Tende-se a compreender o tempo da sociedade da informação como o tempo da frivolização das idéias. A pátina do tecnológico e a aceleração dos processos de comunicação promoveram a equiparação da geração de pensamento à da produção de informação. Assim, se vive numa espécie de permanente reality show, no qual o mais importante são as estratégias para se situar em primeira linha, ainda que se careça de valia que justifique o protagonismo. O fenômeno é pandêmico e no campo da arquitetura comprovamos como se transmitem sem pudor idéias que se aceitam sem discutir, como falsos gurus lançam espetacularmente suas consignas e como desorientados exércitos mediáticos difundem e magnificam esses postulados irrefletidamente.
Apontava Peter Sloterdijk em sua Crítica de la Razón Cínica (2) que, para poder entender as estruturas da consciência da modernidade, se faz necessária uma teoria do bluff, do show da sedução e do engano. Ainda carecendo dessa potencial teoria, esses três termos designam com total precisão a essência de uma atitude prepotente que arroga a si mesma o atributo de estar construindo as visões da arquitetura da era da tecnologia digital.
A primeira geração de arquitetos que assumiu como próprias as possibilidades dos processos de criação digital fracassou estrepitosamente ante a impossibilidade de ter feito dos modelos desenhados através de seus computadores edifícios que sintetizassem coerentemente os argumentos de seus discursos sobre a tecnologia digital. À margem de suas teorias conceituais, subordinaram suas possibilidades criativas ao poder das máquinas de cálculo, sem assumir como princípio que eram eles que deveriam controlar o desenvolvimento desses desenhos. Propostas como o Terminal Portuário de Yokohama (FOA) ou a Igreja Presbiteriana de Nova York (Greg Lynn) provaram que complexos gráficos e uma sobrecarregada dialética sobre diagramas de fluxos ou processos, culminavam num mero formalismo. Estas propostas foram fagocitadas pela falta de cultura arquitetônica de seus autores e sua maior preocupação por usar as ferramentas de difusão que estavam implícitas na nova sociedade, sem perceber que deixavam de lado a necessidade de uma formação sólida que lhes permitisse materializar suas propostas.
A transição dessa primeira geração, que em raras ocasiões pôde evitar o fracasso em suas propostas, se concretiza no momento presente com a irrupção de uma segunda geração integrada por indivíduos que cresceram mais próximos – e desde alguns distintos parâmetros de relação – à cultura do digital e à hiper-informação, e que fizeram de suas ferramentas fundamentos indispensáveis para o projeto, cujas primeiras idéias fagocitam inteiramente a hipotética esperança em que um maior e mais intrínseco conhecimento dos meios digitais – e uma aprendizagem dos erros de seus antecessores – filósofos e proselitistas da era da mercadotecnía – poderia orientar e canalizar solidamente uma evolução da linguagem e materialidade arquitetônica através das ferramentas digitais.
As imagens sedutoras que se produziram na segunda metade dos anos 90 hoje evoluíram para uma sobrecarga propositiva tendente ao feísmo: exemplos como a medonha Vila Nurbs (Cloud 9), esteticismo criado com o pretexto de uma aplicação integral da tecnologia; o Kloverkarreen (BIG), paradigma de soluções facilistas, desenvolvidas a expensas do desconhecimento básico de noções arquitetônicas, parecem ter comprado o paradigma gaudiano no supermercado a um baixo preço. Produto da arrogância de arquitetos mais preocupados em demonstrar que em pensar, que ignoraram ou aprenderam mal as lições com as quais poderiam formular uma nova arquitetura ao esquivar do conhecimento da História, persuadidos de que a natureza da cultura digital e da velocidade das mudanças abre o veto para sua incultura arquitetônica. Arquitetos que acreditam cegamente estar em posse de uma espécie de superpoder, e se sentem autorizados a enfrentar qualquer desafio, mas interessando-lhes mais a quantidade que a qualidade de seu trabalho. Seu paradoxo radica em acreditarem-se referentes capazes de propor uma arquitetura para seu tempo quando o que na realidade fizeram foi converter em prioridade de sua tarefa o exercer de frívolos sedutores, reproduzindo os vaidosos modelos dos atores do star-system, cínico e ideologicamente inútil depois de se ter paralisado em suas próprias estratégias de mercadotecnía. Pegam e querem adaptar a realidade sem compreendê-la, projetando modelos complexos facilitados pelo avanço da tecnologia mas que carecem de qualquer sentido de responsabilidade e de compromisso. Arquitetura de adolescentes idolatrando-se a si mesmos, que não percebe a distinção essencial entre o que é a experimentação, o que é reflexão e o que é a realidade.
Estas manifestações são recebidas nos fóruns arquitetônicos com vãos elogios fascinados mas também, e mais preocupantemente, com um absoluto silêncio crítico que as questione e lhes exija explicações claras sobre seus fundamentos ou seus princípios. Os meios simplesmente parecem auspiciar a mensagem de que é esta a arquitetura capaz de orientar a evolução da arquitetura no tempo em que vivemos.
Se a modernidade despertava o constrangimento, a era digital auspiciou a exacerbação formal; mas não porque se acredite que ela conduz a alguma parte, mas porque a tecnologia a faz facilmente possível em sua representação. Feísmo baseado na recriação de formas orgânicas, experimentações tingidas de ecologismo sem compromisso que querem reinventar as possibilidades reativas da matéria às condições de seu entorno, pretendidos virtuosismos formais... A lassitude ideológica fomenta mesmo assim a permanência deste cômodo estado de ambigüidade e irresponsabilidade, de legitimação do capricho: “o sistema decidirá quais de nossas idéias poderão sobreviver ou não”; refugiar-se na ‘inocência crítica’ para argumentar o desinteresse pelo conhecimento do precedente e permitir-se quebrar a linha de enlace com pensamentos e imagens precursoras de concepções verdadeira e consistentemente radicais para o avanço da arquitetura. Visionários opinando sobre os ‘futuros’ da arquitetura e sobre os remotos lugares onde ‘verdadeiramente’ se está produzindo a arquitetura do século XXI, escritos confusos com parafernália retórica: neologismos importados da linguagem digital que apenas sabemos com precisão o que estão significando quando se aplicam aos efeitos do mundo material ou aos processos de criação, à literalidade e à pobreza na busca de referências ou analogias que inspirem a concepção arquitetônica e a absoluta ausência de uma energia mental que permita produzir interpretações poéticas da realidade.
O tempo a tudo limpa, e muitos destes personagens se varrerão a si mesmos. Em alguns anos, ninguém recordará nem redescobrirá a estes arquitetos e seus projetos, como tantas vezes sucedeu, mas não se recuperará o tempo perdido e não se calarão as vozes conservadoras que desvalorizam a transcendência da tecnologia digital como ferramenta de pensamento e criação arquitetônica. Estas especulações, que unicamente têm uso como meios de promoção mediática de um nome, deveriam ter sido concebidas como elementos de experimentação úteis para desenvolver a musculatura do pensamento contemporâneo, para reconhecer e perfilar a essência do tempo que aguarda ainda a concreção de sua arquitetura. E que se produz verdadeiramente, mas situada numa margem distante dos caminhos arquitetônicos nutridos pelo bluff, pela sedução e pelo engano.
notas
1
Artigo publicado originalmente na coluna “Arquitectura y diseño”, do caderno “ABCD las artes y las letras“, de ABC Periódico Electrónico S.L.U, Madri, em 08 de setembro de 2007.2
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Madrid, Ediciones Siruela, 2003.
sobre o autor
Fredy Massad é titular do escritório ¿btbW com Alicia Guerrero Yeste, co-autor do livro “Enric Miralles: Metamorfosi del paesaggio”, editora Testo & Immagine, 2004.