sistemas, como no caso do Louveira.
Também existem obras nas quais o sistema de caixa se impõe sobre o de colunas, quase anulando-o. Podemos observar esta situação nas casas Benedito Levi (1944), Heitor de Almeida (1949), D’Estefani (1950), ou, ainda, na solução Sachlichkeit do conjunto de 4 casas para Jamie Porchat Queiroz Mattos (1944), na rua Sampaio Vidal.
Colunas e caixas, 1950-1959
As casas dos anos 1950 são diferentes. Os sistemas de colunas e de caixas se redimensionam de outra forma. Não temos mais o sistema de superposição da caixa sobre pilotis, de lembrança corbusiana. Ou, pelo menos, não é tão simples e direto de perceber. A casa Olga Baeta (1956), no Butantã, é a primeira dessa nova safra a propor uma recomposição formal (e estrutural) dos sistemas. Artigas prioriza nela o sistema da caixa que se sobrepõe às colunas, abraça os pilares (que não são mais cilíndricos) pelo exterior, apanhando-os em seu interior. Essa estratégia compositiva tem um impacto enorme no entendimento geral da casa, pois sendo a caixa agora aberta e externa, passa a conter a construção como um todo, isto é, o sistema de colunas se subordina pela inclusão ao sistema da caixa. Este novo processo compositivo (14) se aprimora, num sentido antropofágico, na segunda casa Mário Taques Bittencourt — MTB-II (1959), pois nela a caixa engole o sistema de colunas na sua própria materialidade. Aqui o salto é enorme, mas não deixa de ser uma consequência lógica das propostas que se experimentam na casa Baeta.
A casa MTB-II representa o momento no qual o domínio do sistema da caixa chega à maturidade em Artigas. Não só o programa se resolve embaixo de uma cobertura única, mas também dentro de um único invólucro que serve, ao mesmo tempo, como elemento de fechamento, como elemento estrutural e como definidor formal (volumétrico) da arquitetura, ainda que a fachada dos dormitórios se encontre recuada. A unicidade do objeto arquitetônico está preservada e reverenciada com a predominância do sistema da caixa sobre todos os outros elementos de composição que ficam assim hierarquicamente dependentes dele. A coluna corbusiana desaparece de vez da proposta compositiva do arquiteto, deixa de ser um elemento de edificação útil tanto do ponto de vista formal como construtivo.
Contudo, Artigas não abandona a coluna, entendida desde um ponto de vista simbólico. Ela se deixa ver na marcação do concreto da empena que forma a caixa, quando, sutilmente, triangula o apoio sugerindo que no losango que se desenha sobre o concreto há uma coluna (15). A deliciosa contradição entre o peso do sistema da caixa e a leveza do sistema de colunas entra em conflito no lugar onde há de “cantar o ponto de apoio” (16), isto é, onde ela toca o solo, onde se apoia. Mas, se retomamos a frase de Auguste Perret, que deu lugar ao memorável diálogo entre Flávio Motta e Artigas, perceberemos que Artigas estava sendo fiel, até às últimas consequências, quando deixa surgir o rasto (face, rosto) da coluna na empena da caixa:
“Se a estrutura não é digna de permanecer visível, o arquiteto cumpriu mal a sua missão. Quem esconde um pilar, uma parte de sustentação, seja dentro ou fora, priva-se do elemento mais nobre da arquitetura, do seu mais belo ornamento. A arquitetura é a arte de fazer cantar o ponto de apoio” (17).
O que Artigas faz na casa MTB-II é justamente recuperar “[le] plus noble élément de l’architecture, son plus bel ornement”, a coluna, e colocá-la em destaque sobre a caixa. Rompe com essa atitude inventiva o antagonismo dos sistemas que passam a integrar-se numa mistura de caixa-coluna totalmente inovadora e inédita.
