Ao observarmos o currículo mínimo do curso de graduação da Escola de Arquitetura da UFMG, percebemos que as disciplinas de instrumentação do Departamento de Projetos – e, dentre elas, as de desenho – são alocadas nos primeiros anos do curso. Isso nos dá a entender que, de acordo com esta estrutura curricular, o desenho é compreendido como instrumento para o desenvolvimento de uma outra atividade: o projeto. Assim, a grade curricular nos sinaliza que primeiro é necessário saber desenhar para só então partir para o aprendizado do projeto. Vista desse modo, a função do desenho no processo criativo é a da representação de algo que lhe é exterior. Referimo-nos à acepção do termo representação como re-presentação, ou seja, a repetição da apresentação de um algo que o desenho se esforça por mostrar.
O outro lado da moeda que instaura esse papel meramente figurativo do desenho é o do emprego de processos idealizantes como ferramenta para a produção daquele algo que o desenho representa. Estando as coisas assim dispostas, a idealização (ou seja, a produção na mente, a arregimentação de idéias, de coisas etéreas) é a ferramenta utilizada na criação enquanto o desenho é a ferramenta destinada à representação do resultado obtido pelo trabalho mental. Assim, a criação teria sido produzida fora do desenho. Este traduziria a idéia tal como se ele fosse uma ferramenta transparente, susceptível de traduzir qualquer idéia, sem que sua participação no processo interferisse no produto final, por um lado, e tal como se ela, a idéia, fosse a musa personificada que não quer macular-se na travessia.
A simples organização relativa das disciplinas na grade revela, quer consciente de si quer não, uma dada concepção a respeito do processo criativo. A disposição dessa concepção em uma grade sugere que esse assunto – o processo criativo – é tabula rasa, aceito por todos tal como é, integrante de uma ideologia que se crê universal, evidente (como, de resto, todas as ideologias), e, portanto, isenta da crítica, uma vez entronizada como estrutura universal e transparente de um processo. Não problematizar o tema significa legitimar seu atual estágio de desenvolvimento. Caberia perguntar o que vale deixá-lo tal como está, mas não é esse nosso propósito aqui.
A partir desse tal estado de coisas duas perguntas podem ser feitas: pode caber ao desenho alguma outra função no processo criativo, que não apenas a de representação? E a seguinte, mais complexa: uma vez constatada uma dada concepção do processo criativo refletida numa grade curricular, baseada no dual idealização-representação, seria o caso substituí-la por alguma outra, bem delineada, a ser projetada como base para uma proposta de reforma curricular?
À primeira pergunta o professor John Habraken responderia que sim (1), com o que concordamos. O desenho pode ser mais que representação de idéia. Segundo Habraken, não haveria necessidade do exercício do desenho se o projetista já soubesse, de antemão, o resultado do processo criativo. Esse desenho de que ele fala já não é representação de uma coisa outra, mas construção da própria coisa a ser projetada. Através do exercício do desenho pode-se chegar a uma forma que não foi concebida antes de ser desenhada, ou ainda que não nasceu num ambiente onde a idealização dita as regras. A forma pode, então, surpreender ao seu criador.
Não estou, aqui, defendendo a proibição da idéia como ferramenta de projeto. Posso incorporar idéias como parte do processo, e isso não constitui problema. As idéias podem estar no início dos trabalhos, ou surgir em algum lugar entre o início e o fim ou, ainda, várias idéias podem povoar o trabalho em vários momentos. O problema surge quando essas idéias tomam e, assim, entravam o processo criativo, impedindo-o de fazer de si e do projeto processos em evolução, matérias sobre as quais se trabalha. O desenho vai possibilitar o próximo passo, ou seja, próximo desenho, uma vez que saímos do universo das idéias e passamos a operar no universo das coisas. A evolução do conjunto de desenhos, quer sejam garatujas, croquis, esboços, perspectivas ou projeções ortogonais, permite à criação ser considerada como matéria distendida no tempo. O processo criativo será um processo, e não fruto de instantes inspirados (a não ser que se faça, desses instantes processuais, instantes inspirados). Então se pode dizer que o projeto surge na ponta do lápis, entre minha idéia, minha intenção, e a seqüência de desenhos que produzo. O projeto, coisa que surge após um dado período de cozimento, será autônomo em sua novidade. E o desenho será uma etapa na construção da coisa-edifício.
Desta primeira pergunta segue-se que o projetista poderá ter a chance de utilizar o desenho como ferramenta em todo o processo criativo. Ele estará continuamente aprendendo a desenhar e, no mesmo gesto, aprendendo e apreendendo a forma de seu projeto e, mais ainda, aprendendo a distender no tempo seu processo criativo, cuja evolução ele poderá, se tiver interesse, ter a chance de promover continuamente, por toda a sua carreira profissional.
Quanto à segunda pergunta, creio ser arriscado dizer que seria desejável embasar uma reforma curricular numa determinada concepção de processo criativo, a menos que essa concepção não esteja ancorada em qualquer coisa que possa ser caracterizada como método (2). Pois um método, uma vez delineado, exclui outros. Um método como base, estrutura ou fundamento não tem como escapar de ser formatado através de um sistema de crenças no que deve ser, por exemplo, o melhor modo de se ensinar projeto ou, ainda, de se projetar (3). E qualquer sistema de crenças pode, legitimamente, ser contestado ou, ao menos, datado e localizado – logo, não universal (o que seria uma legitimação incondicional).
Vivemos na falta do método. Temos como tarefa organizar nossa desordem interna. O lugar a partir do qual estamos pensando está situado do lado de fora daquele onde se situam os sistemas de objetividades e consensos. Este método que buscamos deve mudar de nome, a tal ponto que deixe de ser receita de bolo e seja flexível o suficiente para poder se instalar nesse lugar onde, como estratégia, deixo de lado o que conheço, o que sei hoje a respeito do passado, do presente e, aqui especificamente, do futuro, para fazer desses três tempos objeto de minha construção (estamos continuamente em obras). Proponho, para além do metódico que controla e prevê, a possibilidade da construção. Construção paulatina de um processo criativo, de uma forma arquitetural, de uma identidade autoral e, por fim, de um processo de legitimação de todas as construções precedentes. Assim me legitimo.
notas
1
HABRAKEN, J. “The control of complexity”. Places. v. 4, n. 2, 1987.
2
Sobre a discussão sobre o método, ver FEYERABEND, Paul K. Contra el metodo: esquema de una teoria anarquista del conocimiento. Barcelona, Ariel, 1974.
3
Sobre os sistemas de crenças e modos de legitimação do saber, ver LYOTARD, Jean-François. A condição pos-moderna. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2000, 6ª ed.
[publicação: outubro 2005]
sobre o autor
Otávio Curtiss Silviano Brandão, professor assistente do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, está atualmente afastado de seus encargos para doutoramento em Processo Criativo Arquitetônico, na FAU/USP, onde conta com a orientação do Prof. Dr. Joaquim Guedes
Otávio Curtiss Silviano Brandão, Belo Horizonte MG Brasil