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drops ISSN 2175-6716

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De Juneca a Djan Ivson, a pixação em São Paulo traça um arco histórico que vai da expressão da cultura periférica ao meio artístico, cuja repercussão migra das páginas policiais para os cadernos culturais.

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LASSALA, Gustavo. O que a pixação tem a dizer. Drops, São Paulo, ano 14, n. 075.02, Vitruvius, dez. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.075/4989>.


No início de 1980, Júnior, um adolescente que ganhara o apelido de Juneca (1) dos amigos na escola, aproveitou algumas sobras de tinta da pintura que usara para customizar sua Mobylette e resolveu escrever seu nome em um muro qualquer. Rapidamente percebeu que tal atitude emanava um sentimento único, uma coisa que ficava dentro dele, suscitava adrenalina, algo que viciava... Seu anonimato estimulou a curiosidade das pessoas e isso fez com ele não parasse. A ideia de grafar um codinome nasceu assim, meio por acaso.

A diversão logo atraiu um parceiro, codinome Pessoinha. Juneca e Pessoinha dividiram a cidade em duas zonas e combinaram como destino comum escrever os nomes “Juneca Pessoinha” nas paredes da cidade. Como na época havia apenas algumas pichações políticas esporádicas – e a enigmática frase “Cão Fila Km 22” –, espaço é o que não faltava para a dupla e, se opondo às pichações de cunho político, a contravenção despretensiosa e destituída de ideologia tornou a ação uma busca incessante por espaços de boa visibilidade, lugares mais afastados e escondidos e até lugares inusitados, como uma rua sem saída ou uma casa isolada numa estrada para o interior de São Paulo, suscitando a ideia de que eles estavam por toda parte.

Em outubro de 1988, a revista Veja São Paulo publicou a reportagem “Mistério Desvendado” (2), abordando as escrituras “anônimas” de Juneca. Nessa ocasião, pela primeira vez, Juneca confessa seu verdadeiro nome e idade, Oswaldo Junior, 22, e anuncia que decidira trocar a pichação pelo grafite, assinando, ao lado do grafiteiro Maurício Villaça, um trabalho feito para o Masp.

Até hoje, quando se fala em pichação, Juneca é figura presente no imaginário das pessoas que viveram principalmente em São Paulo na década 1980, mas como podemos perceber, sua aposentaria na pichação foi relativamente rápida, impedindo que ele se envolvesse com uma geração de pichadores desconhecidos do grande público e que atuava na mesma época que ele.

Esses pichadores precursores – que utilizavam codinomes como Tchentcho, Chefe, Xuim, Di, Dino, Birajá Punk, entre outros – procuravam lugares de destaque na cidade para espalhar a suas marcas pelo maior número de vezes. Mas não era apenas isso que faziam. Eles conversavam entre si, estabeleciam relações de grupos nos bairros onde moravam, compartilhavam as experiências em reuniões informais em locais de encontro previamente definidos. Pinguim (3), da gangue Oitavo Batalhão, recorda que um dos primeiros locais a reunir pichadores foi a Rua Marconi, no Centro de São Paulo. Ali, diariamente, na hora do almoço, estavam os Office Boys pixadores.

O ponto de encontro, que mais tarde seria denominado “Point”, se tornou o lugar onde esses jovens combinavam as ações em comum e o ponto de partida para as incursões pela cidade, estabelecendo uma prática seguida pelas gerações seguintes e que se estende até o presente momento. Foi assim que, na grande São Paulo, nasceu o campo sociocultural que ficaria conhecido como pixação, com “xis”.

Para ampliar a compreensão desse fenômeno social podemos tomar de empréstimo o conceito “Campo” do sociólogo francês Pierre Bourdieu e verificar se o “campo da pixação” é um microcosmo autônomo no interior do macrocosmo social (4).

Um campo social determina uma complexidade de relações que definem um estilo de vida dos atores pertencentes a ele. Esta teoria é corroborada pelo filósofo Daniel Mittmann em seu livro que trata do “sujeito-pixador” (5), pois ele entende que a pixação conforma um estilo de vida que expressa o processo de subjetivação dos seus praticantes. Ao definir as relações sociais nesse microcosmo, o campo da pixação tem papel fundamental na sociabilidade de seus membros.

