Um ano depois do incêndio que destruiu 70% da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), em fevereiro de 2012, a Marinha do Brasil, em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e os ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, abriu um concurso para escolher o projeto da nova base brasileira. A ideia foi gestada pelo Almirante Silva Rodrigues, Secretário Geral da Secirm – Secretaria da Comissão Interministerial para Recursos do Mar –, que promoveu o concurso. A arquiteta Cristina Engel, professora da UFES e consultora da Marinha para questões relativas à Estação Antártica, sugeriu a ideia do concurso, elaborou o Termo de Referência, foi a Consultora Geral durante sua realização, e acompanhou o Projeto Executivo. O concurso foi organizado pelo IAB/DN com a coordenação geral do arquiteto Luiz Fernando Janot.
A equipe merece o reconhecimento e a premiação da APCA em 2013 por esta iniciativa que reconhece o valor da pesquisa como questão nacional. Neste momento em que os recursos do planeta já se escasseiam, que grande parte do território do Brasil ainda sofre com a ausência de recursos para uma vida digna, projetar para a Antártida abre uma perspectiva para repensar a mentalidade da humanização no país e no planeta: sem desperdício, sem excessos, sem necessidade. Uma equação equitativa e concisa para a ciência e estrutural para a arte, que expressa um conceito de "economia", da justa medida em que nada falta e nada deve ser acrescentado sob pena de adulteração de integridade e configuração.
O concurso, que envolveu equipes multidisciplinares e o desenvolvimento da ciência aliada a questões da estética, abre possibilidades para uma nova etapa nos rumos da pesquisa em tecnologia da arquitetura no Brasil, uma vez que a especificidade do tema exige avançados requisitos técnicos que envolvem materiais de alto desempenho tecnológico, modulação e racionalização do desenho e da construção, pré-fabricação, logística construtiva etc.
O concurso alerta sobre a necessidade de uma nova política para a construção civil no Brasil, onde o desenvolvimento tecnológico e a industrialização são ainda precários. No canteiro, a mão-de-obra continua sem uma capacitação que dê dignidade ao trabalho e à aprendizagem e coopere com a evolução e a racionalização de processos tradicionais. A maior parte das pequenas construções é feita por iniciativa individual, sem estímulo para equipar canteiros ou para investigar novos métodos e materiais. Por sua vez, nas obras das grandes construtoras, que dominam a construção das cidades, não há significativos avanços no procedimento construtivo que, em grande parte do processo, é ainda artesanal e depende do trabalho manual de seus operários.
Em relação ao lucro do investidor fundamentado na mão-de-obra operária, a indústria míngua sem perspectiva ou projeto de participar desta receita. No Brasil quando se fala em investimento no setor da construção civil, infelizmente entende-se quantidade de novos edifícios, e não pesquisa, avanço tecnológico e democratização das relações de produção.
Alguns arquitetos não estiveram alheios a estas questões. Sergio Ferro já havia escancarado a miséria e a iniquidade entre a ideia e o fazer construtivo (1). O inestimável trabalho de João Filgueiras Lima, concentrado no desenvolvimento de processos para a prefabricação de elementos de uma construção que, naturalmente, poderiam constituir fases de industrialização, não tiveram continuidade nas políticas do estado (2). Paulo Bruna já havia apontado que “os problemas da industrialização da construção não são técnicos (...) [A]s dificuldades encontradas não são de ordem tecnológica, produtiva ou organizativa; são, na realidade, problemas muito mais administrativos, de caráter econômico, político e social” (3).
Na década de 1970, parecia possível a industrialização da construção no Brasil; o fato de que não tenha ocorrido não encontra justificativa plausível, nem no custo do investimento, nem na falta de mercado, nem no temor da repetição. Se, no princípio, a ideia da industrialização da construção soava ameaçadora, como se a produção em série pudesse levar à limitação da variedade compositiva e espacial, Gropius já alertava que "não havia motivo para temer a monotonia” (4). No caso do Brasil, inclusive, não há mesmo motivo para este temor, uma vez que a monotonia e a ausência de boa arquitetura já é um dado da maior parte dos edifícios construídos por incorporadoras nas grandes cidades do país.
Há anos atrás, em uma das inúmeras conversas com Paulo Mendes da Rocha, um comentário seu ficou na memória como questão. Dizia ele que “a obra mais interessante e importante da década de 1960 era a Apollo 11”. A técnica havia desenhado uma arquitetura que realizou um sonho milenar da humanidade.
