Nestas poucas décadas em que o Brasil passou de “eminentemente agrário” para “sexta economia do mundo”, o seu sistema urbano deu um salto demográfico monumental: de 12 milhões para 175 milhões de pessoas. Qual foi o desenho que o país traçou para que suas cidades pudessem corresponder a tal desafio?
Em aula magna que proferiu para o colegiado da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, pouco antes de ser cassado pela ditadura, em 1968, o arquiteto Vilanova Artigas lembrou a correlação semântica entre “desenho”, “desígnio” e “projeto”, ou seja, a “intenção de fazer algo no futuro”. Artigas com isso sublinhou que um projeto (ou a ausência dele) tem fundamentação política.
Assim, a resposta à pergunta inicial precisa ser precedida por outra: que política orientou o crescimento urbano brasileiro?
Todos reconhecemos os esforços feitos para o desenvolvimento nacional na promoção da industrialização, do agro-negócio, do sistema financeiro, da energia e das comunicações, entre outros setores essenciais para se alcançar o patamar ao qual chegamos. Porém, no que se refere ao urbano, os esforços foram centrífugos, no sentido das cidades subsidiarem aquelas outras políticas.
Nesse período em que a urbanização explodiu, no caso da habitação, tratou-se de desestimular a produção de moradia, para venda ou para renda, a fim de que os capitais nela aplicáveis pudessem se destinar ao incipiente setor industrial. No transporte urbano, desconstruiu-se o modo sobre trilhos em benefício da indústria automobilística. Estimulou-se a emigração do campo, oferecendo mão de obra barata à indústria e inchando as cidades. Para a ocupação das cidades hiper-demandadas, promoveu-se uma expansão sem infraestrutura de saneamento, sem transporte, sem moradia e sem regulação urbanística: um farwest doméstico, que caracteriza boa parte das grandes cidades.
É possível avaliar que o Brasil consolidou o seu crescimento econômico em detrimento de seu sistema urbano. Desse modo, nossas cidades evidenciam um importante passivo sócio-ambiental que se coloca como um desafio fundamental a ser enfrentado nos próximos anos. Não obstante, e paradoxalmente, elas também se constituem como um patrimônio sócio-cultural e espacial de enorme diversidade e riqueza.
Neste século 21, o desenvolvimento se dará cada vez mais a partir do conhecimento, cujo lugar de produção e de difusão é a cidade. Em especial, aquela em que as condições de vida urbana garantam bom acesso à educação superior, aos serviços avançados de saúde, aos serviços públicos, às atividades culturais, ao lazer. Enfim, o conhecimento e a criatividade são estimulados pela interação social, qualidade essencial da cidade.
Tanto por tal razão, comum às grandes economias, mas igualmente por exigências da evolução de nossa democracia, o Brasil precisará voltar atenção específica ao seu sistema urbano. Nosso país precisará estruturar políticas orientadas para as suas cidades, contemplando suas principais carências e fortalecendo suas grandes virtudes.
Já não podem nossas cidades continuar como consequência das circunstâncias, mas devem ser promovidas segundo o nosso desejo. Englobando duas dezenas de metrópoles, sendo duas megacidades, o desafio de projetá-las é enorme. Certamente será uma tarefa estimuladora para arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, cientistas sociais, e demais profissionais afins, dizer, com cada uma delas, qual a intenção que se tem para o seu futuro. Mas, sendo decisão política, será sobretudo tarefa para o conjunto da sociedade.
Como alcançar a equidade urbana, indispensável exigência democrática? O desenho da cidade brasileira é um dos grandes desafios estratégicos para o país neste início de século.
nota
NE
Artigo originalmente publicado na revista Ciência Hoje.
sobre o autor
Sérgio Magalhães é arquiteto e presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil.