Argumento
Uma saleta com móveis usados, placas de identificação caídas. Letras faltando no título da exposição, completadas a lápis na parede: a aparência decadente para tecer uma argumentação sobre os critérios de preservação de prédios, cidades e regiões do globo. Neste mesmo espaço, fotos de levantamento de edifícios que foram restaurados nos projetos do escritório: fotografias de revelação manual mostram o Zolverein no Vale do Ruhr, o São Vito em São Paulo, o Narkonfim em Moscou, e um de seus projetos mais recentes (e polêmico): O Fondaco dei tedeschi, em Veneza. Na sua condição original, pouco se vê daquela sedução dos render, maquetes, infográficos - ou mesmo das fotos de inauguração destes prédios. Ladeando-se um cortiço no centro de São Paulo, outro na periferia de Moscou e um Palazzo em desuso no coração de Veneza, tem-se que suas condições de decaimento são parecidas.
Relativizar a preservação, com um acento claro naquele relativo ao patrimônio histórico, criticar o crescimento de trechos do planeta aos quais está garantida a intocabilidade pelas próximas gerações é, certamente, um tema espinhoso em Veneza.
O excesso de intervenções de caráter artístico que marcam a Bienal deste ano talvez tenha amenizado um pouco o impacto desejado por Koolhaas na sala do OMA. Entretanto, sua força de contraste persiste, conceitualmente, diante de uma Bienal feita de maneira conciliatória. People meet in architecture. A frase, que não aparece traduzida para o italiano, paira pela cidade de Veneza mais como slogan do que como tema. Nomeando sua bienal com uma frase quase obviedade, Sejima conseguiu fazer com que a reunião de trabalhos tão distintos aparecesse coesa. Mesmo Tom Sachs, com seu ladeamento das torres de Corbusier com a sociedade do medo pós onze de setembro, acabou por ser diluída. Diversas sucessões de instalações e discursos misteriosos acabam por fazer o Padiglione centrale e o Arsenale sonar uma coerente ensaística sobre o encontro.
Os projetos são matizados por esta candura, onde os galpões de Lina Bo Bardi, as experiências do Atelier Bow Wow, e as elocubrações de novas utopias com um acento quase New Age de Andrea Branzi parecem iniciativas solidárias de reorganização das cidades. O vídeo de Wim Wenders sobre o projeto do Sanaa em Lausanne entra neste conjunto, como uma ode às possibilidades da boa arquitetura que, quase literalmente, fala com os seus usuários. Em sua sala da exposição, Sejima, preferindo como lhe é usual a eloqüência mais no projeto do que em textos memoriais, apresenta uma grande maquete com diversos projetos feitos em uma ilha pequena de seu país de origem. A intervenção em Inujima implanta uma série de pequenos edifícios no tecido existente, marcado por casas simples. A cidade ganha novos pontos de referência, onde aquela arquitetura arrojada da ganhadora do Pritzker ladeia-se às casas anteriores. Seu tema da exposição é incindível deste seu projeto – não por qualquer oportunismo de auto-divulgação, mas porque Sejima, com seu discurso pragmático, não poderia ter sua entrada no mundo curatorial separada da própria prática.
Réplica
Koolhaas não fala da convivência de pessoas, nem discorre sobre uma harmonia entre dado e projeto, mas antes relembra que há uma parte da palavra encontro que está na bienal alheia da arquitetura: aquele que se faz com a história.
“A preservação integral é também um projeto”, diz o arquiteto holandês em sua entrevista para Hans Ulrich Obrist, disponível no Arsenale. De acordo com o escritório holandês, 12% do mundo já é área de preservação permanente. A mostra traz uma série de imagens destacáveis dos projetos em andamento do escritório, e uma série de painéis sustentando a argumentação de que a vontade de preservação pouco a pouco se tornou uma febre internacional. Em momentos mais diretos, Koolhaas chega mesmo a reescrever as cartas da Unesco que determinam os patrimônios da humanidade invertendo os adjetivos: “Considerando que a proliferação de patrimônio cultural ou natural constitui um risco para a sua trivialização em todas as nações do mundo”, entre outros pontos, Koolhaas lança os critérios para O Insignificant Universal Junk, em oposição ao “Outstanding Universal Value”. As declarações da lista tentam atentar para a parte da história que afinal seria descartada – o que, segundo Koolhaas, é também um fruto particular de cada época. A despeito de a argumentação tornar-se em alguns pontos lugar comum, o arquiteto holandês é convincente na medida em que mostra que um consenso orbita os governos e suas culturas de patrimônio: escolher o máximo que der para se preservar. Intervenções feitas hoje são nocivas para estes edifícios e cidades do passado.
