Em meio aos preparativos da cidade do Rio de Janeiro para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, um fato chama a atenção. Como a imagem da cidade será recebida no exterior? Na verdade, existe uma grande diferença entre as imagens que foram apresentadas quando o Rio ainda era cidade-candidata e a imagem real da cidade que será divulgada pela mídia durante a realização dos eventos. Afinal, a imagem de uma cidade não é apenas a dos seus belos espaços naturais e edificados. Ela é, também, um símbolo da existência humana e como tal não pode ser apreciada apenas por sua materialidade. Ambiência urbana e urbanidade são componentes subjetivos e indissociáveis da vida na cidade que precisam ser reconhecidos, compreendidos e resgatados.
Em seu livro “Cidades invisíveis” o escritor italiano Ítalo Calvino afirma que o inferno dos vivos, se existe, é aquele que está aqui e que ajudamos a criar nos ambientes onde ocorre a vida cotidiana. Para escapar desse inferno muitas pessoas se sujeitam a conviver com ele até não mais percebê-lo como tal. Outras, porém, tentam identificar quem e o que no meio desse inferno não é inferno e, assim, compreender melhor os verdadeiros significados da cidade. Essa parábola demonstra que numa cidade como o Rio de Janeiro não se pode considerar inferno tudo aquilo que causa estranheza. Para evitar avaliações preconceituosas ou ações precipitadas é necessário observar e refletir cautelosamente sobre o que se supõe ser ou não ser verdadeiramente um inferno na cidade.
Nas últimas décadas vem se notando no Rio de Janeiro o surgimento de um modelo de urbanidade que adota como sua referência principal o individualismo nas relações humanas e a homogeneidade na formação de grupos sociais. Na medida em que esta prática foi se consolidando, o convívio espontâneo e solidário nos espaços públicos começou a se esfacelar estimulando o deslocamento das pessoas para espaços privados de uso coletivo. Por não incorporar os atributos da cidade tradicional, esses espaços de uso privativo acentuaram uma condição urbana particular e contrastante com aquela que é encontrada nos espaços públicos. Essa dicotomia fez com que certos segmentos da sociedade, acuados pela paranóia com a segurança pública, preferissem conviver nos ambientes privados restringindo a sua presença nos espaços públicos exclusivamente aos trajetos entre a residência e o trabalho. No contraponto dessa vertente, outros extratos sociais se apropriaram dos espaços públicos relegados ao abandono para realizar suas atividades de trabalho, de convívio social, de lazer e, em alguns casos, lamentavelmente, como moradia improvisada. Configurou-se, dessa forma, um ciclo vicioso nos espaços públicos onde a ordem da desordem prevalece e o distanciamento entre classes sociais se amplia.
No âmbito da espacialidade urbana esse distanciamento se evidencia, de um lado, pelos shoppings e enclaves residenciais protegidos por cercas, guaritas e seguranças particulares e, de outro, pelas favelas circunscritas num limite controlado por facções do narcotráfico. São modelos que exprimem um perfil de exclusão através de suas barreiras reais e simbólicas, visíveis e invisíveis. É evidente e não se pode negar que as condições de segurança e o estado precário dos espaços públicos têm contribuído para desestimular comportamentos que tenham a alteridade e a diversidade entre os seus princípios referenciais.
Entretanto, com a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) nas comunidades populares dominadas pelo tráfico e as ações da Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP) nos espaços públicos, as autoridades demonstram a intenção de enfrentar com determinação algumas questões importantes que envolvem a ambiência urbana e a vida na cidade do Rio de Janeiro. As restrições impostas à ocupação das áreas de proteção ambiental, a remoção de famílias que vivem em áreas de risco, a repressão à presença de camelôs, flanelinhas, menores abandonados e moradores de rua, a atuação preventiva contra os pichadores de monumentos e edificações históricas, são ações relevantes que devem ser acompanhadas de projetos para reverter esse quadro comprometedor da imagem e da vida na cidade. Requalificar os espaços urbanos de tal forma que as ruas, praças, parques e praias retomem as suas condições de atratividade e voltem a desempenhar plenamente o seu papel de espaço público por excelência, será o caminho mais curto para recuperar a urbanidade perdida sem a nostalgia do passado.
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Artigo originalmente publicado no jornal O Globo, 17 abr. 2010.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.