Podemos definir a complexidade de relações sociais do que chamamos aqui de campo da pixação a partir de algumas categorias, que expressam práticas e comportamentos dos pixadores: a) formas de agrupamento; b) modos de deslocamento pela cidade; c) formas de encontro; d) concepções de valorização individual ou grupo; e) padrão estético de caligrafia; f) estratégias de contravenção; g) ferramentas de trabalho; h) documentos históricos sobre as ações individuais e coletivas; i) culto a mitos e heróis.

Para o leitor desavisado, essas categorias não dizem muito, mas para os jogadores desse campo, palavras como grife, folhinha, pé nas costas, rolinho, Di, ibope, rolê e outras palavras nativas dos nove itens citados são elementares para a definição do papel social dos pixadores. Considerando que um campo funciona a partir de objetos de disputa e regras que são convencionados nesse espaço, podemos dizer que existem sujeitos em melhores condições de vencer as lutas que estruturam o campo, portanto, existem os personagens dominantes.

Pixadores dominantes são aqueles que conseguem dispor de capital para acessar os objetos de disputa que podem ser, por exemplo, conseguir pixar lugares de destaque na cidade, atrair a atenção de reportagens jornalísticas, ser reconhecido e disputado nos encontros de pixadores para assinar folhas de outros pixadores e gangues, ou seja, cultuado entre os pares, ou até mesmo ser líder dos agrupamentos de pixadores. Muitos pixadores conseguem tal status às custas de muitos anos de prática do pixo, noites dormidas em delegacias pela cidade, risco de vida escalando locais de difícil acesso para grafar seu pixo, tudo isso somado a uma boa dose de “humildade, lealdade e proceder”, como os próprios costumam lembrar.

Nascido em 1984 e debutante no pixo aos 12 anos, Djan Ivson, líder do grupo Cripta, é um exemplo de pixador dominante. Desde o seu ingresso nesse universo, encontrou um campo social estruturado e se esforçou para ser um pixador reconhecido. Jovem da periferia de São Paulo, como a maioria dos pixadores, via na prática um modo de expressar sua existência – em seu modo de exprimir, “pixar é a sua promoção existencial, entendeu?” (6). Nos bairros periféricos de São Paulo, as limitações de infraestrutura e equipamentos e a falta de poder aquisitivo limitam as possibilidades de diversão; os jovens acabam muitas vezes buscando respostas para suas angústias em movimentos regidos por grupos de jovens, que atuam ilegalmente na cidade e não nos mecanismos tradicionais de inclusão social. Djan foi um deles.

Embora a pixação configure uma prática de contravenção considerada ilegal pelo Estado, Djan nunca teve vergonha de ser pixador e assumiu essa condição diante da família e sociedade. Ele foi um dos pioneiros de uma das modalidades mais arriscadas da pixação, a escalada de edifícios, grafando suas letras nas laterais e andares, tomando a fachada dos prédios como um painel (7). Até 2004, teve uma atuação muito intensa nas ruas e no mundo do pixo, até que a partir de 2006 começou a se envolver com produção e distribuição de filmes sobre pixação, sendo os próprios pixadores o público alvo. A atividade fez de Djan um personagem ainda mais conhecido entre os pares.

Em 2008, Djan conseguiu extrapolar as bordas do campo da pixação, liderando, ao lado do pixador e estudante universitário Rafael Pixobomb, pixadores de diversos grupos da cidade para uma série de ações que colocaram a pixação em espaços de legitimação artísticas. Essas ações levaram as intrigantes letras retilíneas e alongadas da pixação paulistana – que possuem características visuais únicas no mundo (8) – a uma condição nunca antes experimentada. Desse modo, Djan e seu colegas advindos dos bairros periféricos de São Paulo, reivindicaram o direito de jogar no campo da arte.

Após 2008, Djan protagonizou uma série de eventos estabelecendo pontos de contato entre os campos da pixação e da arte. Em 2009 foi para a França, em Paris, participar da exposição “Né dans le Rue: Graffiti” na Fundação Cartier; em 2010 Djan não apenas participou com outros pixadores da 29ª Bienal de São Paulo, como roubou a cena ao pixar, sem autorização, a obra do artista Nuno Ramos – “liberte os urubu”, dizia a frase incompleta devido a ação da segurança. Em 2012 participou da 7ª Bienal de Berlim e, novamente, atraiu atenção da mídia ao joga tinta no curador da exposição; no mesmo ano, participou de uma exposição no MuBE de São Paulo, além de ministrar palestras, consultorias, entre outros eventos que ajudaram a torná-lo um dos principais representantes públicos em São Paulo e até mesmo no Brasil desse tipo de prática.

