Lina Bo Bardi é uma figura singular na história da cultura brasileira. Digo “cultura”, e não apenas “arquitetura”, pois a sua singularidade definiu-se exatamente pela capacidade única de compreender a arquitetura dentro de um sistema cultural permeável e dialogal. Mas a enorme riqueza do seu legado não se esgota nessa multidisciplinaridade fecunda, em tudo estranha ao isolamento mais comum dos arquitetos nos códigos internos do seu métier. Pode-se dizer que Lina foi o arquiteto que melhor soube interpretar – embora não necessariamente enfrentar – o contexto ideológico-cultural do Brasil pós-bossa nova e pós-Brasília. Isto é: as contradições de uma sociedade movente e fraturada, egressa da falência de um ideário nacional-desenvolvimentista que, entre outras coisas, havia possibilitado ao Brasil tornar-se uma potência mundial na arquitetura.
Mais dependente do aparelho de estado e do grande capital do que outras artes, a arquitetura, no Brasil, sofreu uma dolorosa amputação histórica com o golpe militar de 64, não sendo capaz de armar uma estratégia de resistência clara e afirmativa como a que se vê no tropicalismo, no cinema novo e no neocontretismo. Contudo, é nesse vácuo que a visão antropológica de Lina ganha importância. Formada no contexto da emergência do neo-realismo e da arte povera, na Itália, ela foi capaz de enxergar a cultura popular, abundante no Brasil, como matéria-prima de uma contribuição fecunda à modernidade, porque sêca e indigesta. Por outro lado, pôde perceber também, o quanto o nosso artesanato era rudimentar e escasso, e portanto incapaz de promover uma passagem orgânica para o design industrial moderno.
Esse é o impasse claramente percebido por ela entre os anos 50 e 60: o Brasil, sendo mais africano do que “ocidental”, é um país onde a seiva da cultura popular não se esterilizou, como na Europa do pós-guerra. No entanto, o problema da verdadeira industrialização tinha fatalmente que ser enfrentado, e uma importante escolha histórica estava em vias de se realizar: ou o salto do pré-artesanato doméstico a um design brasileiro efetivo, aderente à espessura da cultura cotidiana do país, ou uma abertura indiscriminada ao universo dos objetos de consumo, à pasteurização kitsch – vale dizer, à ausência de planejamento habitacional-popular, à especulação imobiliária etc. Se o ponto de vista de fundo, aqui, é nitidamente marxista, temperado pela valorização italiana do artesanato, a operação conceitual é antropofágica: a transformação do atraso em instrumento de sua própria superação, isto é, em originalidade vital.
Com a lenta derrota histórica desse modelo de “formação” nacional, Lina abandona o horizonte de uma equação ainda generalizável para o país, aprofundando o caráter heteróclito de sua obra, e aproximando-se verdadeiramente da “estética da fome” de Glauber Rocha, e do sincretismo pop do tropicalismo. Saia definitivamente de cena a possibilidade de engate entre uma tradição popular pré-burguesa e a civilização “futurista”, como a formulada ainda nos anos 20 e 30 por Mário de Andrade e Lucio Costa. Entrava em jogo uma perspectiva mais amarga de futuro, mas que, no entanto, na obra de Lina, nunca beirou a sisudez ou o sectarismo. É o que vemos, por exemplo, na exposição “Entreato para crianças”, feita por ela em 1985, em que recheou maquetes de vidro com baratas e formigas. Um convite à fantasia, e à “terrível lógica das crianças”, disse. Mas também uma “transmutação total de todos os valores”, como percebeu Zé Celso Martinez Corrêa. Um entreato para a Nova República, onde bichos e crianças “já comem os cadáveres, e anunciam a continuação de mil formas de vida.”
notas
[artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, quarta-feira, 11 jan. 2006]
sobre o autor
Guilherme Wisnik, arquiteto e crítico de arquitetura.
Guilherme Wisnik, São Paulo SP Brasil