Colunas e caixas, 1960-1964
O achado compositivo da casa MTB-II parece ser também o ápice dessa especulação. Ainda que o princípio (caixa-coluna) não se desintegra totalmente, no sentido de voltar à separação dos sistemas, a experimentação com diferentes nuances de separação, de juntas ou de marcações, parece acontecer nos projetos de 1961: a Garagem de Barcos e o edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP.
A Garagem de Barcos não é em realidade um sistema de caixa, mas um sistema de pórticos paralelos. Num sentido amplo do termo estrutura, a Garagem tem mais a ver com projetos como o do Ginásio de Itanhaém (1959), ainda que só se trate de um par de pórticos não perpendiculares ao corpo do edifício, mas que o acompanham longitudinalmente. Ainda assim, para o que aqui queremos analisar, esses pórticos seguem as mesmas diretrizes que foram estabelecidas na casa MTB-II. A gigantesca empena despenca em alguns pontos sobre o chão, facetando-se de forma sutil para se ajustar às necessidades e requerimentos de uma coluna, sem deixar, contudo, de ser empena. As dimensões dos elementos de apoio são tais que não temos como confundi-las com um sistema de colunas. Ainda assim, Artigas força sua volumetria para que se diferenciam da superfície própria da empena, reforçando seu papel de coluna, de uma forma, por certo, bastante parecida à da casa MTB-II.
No edifício para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária, voltamos a estar frente aos sistemas de caixas e colunas, mas o sistema unificado, referido acima, se debilita. As colunas voltam a conformar um sistema que se bem não é totalmente independente da caixa, como acontecia nas obras dos anos 1950, ele tampouco abraça a sofisticação compositiva da casa MTB-II e muito menos da Garagem.
As colunas da FAU USP surgem da empena, é certo, e podem ser entendidas como sua prolongação natural, como o faz Flávio Motta (18), que interpelou o arquiteto nesse sentido:
Quando você projetou as colunas da FAU, escolheu, em meu entender … você fez uma pirâmide […] Que tem uma base sólida, uma das figuras mais sólidas que há. De repente essa pirâmide acaba num ponto e existe um outro ponto virtual aqui, no centro da pirâmide. Aqui tem essa parede, que desce, vai se afinando até encontrar-se com a coluna. Nem sei se isso é coluna, porque é como se eu dissesse que é um elemento de vedação, a parede, procura ser coluna. E a coluna também quer ser vedação.
Mas, apesar da sutileza poética da descrição de Motta, e das indefinições formais que acometem tanto à coluna como à caixa, que de fato se misturam de uma forma difusa porque não existe junta que separe um elemento do outro, na FAU USP podemos perceber que há colunas e que também há caixa, o que não é possível de verificar nas obras de 1959. Os desenhos do Caderno dos Riscos Originais (19), especialmente os das folhas 16 e 17, parecem indicar que o desejo inicial de Artigas, para a definição volumétrica desse edifício, provavelmente tenha sido o sistema da caixa.
Os croquis do processo projetual evidenciam de forma clara que a ideia de uma grande caixa foi dominante sobre o sistema de colunas, visto que estas praticamente desaparecem nas representações, como acontece na folha 25 (20), onde o arquiteto só representou o grande prisma flutuando sem nenhum apoio. Ainda assim, mesmo quando aparecem algumas colunas mais próximas do resultado final, como no desenhos das folhas 8 e 9 (21), o sistema da caixa é preponderante. Finalmente, no croquis do verso da folha 8, Artigas pensou um sistema de colunas normais (ainda que pequenas), pilotis talvez, que suportam um grande entablamento, mas a ideia parece ter sido rapidamente abandonada.
Colunas e caixas, 1967
A casa Elza Berquó (1967) é uma lição de arquitetura. Inova tanto desde um ponto de vista formal, como construtivo e estrutural, e ainda afirma um programa contestatário dos usos e costumes da casa burguesa tradicional da época em São Paulo. Deixa de lado também as tipologias utilizadas pelo arquiteto até então, constituindo-se como uma ruptura ao mesmo tempo em que deveria ser percebida como uma superação de alguns dos postulados já consagrados por Vilanova Artigas.