O fato de um sujeito deter os objetos de disputa e, portanto, ser dominante em um determinado campo não o credencia a, necessariamente, ser dominante em outro campo, pois o que é convencionado em um campo tem validade apenas neste, mas o ajuda a explorar as bordas do campo que domina. Djan é um personagem que cresceu nas ruas de São Paulo e fez delas a sua principal escola. Ele nos mostra que um jovem da periferia pode conseguir alcançar destaque social enfrentando as adversidades não só da sua vida cotidiana, mas também travar contato entre campo sociais distintos – casos da publicidade, nas disputas pelos espaços de destaque na paisagem urbana, e da arte, ao adentrar em um espaço destinado aos que detém capital cultural especifico para entender os códigos que a legitima socialmente. Trata-se de forçar o acesso, às vezes de forma truculenta, aos espaços sociais da cultura dominante, que foram negados a Djan desde a tenra infância, tanto pelo Estado como pela sociedade.

A história de Djan tem um lado enigmático e nos faz refletir sobre a pergunta mais comum se o debate tem ela como temática, uma pergunta que traz consigo o senso comum, que vê na prática apenas sua condição de contravenção, como mera sujeira e vandalismo: “a pixação tem solução ou cura?” Difícil prever, pois ela é também um sintoma de problema social mal tratado pelo poder público. Ao se transformar em fenômeno estético, ela nos força a buscar explicações mais fundas para sua essência. No atual estágio de nossa compreensão do fenômeno, talvez a pixação tenha muito mais a dizer sobre as cidades e os segregados do que nós temos a dizer sobre ela.

notas

1
Os fatos descritos foram baseados em entrevista realizada com Juneca, em 19 out. 2011.

2
Mistério desvendado. São Paulo, Veja São Paulo, Abril Cultural, 5 out. 1988, p. 26.

3
Entrevista com Pingüim, 07 out. 2011.

4
O conceito é desenvolvido pelo sociólogo em diversos textos: BOURDIEU. Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção de Sérgio Miceli. São Paulo, Perspectiva, 2004; BOURDIEU. Pierre. Escritos de educação. Organização de Maria A. Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, Vozes, 1999; BOURDIEU. Pierre. Algumas propriedades do campo. In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 89-94; BOURDIEU. Pierre. O campo político (conferência de Lyon, 1999). Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5. Brasília, jan./jul. 2011, p. 193-216.

5
MITTMANN. Daniel. O sujeito-pixador: tensões acerca da prática da pichação paulista. Rio de Janeiro, Multifoco, 2013.

6
LASSALA, Gustavo; GUERRA, Abilio. Cripta Djan Ivson, profissão pichador. “Pixar é crime num país onde roubar é arte”. Entrevista, São Paulo, ano 13, n. 049.04, Vitruvius, mar. 2012 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/13.049/4281>.

7
Na reportagem jornalística, Djan declara que subira um edifício de 20 andares para pixar sem nenhum aparato. Guerra entre pichadores desfigura paisagem urbana. Folha de São Paulo, Caderno cotidiano. São Paulo, 3 out. 2004. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0310200414.htm>.

8
LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação: Uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas. São Paulo, Altamira, 2010.

sobre o autor

Gustavo Lassala, designer, é técnico em Artes Gráficas pelo Senai “Theobaldo De Nigris”, bacharel em Design (Programação Visual) pela USJT, mestre em Educação Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde é professor. Atualmente é doutorando em arquitetura e urbanismo pela Universidade Mackenzie, orientado por Abilio Guerra. É autor do livro Pichação não é pixação.

Juneca em frente a um de seus recentes trabalhos de grafite
Foto Gustavo Lassala

O pixador Djan, em sua casa, segurando uma das pastas onde arquiva convites de festas, folhinhas e recortes de reportagens sobre pixo. No detalhe, aparecem dois convites de festa
Foto Gustavo Lassala

Reprodução dos logotipos de alguns pixadores precursores
Foto Gustavo Lassala

Caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo noticia participação de pichadores brasileiros em evento da Fundação Cartier de Paris, 04 de julho de 2009
Foto reprodução

Capa do caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo com matéria sobre Djan Ivson, 15 de março de 2012
Foto reprodução

Caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo com matéria sobre Djan Ivson, 13 jun. 2012
Foto reprodução

 

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