Na empreitada pela descoberta da América, o desejo de conhecer o mundo e saber se o "fim do mundo" existia fez arquitetar o desenho e os procedimentos das viagens. Nas décadas de 1950 e 1960, os arquitetos brasileiros, juntamente com a engenharia, projetaram arquiteturas em concreto aparente com dimensionamentos estruturais rigorosos, no limite de sua ruptura, admiráveis pela potência do sistema e pela delicadeza dos elementos. Devemos entender, portanto, que o progresso da investigação em tecnologia da construção não impede a realização dos atributos da arquitetura, mas a incentiva.
A pesquisa em ciência tem, por princípio, uma maior igualdade social e só pode ser ética, a exemplo do projeto para a Antártida. Este coloca-se além das ideologias, pois implica em projetar para aqueles que se dispuseram investigar, em nome do gênero humano, o futuro e a permanência da vida no planeta, no cosmos, talvez. E igualmente poético, no sentido de um entendimento do papel da arte na arquitetura. Esta inteligência também comparece no Concurso Internacional Estação Antártica Comandante Ferraz que contempla a questão do projeto de um espaço que não faz parte da memória ou do cotidiano ordinários. Projetar a ‘casa’ para viver nos confins do planeta, em uma paisagem extraordinária, em um clima inóspito, abre portas para a criação de uma arquitetura singular. Uma casa que só tem um ‘estar dentro’, que conjuga trabalho, convivência e ócio em coletividade; é uma possibilidade para o avanço da ciência permeado pelas interrogações da arte, pelo desejo de progresso das relações sociais e, sobretudo, pela imaginação da vida.
notas
NE
Este texto é desenvolvimento da justificativa de premiação presente na Ata de Premiação APCA 2013, assinada pelos críticos de arquitetura filiados à Associação Paulista de Críticos de Arte. Os prêmios outorgados nas sete categorias – Conjunto da obra; Melhor obra; Obra referencial; Registro de arquitetura; Fronteiras da arquitetura; Promoção à pesquisa; e Urbanidade – foram selecionados por unanimidade ou maioria a partir de critérios discutidos coletivamente. A responsabilidade de redação final coube a um determinado crítico, mas os argumentos foram discutidos coletivamente pelos críticos de arquitetura Abilio Guerra, Fernando Serapião, Guilherme Wisnik, Maria Isabel Villac, Mônica Junqueira de Camargo, Nadia Somekh e Renato Anelli. A relação dos artigos referentes aos sete prêmios da Arquitetura é a seguinte:
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Melhor obra”. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin / Eduardo de Almeida e Rodrigo Loeb. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.03, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5053>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Promoção à pesquisa”. Concurso Internacional Estação Antártica Comandante Ferraz. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.04, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5060>.
SOMEKH, Nadia. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Fronteiras da arquitetura”. Bom Retiro 958 metros / Guilherme Bonfanti (luz) e Carlos Teixeira (direção de arte). Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.05, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5062>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Melhor conjunto da obra”. Carlos Lemos. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.06, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5064>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Registro de arquitetura”. Nelson Kon. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.07, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5072>.
ANELLI, Renato. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Urbanidade”. Conjunto habitacional do Jardim Edite / MMBB Arquitetos, H+F Arquitetos.Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.08, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5074>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Obra referencial”. Centro Paula Souza / Francisco Spadoni e Pedro Taddei. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.09, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5076>.
1
FERRO, Sergio. O canteiro e o desenho.
2
O programa "Minha casa, minha vida" convidou o arquiteto, mas não houve continuidade no diálogo possivelmente pela incompatibilidade de princípios, uma vez que para ele "[a] construção civil é a coisa mais retrógrada do mundo. Se se quer construir no Brasil inteiro, impõem-se a industrialização e a qualidade. Isso só se consegue com tecnologia." Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/917497-arquiteto-propoe-mudancas-no-projeto-minha-casa-minha-vida.shtml
3
BRUNA, Paulo. Introdução. In: Arquitetura, industrialização e desenvolvimento. Coleção Debates – Urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 1976.
4
GROPIUS, Walter. Alcances de la arquitectura integral. Buenos Aires, Ediciones La Isla, 1957. p. 171 e seguintes. Tradução brasileira: Bauhaus: Novarquitetura. Coleção Debates n. 47. São Paulo, Perspectiva, 1972. Apud BRUNA, Paulo. Op. cit.
sobre a autora
Maria Isabel Villac é arquiteta, professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie.