Antes de começar a escrever, preciso confessar: sou louco pelo Brasil.
Sou louco por samba, futebol, feijoada, caipirinha, mulatas, alegria, carnaval e favela. Definitivamente o Brasil vendido para os outros, e para nós mesmos, aqui na terrinha me deixa enlouquecido. Mas o que gosto mesmo (e que também odeio) é o Brasil que não está nos souvenires e nas conversas de turistas gringos. Na realidade ele não está nem na nossa cabeça.
Gosto do arroz com feijão, mas não gosto da fome. Gosto da mistura racial, mas não gosto do racismo. Gosto da heterogeneidade, da diversidade, mas a desigualdade desses extremos não me faz bem não. E por ser louco pelo Brasil, por querer (bem) esse país, que não entendo o desperdício de tempo, energia e dinheiro gastos com tantas bobagens lá fora.
Esse é o ano do Brasil na França. Traz como tema Brésil, Brésils (“Brasil, Brasis”) – uma homenagem à diversidade e à modernidade da cultura brasileira. O objetivo é despertar o interesse de todos os segmentos nacionais, de forma a permitir que o “Ano do Brasil na França” seja não só uma demonstração da diversidade cultural, mas a ocasião de apresentar o país como uma potência em todos os seus aspectos (econômico, industrial, comercial, social, turístico, etc.).
Somente neste mês de junho, na Galeria Lafayette aconteceram (e estão acontecendo) desfiles com Jun Nakao e sua apresentação-conceito com incríveis roupas de papel vegetal, exposição do já tão conhecido e (merecidamente) comentado Hugo França e um espaço, desenvolvido pelos arquitetos Mirtes e Francisco Luciani, para promover o trabalho desenvolvido pela ONG Fazer Brasil (espaço este que juntou um belíssimo trabalho da Fazer Brasil que promove, incentiva e estreita laços comerciais dos designers brasileiros com a França e o projeto do escritório Luciani & Associados que buscou, por meio de referências nacionais, montar o não-caricato e facilmente digerido Brasil, mais sim um país que os franceses não conhecem).
Tudo isso é muito bom, tudo isso é muito lindo. Mas aonde vamos parar com isso? O que queremos disso? Exposição? Crescimento de negócios? De turismo? De que, afinal? O que queremos mostrar? Somos o que? Índios? Temos macacos, comemos bananas? Ou queremos mostrar que produzimos como “gente grande”, temos design, temos idéias, metrópoles e transito?
Nem uma coisa, nem outra. Não podemos e não devemos ser extremistas. Se por um lado é muito ruim vincularmos um país com as bundas rebolativas de mulatas, por outro não vincular a gente com a gente mesmo é imoral. Temos desenho: sim, temos. Mas também temos macacos.
Quando apresentamos algo ou alguém para outra pessoa, temos que ter a consciência, do que esse representa. O Brasil está sendo representado lá fora e não houve discussão sobre o que é o país.
Se quisermos falar sobre arquitetura contemporânea para os franceses, precisamos primeiro saber o que afinal é isso? Temos uma arquitetura contemporânea brasileira? Paulista? Carioca? Temos arquitetura regional? Existe arquitetura regional? Quem produz arquitetura contemporânea aqui? Qual nossa realidade hoje? Arquitetura contemporânea é o que está estampado na Casa Vogue/Arquitetura e Construção, nos folhetos entregues nos semáforos ou nos livros? Se é a dos livros, porque “essa arquitetura” é a menos vista na cidade? Quem define o que é arquitetura contemporânea? Nossa identidade contemporânea não é a da autoconstrução (favela?).
Hoje, nunca se falou tanto em arquitetura e nunca se discutiu tão pouco ela. Nos anos 60, 70, 80, quantas revistas existiam sobre arquitetura? Poucas. E quantas existem hoje? Infinitas. Porém as poucas de ontem se mobilizavam num mesmo ideal: a de estudar e formar uma massa crítica, como um grupo de discussão. Hoje não.
Se quisermos mostrar o nosso lar lá fora, precisamos saber como moramos aqui. Os grandes edifícios auto-sustentáveis (como Pedregulho, Copan) não é mais nossa realidade. Mas cada vez mais, os prédios têm serviços comunitários que não são sequer utilizados pelos condôminos. Para que eles servem? Apenas para “vender uma comodidade”? Os condomínios são uma saída para a insegurança do espaço público? Não é uma irracionalidade aglomerar, num mesmo espaço, toda classe rica de uma cidade? Não estamos assim facilitando a criminalidade?
Se quisermos mostrar nosso design, precisamos buscar nosso design.
Se quisermos mostrar nossa cultura, precisamos saber o que é cultura, ou melhor: o que é nossa cultura. “A cultura está entre nós, sempre. É no campo da consciência que o mundo se faz ou se desfaz, é nesse universo da imagem, do som, da ação, da idéia. Tudo se resolve na criação. É na invenção que o tempo volta atrás e o atrás vai para frente. É onde o homem vira bicho, bicho conversa com gente. É onde eu sou Guimarães, você é Rosa. É onde fica como dantes ou tudo muda num átimo. É onde você entrega de mãos amarradas ou se rebela de faca no dente. É onde o silêncio vira pedra ou o grito rompe tudo e esparrama vida por todos os poros. E onde o risco chora e o choro é o começo da cura” (1).
Aqui é absolutamente necessário ressaltar que ninguém é contra a exposição do Brasil na França. Trabalhos de excelente qualidade estão sendo mostrados lá fora. A nossa moda é boa sim. Nosso design é bom sim. Nossos arquitetos são competentes sim. Mais não deveríamos parar somente nisso. O problema não está na fina casca mostrada na França: ele está na raiz, na terra e no adubo.
O Brasil não pode ser caricato. Mas também não pode perder suas referências. O interessante é perguntar: que referências são estas? A perda da possibilidade de discussão, de conhecimento, de autoconhecimento é tão grande quanto a vantagem comercial desse ano na França.
Faltou talvez aquela conversa de bar (aquela que falamos bobagem, coisa séria, analisamos os outros e nós mesmos entre goles de cachaça). Essa identidade da discussão “entre amigos” não está na Europa. Infelizmente (e isso, é uma coisa muito nossa).
Se quisermos que o Brasil apareça, precisamos primeiro fazer com que ele cresça. E ele só crescerá aprendendo a perguntar. Aprendendo a conhecer e aprendendo a se conhecer. Quem sabe da próxima vez (e esperamos que exista uma próxima vez), possamos discutir a fundo na mesa de qualquer boteco de esquina o Brasil. E tudo isso eu falo porque sou louco por este lugar. Tin-tin!
notas1
SOUZA, Herbert de. “O poder transformador da cultura”. Folha de São Paulo, Seção Tendências/Debates, 27 set. 1993. Republicado na revista Pólis, nº 17 com o título “Projeto cultural para um governo sustentável”, 1994.
Antonio Fabiano Jr., Jundiaí SP Brasil