Sim, a maior dimensão da passagem do furacão Katrina por New Orleans é a da tragédia humana, aguçada por um Estado que muito pouco ou quase nada se ocupou dos pobres. Mas, para arquitetos e urbanistas, o fato de uma cidade ter sido construída alguns metros abaixo do nível do mar e do nível de um grande lago em sua imediata vizinhança, lança uma grande interrogação sobre decisões urbanísticas. A pergunta elementar adquire inevitavelmente a seguinte forma: por que cargas d’água alguém decide construir no século XVIII uma cidade abaixo do nível do mar? Que cultura urbana leva a esta decisão?
Comparemos por exemplo as cidades fundadas por Portugal nos séculos XVI e XVII: Salvador, Olinda (Recife, não!), João Pessoa, Natal. Seguindo o padrão de porto protegido encontrado tanto em Lisboa como no Porto, seus sítios as fizeram “fortaleza” elevada contra os navios inimigos, mas também contra as águas em abundância e violência nos trópicos, seja ela dos mares e rios, seja dos céus. Situadas no topo de colinas e elevações, onde permaneceram até o século XX, suas ladeiras funcionam também como escoadouros das águas torrenciais das chuvas.
Como explicar então a fundação de Recife no meio de um manguezal lamacento, dentro da foz de dois rios, senão pela repetição de um padrão cultural holandês, simplesmente transferido aos trópicos? Sabemos dos livros de história que a França Antártica foi estabelecida numa baixada inóspita e que a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro dos portugueses ocupava claramente um morro, repetindo uma fórmula de eficácia comprovada.
Passemos ao século XIX. Sobre a Paris de Haussmann, tão repetidamente estudada, quase sempre se tenta minimizar o fato de ela ser o exercício máximo da monotonia urbanística e arquitetônica do século XIX que marca cidades como Viena, Berlim, Londres ou Barcelona, e da qual as cidades brasileiras foram felizmente poupadas. O eco destas transformações, que as atingiu já no início do século XX, foi fraco o suficiente para ser vorazmente devorado pelo desenvolvimento das décadas seguintes. As dificuldades arquitetônicas e de tráfego que surgem do traçado em diagonal dos boulevards haussmannianos, outro marco fortemente negativo desta intervenção, foram, por exemplo, minimizados em Barcelona: seu plano aposta nas diagonais como exceções, valorizando bem mais a repetição em quadrícula, solução historicamente consolidada em terras sob o domínio do rei de Espanha.
Já no século XX, Collin Rowe e os ingleses, e boa parte da cultura arquitetônica do pós-guerra, elegeram Roma como o novo paradigma urbano. Para os que naquele momento criticavam o Movimento Moderno especialmente em suas decisões urbanísticas, Brasília incorporava a antítese perfeita da Collage City. A capital brasileira, vista como ápice crepuscular de uma cultura arquitetônica centrada na figura de Le Corbusier, é a cidade de filiação mais francesa do país: seu grande eixo é remetido por seu autor à configuração urbanística de Paris, enquanto as suas superquadras podem ser interpretadas como uma tentativa de conferir algo de urbanidade ao modelo do mestre das Unité d’Habitation.
A pobreza do desenho da cidade planejada de Henrichemont (1) no centro da França a deixa a anos luz da riqueza geométrica e espacial de Palmanova. O urbanismo que combina os modelos da cidade jardim com a cidade industrial de Garnier na reconstrução de Royan (2) após a Segunda Guerra Mundial é estranhamente retrógrado, se o compararmos às experiências inglesas advindas das idéias do brutalismo. Enfim, Le Corbusier, o pai do bloco que quis eliminar o quarteirão, revela-se desta maneira bem integrado numa perspectiva histórico-cultural das realizações urbanísticas francesas.
O erro de uma parte da urbanística do século XX foi – constata-se aqui mais uma vez – ter abandonado a perspectiva histórica de compreensão das coisas, neste caso, uma perspectiva que parece querer indicar uma certa incapacidade francesa em operar com cidades. Ah, e o quê fazer com New Orleans? Se a cultura arquitetônica contemporânea fosse marcada pela coragem, a solução mais sensata seria terminar de arrasá-la e oferecer à população condições de vida em uma outra cidade, em outro lugar. Como aponta William Alsop, não há por que conservar cidades incapazes em oferecer emprego, diversão, saúde, habitação aos seus moradores, menos ainda uma que esperará a próxima enchente. Daquilo que os turistas sentirão falta, a Disney se encarregará.
notas1
Cidade do Departamento de Cher, a 25Km de Bourges, construída no início do século XVII em homenagem ao rei Henrique IV.
2
Cidade na costa atlântica da França, destruída por bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial.[publicação: setembro 2005]
sobre o autor
Marcio Correia Campos é arquiteto UFBA-Brasil, Dipl.-Ing. Arch. TU-Vienna, Áustria
Márcio C. Campos, Salvador BA Brasil