Contudo, não se trata de uma superação no sentido convencional do termo, isto é, como avanço que esquece seu antecessor, mas no sentido de um desvencilhar-se de estruturas de pensamento que já não faziam sentido para ele depois da debacle do golpe de estado de 1964 e os efeitos que teve sobre sua vida pessoal.
Desde o ponto de vista dos sistemas de caixa e colunas a casa Berquó também oferece lições importantes. A caixa é o sistema principal, ainda que ela não resulte óbvia, como no caso da FAU USP. Sua solução alegórica se vincula ao sistema dos famosos lambrequins, que fecham uma caixa externa onde a casa se inclui:
Consegui nessa casa realizar, como se diz, uma citação e versar na cobertura de concreto armado a temática do lambrequim. Lambrequim é raizinha de madeira que vem pro lado de fora. Ele quer dizer que a casa começa um pouquinho antes e que o lambrequim dá o risco final da casa. Depois dele vem a casa (22).
A caixa formada pelo lambrequim é o risco final da casa, isto é, ele finaliza desde um ponto de vista arquitetônico a volumetria da casa, e, assim, a casa não pode ser entendida a partir de suas paredes, mas de seu beiral. Nesse caso, o beiral não é, como costumeiramente, uma prolongação horizontal, mas a caixa formada por uma placa de concreto que cai aqui, tem um furo lá e recorta a porta, dá as proporções que bem entende (23).
A casa Berquó é similar a uma Matrioska, aquele conjunto de bonecas russas, umas dentro das outras, pois parece resultar de uma sucessão de caixas que contém a vida da casa. A caixa externa é o sistema de lambrequins, seguido do sistema de fechamentos externos (as paredes) seguido de um segundo sistema de paredes internas que finalmente termina ad oculum interiorem, o vazio pelo qual entra a luz na casa. Em geral este vazio é denominado como “pátio”, até porque o próprio arquiteto afirmou que faria “um modelo espanhol de casa que tem pátio no meio” (24), mas ele não é precisamente um pátio. Ele funciona mais como um claustro, um vazio limitado por colunas, que se debruça sobre um jardim. As colunas deste claustro são a virtualização da última caixa do sistema de caixas da casa. Artigas finaliza a casa interiorizando o sistema de colunas que denota o último sistema de fechamento da casa, cuja abertura é zenital.
Ainda que o sistema de caixas seja prioritário na composição da casa, o grid de colunas se organiza de forma a potencializar o sistema simbólico que as colunas tinham no passado clássico, competindo com a caixa só em um nível alegórico, pois em realidade os sistemas se complementam. Todos os elementos da edificação (élémens), assim como as partes (parties) se combinam (ensemble) de forma precisa, seguindo uma ordenação que respeita as proporções gerais da construção e assim, respeita certamente a razão, ainda que pensamos que também respeitam o gosto, não só o gosto erudito, mas o popular também.
As colunas interiores, as do claustro, simbolizam a natureza dominada, ou ainda uma citação erudita ao abade Laugier, e a cabana primitiva que para ele desenhou Eisen. Ao mesmo tempo, Artiga se apodera dos avanços tecnológicos de sua época, de uma forma casual, mas também irreverente, quando afirma que vai “botar as coisas de neoprene embaixo e outra em cima, [para] distribuir a carga direitinho” (25).
