No conjunto de bens culturais produzidos pela humanidade, a arquitetura constitui um testemunho excepcional na formação da memória histórica dos povos e, na formação da identidade. Ela é um testemunho sedimentado e acumulado dos modos de vida do homem, não só daqueles que a conceberam na origem, mas também dos que ali viveram através dos tempos e lhe conferiram novos usos e significados. A arquitetura é carregada de sentimentos de gerações, acontecimentos públicos, tragédias, fatos novos e antigos. Algumas obras arquitetônicas alcançam o valor de monumentos, seja por seu valor intrínseco ou por sua situação histórica (1). Preservá-las e incorporá-las na vida da cidade, no plano urbanístico, é um desafio para os gestores do urbanismo nas cidades.
O monumento histórico foi preservado durante três séculos sob a forma de ilustrações em livros. Só no século XVIII com o advento da Revolução Francesa e da Revolução Industrial é que começou a se pensar na preservação do patrimônio histórico in situ (2).
No Brasil surgiram algumas iniciativas pontuais visando à preservação desde o século XVIII, mas concretamente isso só começa a ocorrer no ano de 1936 (3). A partir daí o país vem desenvolvendo uma política específica para a identificação e preservação dos bens culturais. Para protegê-los foram criadas instituições a nível federal, como o Instituto de defesa do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, e outros, a nível estadual e municipal. Através dessas instituições tem-se a criação de leis de proteção e a implantação do tombamento, além no desenvolvimento de inúmeros projetos para a salvaguarda do patrimônio.
Apesar da grande evolução da noção do patrimônio e de como tratá-lo, até a década de 1960 a política de proteção continua direcionada apenas a grandes edifícios históricos e civis. No Brasil surgem modificações nesse modo de pensar a partir somente da década de 1980. Ainda hoje o povo possui um sentimento de alienação quanto ao tema “patrimônio histórico” pois, durante muito tempo considerou-se apenas dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo, mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas” (tugúrios). A preservação e o destaque eram dados somente para as habitações da elite, enquanto os vestígios dos subalternos eram dignos de desdém e desprezo (4). Segundo Funari, houve uma “política de patrimônio que preservou a casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a construção de nossa identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários” (5).
No encontro de Quito em 1967 surge a recomendação de inserção da valorização do patrimônio nas políticas urbanas. Após a década de 70 começam a ocorrer seminários em algumas cidades tombadas, e a população foi consultada quanto à gestão do patrimônio. Nos anos 80 começam as discussões relativas aos usos do patrimônio para revitalização de áreas urbanas e a importância da memória integrante da cultura urbana (6). A partir daí a questão do patrimônio histórico vem sendo discutida e ampliada, enfocando também o patrimônio popular como as vilas operárias e as casas mais humildes, e estando listado como um dos componentes principais no planejamento e evolução das cidades.
Além deste fato de exclusão que perdurou por tantos anos, há também a questão da cidade. A cidade moderna onde hoje vivemos foi construída por uma especulação imobiliária descontrolada, que converteu o valor do solo urbano num dos investimentos mais lucrativos (7). Hans Bernoulli sustenta a tese de que a propriedade privada do solo e sua fragmentação é o mal principal da cidade moderna. O solo, tornando-se mercadoria comercial, torna-se objeto de monopólio econômico (8).
A preservação e conservação do patrimônio histórico na cidade moderna de hoje é um grande desafio, porém, a cidade moderna não pode se agregar e funcionar a não ser a custa, pelo menos em parte, da cidade antiga. A condição de sobrevivência dos núcleos antigos remanescentes é determinada pela solução urbanística e pelos critérios tomados na cidade. A cidade deve ser pensada em seu conjunto, antiga e moderna, não se pode admitir que ela conste de uma parte histórica com valor qualitativo, e de uma parte não-histórica com caráter puramente quantitativo (9).
O que se faz necessário hoje é uma política de preservação que assegure a continuidade dos elementos vitais para a sociedade, que tenha como uma das metas a melhoria da qualidade de vida e acima de tudo que tenha a participação da população. Gutiérrez considera que “a participação da população é o ponto essencial para que essa política tenha êxito com o tempo. Só se conserva aquilo que se utiliza, e os novos usos dos espaços asseguram a continuidade de respostas adequadas às novas necessidades, dentro da evolução da cidade” (10). A população precisa e deve ser integrada na discussão da preservação para que a mesma construa uma identidade com o patrimônio cultural e conseqüentemente se torne aliada dos gestores na proteção e na vigia dos bens.
notas1
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995; GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitetura latino-americana: textos para reflexão e polêmica. São Paulo, Nobel, 1989.
2
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Editora UNESP, 2001.3
RIBEIRO, Sandra Bernardes. Brasília: memória, cidadania e gestão do patrimônio cultural. São Paulo, Annablume, 2005.
4
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1978.
5
FERREIRA, Lúcio Mendes; FUNARI, Pedro Paulo. Cultura Material Histórica e Patrimônio. Campinas, IFCH/UNICAMP, 2003. p. 275.
6
RIBEIRO, Sandra Bernardes. Brasília: memória, cidadania e gestão do patrimônio cultural. São Paulo, Annablume, 2005.
7
GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitetura latino-americana: textos para reflexão e polêmica. São Paulo, Nobel, 1989.
8
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
9
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
10
GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitetura latino-americana: textos para reflexão e polêmica. São Paulo, Nobel, 1989. p. 129.
sobre o autor
Arquiteta e Urbanista pela Universidade do Vale do Itajaí. Diretora do Departamento de Patrimônio Cultural de Itajaí. Membro do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural. Organizadora do Cidade Revelada – Encontro sobre Patrimônio Histórico, Arquitetura e Turismo.
Patricia Trentin, Itajaí SC Brasil