Tal demonstração, diante da Bienal, parece dizer menos sobre a discussão específica do Restauro do que sobre a posição atual do arquiteto dentro das cidades. Revelando uma tendência mundial dos governos de resguardar o passado o máximo possível é negar a sua interlocução com a geração presente de profissionais. O que o OMA quer mostrar, em meio ao People meet in architecture, é que uma boa parte do público mundial acredita menos e menos na capacidade da disciplina em tecer diálogos. Certamente o lugar dos arquitetos está garantido em tarefas como sustentabilidade, formas modernas de morar, contenção da expansão desmesurada dos centros urbanos... Quando a discussão encontra a questão mais espinhosa acerca de estabelecer uma ponte com outros modos de pensar – especialmente o (simbolicamente) mais opaco de todos, que concerne épocas imemoriais anteriores, ou a natureza exuberante, as portas de súbito já não se parecem assim tão abertas.
Desta maneira, a Bienal 2010 tornou-se palco de uma discreta polêmica entre estes dois ganhadores do Pritzker. Por um lado Sejima procura dar uma visão “positiva” sobre a arquitetura: privilegia o espaço como categoria que afeta o modo como as pessoas nele vêem o mundo. Koolhaas, por levar ao Pavilhão uma mostra que privilegia a ausência de interlocução da arquitetura com outros campos, responde à arquiteta japonesa, pondo à vista uma tendência mundial de fechar certas possibilidades ao arquiteto. Estando a mostra em Veneza, cidade que o senso comum entende como avessa à modernidade, torna-se o argumento tanto mais explicitado.
Tréplica
O tema da arquiteta japonesa é também uma provocação, ao deslocar a arquitetura para objeto da frase. As pessoas se encontram na arquitetura. Seu projeto em Inujima consistiu em quatro pequenas intervenções espalhadas ao longo da ilha. A escala das suas edificações respeita o espalhamento e a escala das casas, diluindo-as no tecido. Duas delas são releituras da arquitetura tradicional japonesa, a ponto do olhar desatento passar por elas sem as destacar da ocupação original. As outras duas, por outro lado, são claramente heterodoxas aos padrões construtivos do vilarejo. Um deles é uma marquise espelhada, um ‘gazebo’, sustentado por pequenas varetas metálicas. O outro é um edifício linear com fechamento estrutural em acrílico curvo. As primeiras duas casas reafirmam aqueles preceitos de consideração do entorno, respeito à escala existente que já decantaram em senso comum na última metade dos 900. O espelho e a transparência destas duas últimas, entretanto, retomam temas de algum modo comuns à modernidade, relendo-as não em uma chave só da continuidade do espaço, mas também, por assim dizer, etérea. O gazebo e a S-House não possuem um programa bem definido e são feitos como fantasmas na paisagem. Inseridos na parte residencial de uma ilha com menos de um quilômetro de extensão total, estes edifícios são quase uma provocação ao diálogo: a S-House é ainda mais radical, na medida em que é só um caminho coberto. Sejima, que em uma entrevista em 2008 disse que busca “a extrema singeleza”, prefere um vocabulário quase original para promover um diálogo: a leve distorção ótica que se tem ao olhar através do acrílico curvo, o caminho alternativo paralelo à calçada, a pequena dimensão de seus prédios.
As novas construções – malgrado um detalhamento e implantação bem estudados – apresentam-se de modo imediato, simples. Aproveitando-se de um vilarejo arquetípico, literalmente isolado, Sejima fez um ensaio sobre as possibilidades de diálogo pela arquitetura contemporânea.
É certo que a crítica de Koolhaas refere-se à velocidade incansável de crescimento dos grandes centros urbanos e a multiplicação automatica de um espaço de qualidade nula. O Cronocaos de Koolhaas é desdobramento direto deste seu texto seminal intitulado Junkspace, onde o arquiteto holandês ensaia sobre o esmagamento dos instrumentos da arquitetura dedicados à interlocução:
“History corrupts, absolute history corrupts absolutely. Color and matter are eliminated from these bloodless grafts: the bland has become the only meeting ground for the old and the new... Can the bland be amplified? The featureless be exaggerated? Through height? depth? length? variation? repetition? Sometimes not overload but its opposite, an absolute absence of detail, generates Junkspace”.