As colunas que de fato estruturam a casa são tratadas de forma hierarquizadas, assim utilitária. Afirmava Artigas que iria fazer “uma casa […] de favela que não tem estrutura pré-determinada, que é cafajeste estruturalmente, onde o canto for perigoso nós vamos colocar uma coluna. Não vai ter racionalismo sacana aí” (26). As colunas utilitárias se encontram incluídas nas paredes, algumas são aparentes, outras não, enfatizando uma ordem estrutural entre elas. Assim, apesar da forte declaração do arquiteto, o sistema não é nada “cafajeste”, pois as colunas se encontram alinhadas num perfeito sistema reticular e o fato de terem seções diferentes, dependendo da carga que recebem, não deixa de ser um sintoma de racionalidade construtiva. Mas, a provocação é interessante do ponto de vista do rechaço à assimilação da coluna com um sistema formal que as identifica como idênticas (como em Le Corbusier e Mies van der Rohe, ainda que este último tentou romper a imagem da colunata contrapondo a ela o sistema das divisórias).
Aqui temos um sistema parecido com o das ordens clássicas com diferenciação entre colunas dóricas, jônicas e coríntias, umas mais robustas (dóricas) que outras. Mas, o complexo sistema de colunas que Artigas propõe na casa Berquó não termina por aí. Ainda temos as colunas antropomórficas, não na dimensão formal (como foram as cariátides), mas na dimensão alegórica que incorporar nesse elemento tão particular uma personalidade, neste caso, a de “Antônio”:
Tem um pilar que eu deixei na porta de entrada, como eu estava elaborando essas coisas eu disse para a Elza: isso aqui é um pilar chamado Antônio. Na porta eu coloquei um troço que se chamava Antônio, que você cumprimenta todo dia: como vai Antônio! Ela não levou a sério a brincadeira, mas o Antônio está lá (27).
Antônio e um symbolica paradigmata (exemplo simbólico) (28) do poder representativo da coluna, que não em vão sempre esteve ligada à figura humana, desde os primórdios gregos até a modernidade, como fica evidente aqui. Aqui a coluna deixa de ser funcional para ser alegórica, abandona seu destino estrutural para assumir seu sentido humano, como lembrança de um tempo em que a arquitetura continha ainda um significado para seus habitantes.
Para uma última reflexão
Artigas expõe sua pródiga inventividade na casa Berquó, dando uma lição de arquitetura sobre os diferentes sistemas de colunas e caixas que podem ser usados numa obra com múltiplas variações, depois de mais de duas décadas trabalhando com os sistemas de caixas e de colunas. Demonstra com esse último exercício de experimentação construtiva e formal a poderosa capacidade de compor, isto é, de combinar volumétrica, espacial e simbolicamente os elementos da edificação que esses sistemas caracterizam, e em certa mediada determinam, no processo de concepção da obra de arquitetura.
A casa Berquó sintetiza — talvez pela última vez na produção de Artigas —, o jogo inventivo e experimental que o arquiteto desenvolveu durante trinta anos de exercício da profissão. Assim como a casa MTB-II foi o ápice inventivo do sistema de caixas, a Berquó deve ser considerada o resultado decantado de uma experiência de vida e de concepção arquitetônica requintada, última pérola da longa produção de Artigas, que começou com as elegantes variações dos pilotis e suas relações complexas e contraditórias com as caixas.
Os experimentos de 1966-1967, incluem ainda a casa Mendes André, que não abordamos aqui, porque trata de um processo de depuração (e não de complexidade), onde o arquiteto deu continuidade a sua procura por uma redução drástica dos pontos de apoio, como já tinha proposto na casa Ivo Viterito (1962-1963). Sabemos que Vilanova Artigas continuou a produzir, com excelente qualidade e capacidade profissional, por mais quinze anos, casas como as que projetou para Telmo Porto (1969) ou para Ariosto Martirani (1969-1975), ou as mais tardias, ainda, como as casas Mario Taques Bittencourt III e Julia Romano, de 1981, sem mencionar sua última grande obra, a Rodoviária de Jaú (1973-1975), todas elas eloquentes demonstrações desse manancial inventivo. Contudo, o estranhamento da singela casa Berquó continua sendo único, certamente pelas circunstâncias vivenciais da época, a angustiante ditadura militares que se impusera pela força em 1964 e seu rastro de repressão, mas sugerimos que também ela é o resultado de uma longa experimentação que chegou ao fundo de uma luta entre sistemas compositivos, conseguindo uma integração inusitada, e talvez por isso, inquietante ainda que familiar (Unheimliche).
notas
NA — Este trabalho foi apresentado originalmente sob o título “Como vai Antônio!”, no 6º Seminário Docomomo São Paulo, em 2018, sendo publicado nos anais do evento; porém, o trabalho publicado, por decisão editorial dos organizadores, não continha imagens, razão pela qual decidimos publicar esta nova versão, revisada e aumentada, que inclui as figuras.
