Com alegria realizamos em Paris a exposição de Roberto Burle Marx (1909-1994), anteriormente exibida no Rio, São Paulo e Berlim. É especial o vínculo entre França e Brasil, na área do paisagismo, desde a permanência, de 1858 a 1897, no Rio de Janeiro, do paisagista e botânico Auguste Glaziou (1833-1906). Além de projetar importantes jardins e parques públicos, o paisagista bretão introduziu, em pequena escala, o uso de árvores e flores nativas, preconizando o trabalho que Burle Marx viria a desenvolver, de modo monumental e sistemático, três décadas depois.
Roberto Burle Marx foi um dos principais responsáveis pela criação de uma linguagem paisagista moderna. E o fez a partir da valorização estética da flora nativa, resgatando-a da triste condição de “mato”, revelando-a para o mundo e para os próprios brasileiros.
Os domínios da pintura, arquitetura e paisagismo nunca estiveram tão bem integrados em uma só pessoa. Pretendendo ser uma obra de arte total, a arquitetura moderna propunha uma integração entre estrutura de sustentação e aparência visual, organização dos espaços internos, externos e o traçado urbano. Nesse processo o jardim passou a se fundir ou, pelo menos, a se aproximar do prédio, assim como a arte abandonou a aplicação decorativa nas fachadas, passando a ter presença concreta escultural ou a servir de lógica de inspiração para a organização de jardins.
O mestre brasileiro foi um artista poliédrico: desenhista, gravador, escultor, ceramista, cenógrafo, músico, joalheiro e, sobretudo, paisagista e pintor. Esta última condição possibilitou-lhe uma aplicação estrutural profunda de princípios pictóricos na paisagem. O conhecimento botânico permitiu-lhe descobrir novas espécies, pensadas não apenas a partir de suas belezas individuais, mas, integradas em sistemas ecológicos, possibilitando uma escolha adequada de conjuntos saudáveis e harmônicos. Foi uma das primeiras e mais fortes vozes contra a destruição da natureza, lembrando que dela provém o equilíbrio e a sobrevivência da espécie humana. O domínio do espaço arquitetônico foi um aspecto essencial de seu trabalho, pois lhe permitiu estabelecer um diálogo de formas, espaços e volumes com as construções. Conversa que podia fazer o jardim ecoar, harmonizar, contrastar ou, no caso de uma obra não tão boa, sobrepor-se à arquitetura.
A importação de estilos europeus, usual na América do Sul, na virada do século XIX para o XX, mostrava-se especialmente inadequada no paisagismo porque as plantas importadas não se adaptavam bem ao clima brasileiro. Um duplo movimento foi necessário: romper com os modelos rígidos vindos, sobretudo, da escola de belas artes, e, diminuir ou abolir as espécies exógenas. O criador do Aterro do Flamengo, como tantos paisagistas de várias nacionalidades no século vinte, reabilitou as plantas nativas para uso nobre. Soube fazê-lo, todavia, sem adotar um nacionalismo exacerbado. Valeram a Burle Marx, para escapar dessa armadilha chauvinista, a sofisticação intelectual, o apreço ao universalismo propiciado pela abstração e, não menos importante, a ampliação do escopo de sua obra com as expedições de pesquisa botânica que realizava a todas as faixas do planeta situadas nas regiões tropicais e subtropicais.
O estudo aprofundado das plantas facultou a Burle Marx utilizá-las corretamente, prevendo seus volumes, cores e texturas durante todo o ciclo de vida; no caso de exemplares mais frágeis e perecíveis facilitou-lhe a previsão do momento de replantio. O paisagista costumava dizer que lhe cabia apenas iniciar o trabalho nos jardins, pois “o tempo completa a ideia”.
Uma de suas contribuições foi o uso de manchas contínuas em substituição às miscelâneas de cor que povoavam os canteiros e jardins: “temos que ter a coragem de renunciar a elementos que parecem lindos mas que não trazem o resultado desejado quando associados a outros.”
Para o paisagista brasileiro o jardim não é espelho nem cópia da natureza posto que esta age de modo diverso e independente dos conceitos do homem. A organização planejada dos elementos naturais devia, contudo, ensejar uma constante mediação com a paisagem, de modo a estabelecer ecos, contrastes, refúgios e microclimas dentro de uma cidade ou de um meio inóspito. Apesar de grande inovador, rejeitava o julgamento de seu trabalho quando este valorizava, acima de tudo, a originalidade: “A minha conceituação filosófica de paisagem construída baseia-se na direção histórica de todas as épocas; a minha obra reflete a modernidade, a data em que se processa, porém, jamais perde de vista as razões da própria tradição, que são válidas e solicitadas”.
Burle Marx considerou o fato de que os jardins pertencem ao universo da fenomenologia, regidos por um conjunto de elementos e fenômenos que se definem em acordo com as leis que os ordenam e, também, com as realidades que manifestam. São espaços que mudam de acordo com o deslocamento rápido ou lento do usuário, o tempo de sua permanência e as estações do ano. A fluidez se impõe ao estático e modular, ao integrar o tempo, a luz, a sombra, o vento, a chuva, o ruído e os pequenos animais como elementos do todo indivisível que criava.
Diferentemente de algumas contribuições magníficas, porém datadas, os belíssimos jardins de Burle Marx continuam atuais. Convidamos o visitante a conhecer sua obra e mergulhar no adorável paradoxo de a instabilidade viva de seus elementos constituir flutuantes e, ainda assim, permanente obras primas que, sem luxo nem desperdício, atendem à necessidade absoluta da vida humana.
sobre o autor
Lauro Cavalcanti é arquiteto, escritor e doutor em Antropologia Social. Entre suas principais obras os livros "When Brazil was Modern: a guide to architecture 1928-1960", "Encore Moderne? Architecture contémporaine au Brésil" e "Sergio Bernardes: o herói de uma tragédia moderna".