Assisto uma incoerência aprovada (pelo menos é o que parece) entre “boas-noites” sarcásticos do jornal televisivo ao constatar que o espaço urbano que seria comum e livre a todos é seletivo, acolhendo e dando infra-estrutura numa relação inversa à necessidade de tê-lo como refúgio de uma segregação e exclusão.
Algumas ações governamentais tratam a questão dos moradores de rua como caso de higiene pública, assim como séculos atrás, impedindo que pessoas morem em algumas “ruas de diamantes” da nossa capital, não oferecendo vínculos para o entendimento desta questão.
Tais atitudes deixam clara a intenção, mais uma vez, de maquiar a origem do problema e transfigurar a real podridão do sistema como um todo (social/governamental).
Fevereiro de 2006 a incoerência se mostra a mais leve das explicações, quando nos deparamos com o acampamento nas ruas, desta mesma capital, de pessoas desta vez pertencentes a um segmento dito produtivo da sociedade (ou se não produzem, consomem), que aguardam um concerto musical. Acampamento iniciado cinco dias antes da data de apresentação e se multiplicando a cada dia.
Mas porque retirar estas pessoas, nosso futuro como dizem, se eles se mostram submissos ao consumo não importando o preço a pagar? Eles não denigrem a imagem sócio-governamental, ao contrário, daqueles que nos esfregam nas caras urina e fezes decorrente da nossa nula mútua convivência social. É mais seguro e lucrativo assegurarmos a idolatria submissa do que o direito da liberdade e escolha do indivíduo.
Isso sem entrar na questão de centenas de pessoas que dormem nas calçadas a espera de hospital, matrículas, aposentadoria e a propaganda quer nos convencer que esta noite vai ser boa após o jornal.
Isto deixa claro que dormir nas ruas não é o problema em si, mas quem dorme nelas.
O espaço público está como o resto das nossas construções, não respirando sem elas. O triste é que o espaço comum só adquire valor se consumido pelo privado.
Espero que após urbanizarmos as favelas, como querem algumas campanhas, re-urbanizemos as cidades pois apenas asfaltar o que era terra não a qualifica como tal.
Este texto visa à reflexão e à crítica sobre a ocupação e utilização de nossas cidades; como vivemos nela ou como a aceitamos gratuitamente, além de dar seqüência a uma ação chamada de Abrigo/Manifesto – abrigo para mendigos reapresentando o arquiteto como crítico de seu meio.
re-Humanizemos-a ou re-Urbanizemos-nos?
notas
[Maiores informações sobre o Abrigo/Manifesto podem ser obtidas na página Projeto Institucional de Vitruvius]
[publicação: maio 2006]
Adriano Carnevale Domingues, São Paulo SP Brasil