1
Outros sistemas já foram estudados nas obras de Artigas, como os de rampas, de pórticos, ou ainda de pátios. Nenhum deles é excludente dos outros, ou capaz, por si só, de explicar a obra do arquiteto, tampouco é assim com os que aqui estamos analisando, mas caixas e colunas parecem estar mais perto da definição formal da casa que os outros mencionados.
2
RYKWERT, Joseph. The Dancing Column. Cambridge/London, The MIT Press, 1996, p. 4.
3
A cabana de Adão é sua formulação simbólica, ainda que não fosse sempre representada como um elemento fechado, como se pode ver na gravura de Charles Eisen representando a Cabana de Adão no Essai sur l’Architecture (1755) de Marc-Antoine Laugier: quatro troncos de árvores, que se assemelham a colunas soltos na paisagem.
4
Especialmente, ROWE, Colin. Manierismo y arquitectura moderna y otros ensayos. Barcelona, Gustavo Gili, 1978.
5
Nos referimos aos anos 1970, porque foi em 1976 que foram publicados em livro os textos de Colin Rowe (1978), contudo, seu artigo “The Mathematics of the Idela Villa, Palladio and Le Corbuiser compared”, foi publicado originalmente em 1947 na revista Architectural Review.
6
Não usaremos o termo “bloco” porque faz referência aos blocos residenciais, típico do urbanismo dos anos 1920. Artigas, usou o termo em referência a uma adaptação do programa, mas que da forma, cuja finalidade era enfrentar o problema da edícula. Ver, FERRAZ, Marcelo Carvalho (org.). Vilanova Artigas. Lisboa, Blau/Instituto Lina Bo e P. M. Bardi/Fundação Vilanova Artigas, 1997, p. 82.
7
Idem, ibidem, p. 141.
8
De acordo com Colin Rowe, “nos anos vinte […] Mies não tinha encontrado uso algum para o bloco […] teve que esperar até que chegou a Chicago para que o bloco se convertesse na sua obsessão”, abandonando o sistema de colunas. ROWE, Colin. Op. cit., p. 141. Tradução dos autores.
9
Ainda que os volumes do conjunto não são caixas fechadas, as enfáticas empenas cegas que se debruçam sobre a praça Vilaboim, reforçam a ideia do trabalho com esse sistema.
10
FERRAZ, Marcelo Carvalho (org.). Op. cit., p. 53.
11
Idem, ibidem, p. 54.
12
Devemos lembrar que na teoria corbusiana, não há menção ao sistema de caixas, os Cinq poits só mencionam os pilotis, o toit-terrasse, a plan libre, a fenêtre en bandeau e, finalmente, a façade libre.
13
Ainda que podemos rastrear esta ideia dos pilares evidenciando-se como suportes da caixa, como acontece na Villa Savoye (1928-1929), de Le Corbusier, a proposta de Artigas é bem outra, uma vez que não segue os preceitos dos Cinq Points, nem se preocupa com as proporções rígida do sistema áureo que Le Corbusier usou nessa obra, como apontado por Rowe (1978) para Garches, mas exerce uma liberdade compositiva com grande imaginação, como fica evidente especialmente na casa Czapski.
14
Neste texto assumimos os sistemas de colunas e de caixas como “elementos de composição”, aproximando nosso entendimento ao de Jean-Nicolas Durand (1802). O arquiteto francês trabalhava com elementos (élémens), partes (parties) e combinações (ensembles). Os elementos de composição se relacionavam com essa capacidade combinatória que o arquiteto devia desenvolver. Explicando o que os alunos de arquitetura deveriam fazer para aprender a compor, Durand, propõe que “se familiariseront avec les formes, avec les proportions des éléments et, ce qui importe davantage, avex les diverses combinaisons de ces mêmes élémens. Alors, quand ils composertont, ils verront s’offrir d’elles-mêmes, à la palce qui leur sera propre, celles de ces formes, de ces proportions et de ces combinaisons que conviendront le mieux au sujet; enfin, avc bien moins d’efforts et de travail, ils feront des projets plus capables de satisfaire le goût e la raison”. Ver DURAND, Jean-Nicolas-Louis. Précis des leçons d'architecture. Vol. 1. Paris, École Polytechnique, 1802, p. 104-105 <https://bit.ly/3UX6jYu>.
15
JOÃO VILANOVA ARTIGAS. Revista 2G, Barcelona, Gustavo Gili, n. 54, 2010, p. 59.
16
Repete Artigas a máxima de Auguste Perret (1874-1954). Ver, ARTIGAS, João B. Vilanova. A função social do arquiteto. São Paulo, Fundação Vilanova Artigas/Nobel, 1989, p. 71-72.
17
Do original,“si la structure n'est pas digne de rester apparente, l'architecte a mal rempli sa mission. Celui qui dissimule un poteau, une partie portante, que ce soit à l'intérieur ou à l'extérieur, se prive du plus noble élément de l'architecture, de son plus bel ornement. L’architecture, c’est l’art de faire chanter le point d’appui”. Ver TERRES DE FEMMES. 31 mai 1933. Conférence d’Auguste Perret <https://bit.ly/3wyRoJK>. Tradução dos autores.
18
Citado em ARTIGAS, João B. Vilanova. Op. cit., p. 71.
19
ARTIGAS, João B. Vilanova. Caderno dos riscos originais. Projeto do edifício da FAU USP na cidade Universitária. São Paulo, FAU USP, 1998.
20
Idem, ibidem.
21
Idem, ibidem.
22
Depoimentos de Vilanova Artigas a Eduardo de Jesus Rodrigues, jun. 1978, explicando sua obra em retrospectiva. Não encontramos o texto original e Jorge Miguel não especifica a localização precisa da transcrição, só indica que se trata de um documento da Fundação Vilanova Artigas. Artigas citado prolixamente em: MIGUEL, Jorge Marão Carnielo. A casa. Londrina/São Paulo, Eduel/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003, p. 49.
23
Ibidem, ibidem.
24
MIGUEL, Jorge Marão Carnielo. Op. cit., p. 51.
25
Idem, ibidem, p. 49.
26
Idem, ibidem, p. 48.
27
Idem, ibidem, p. 50.
28
RYKWERT, Joseph. Op. cit., p. 85
sobre os autores
Fernando Guillermo Vázquez Ramos é docente permanente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. Bolsista do Instituto Ânima. Foi Coordenador do Núcleo Docomomo São Paulo (2018-2020) e Coeditor da revista arq.urb (2010-2019). Doutor (UP Madrid, 1992); Magister (Inst. de Estética y Teoria de las Artes, Madri 1990); Técnico em Urbanismo (INAP, Madri 1988); Arquiteto (UNBA, 1979). Estuda e pesquisa arquitetura moderna internacional e paulista, publicando assiduamente em periódicos da área.
Andréa de Oliveira Tourinho é docente permanente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. Bolsista do Instituto Ânima. Arquiteta, com doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e mestrado pela Universidad Autónoma de Madri. É coeditora da revista arq.urb. Conselheira do IAB no Condephaat. Trabalhou em órgãos públicos de preservação do patrimônio e de planejamento urbano da cidade de São Paulo. Estuda e pesquisa sobre patrimônio cultural, publicando assiduamente em periódicos da área.