Nas últimas décadas, o Governo do Estado de São Paulo tem investido enorme quantidade de recursos no restauro, renovação e conversão de edifícios culturais no bairro da Luz, área central da capital paulista. É o caso da Pinacoteca do Estado (Paulo Mendes da Rocha, Eduardo Colonelli e Weliton Ricoy Torres), da Sala São Paulo de Concertos na Estação Júlio Prestes (Nelson Dupret), do Museu da Língua Portuguesa (Paulo Mendes da Rocha e Pedro Mendes da Rocha), da Estação Pinacoteca (Haron Cohen), da Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim e, se tudo correr bem, em futuro próximo, do Centro de Dança (Herzog & de Meuron).
Contudo, tais investimentos não têm conseguido reverter o processo de degradação ocorrido ao longo do século passado e que tem na Cracolândia sua expressão maior. Dentre os motivos que poderiam ser elencados, o maior deles é o enfoque prioritariamente arquitetônico adotado na maioria das intervenções, que acabou redundando em obras muito qualificadas na renovação do edifício e no seu uso interno institucional, mas de um limitadíssimo diálogo com o entorno urbano. A intervenção promovida há alguns anos por Emanuel Araújo, que colocou abaixo a cerca que separava a Pinacoteca do Parque da Luz, exitosa em sua pretensão de entrelaçar os usos, parece dar a pista do que deve ser prioritário nestas intervenções (1). É justamente neste item que parece residir a principal qualidade do projeto da nova sede do Centro Paula Souza (2).
Instituição responsável pelo ensino técnico no Estado de São Paulo – sua importância se expressa nas 268 escolas e 280 mil estudantes sob sua responsabilidade –, o novo complexo do Centro Paula Souza, abrigando a sede da instituição e uma escola técnica modelo, é a mais recente aposta do governo estadual no processo de renovação da região da Luz. Para cumprir seu objetivos, o governo desapropriou na área todos os lotes que conformavam uma quadra de cerca de 7.000 m2, sendo que os galpões vazios ou de uso precário e as casas unifamiliares deterioradas que ocupavam originalmente a gleba foram demolidos, mantendo-se um único edifício comercial de sete andares, que foi incorporado ao novo complexo.
Aos condicionantes previamente existentes – além da intenção oficial de renovação urbana, os órgãos de patrimônio impunham a manutenção da implantação histórica, com as edificações alinhadas ao calçamento –, os arquitetos Francisco Spadoni e Pedro Taddei responderam com inventiva solução: ao mesmo tempo em que mantinham a ocupação na periferia do terreno – com construções no chão ou a projeção da cobertura em voo livre pelo ar –, fizeram com que o miolo da quadra deixado livre aos moldes de uma praça arborizada se conectasse às calçadas, valorizando o uso público da nova edificação. Uma engenhosa disposição dos planos horizontais, hierarquizando os usos franqueados e interno, permite que o vazio interior seja usado pela comunidade sem prejuízo do desenvolvimento das atividades institucionais.
A estratégia de implantação se adequa aos usos propostos, pois a praça serve como divisor dos dois usos principais, que são acomodados em edifícios distintos: a sede administrativa do Centro Paula Souza e uma Escola Técnica de porte suficiente para abrigar os cursos de hotelaria e gastronomia. Além de dar conta dos programas, o complexo – com sua grandiosidade e formas eloquentes – atende a uma importante necessidade simbólica: a de ser uma nova referência para a região e para a própria cidade.
Os elementos técnico-construtivos selecionados para dar forma ao programa de usos conferem soluções plásticas inventivas em seu contraste e complementariedade: o mezanino sinuoso sob a escola que faz a conexão entre os blocos é um contraponto à prevalência da ortogonalidade; a hegemonia da estrutura em concreto armado – presente em pilares, lajes com grelhas expostas e empenas cegas – se contrapõe, enquanto tectônica, ao uso intensivo de metal (guarda-corpos, coberturas e brises) e, enquanto jogo de mostra e esconde, ao uso extensivo do vidro; as coberturas flutuando a 30 metros de altura expressam a liberdade do conjunto e o hieratismo de sua função social e urbana.
Por fim, a nova sede do Centro Paula Souza coloca-nos diante de uma larga tradição brasileira do Estado como promotor da boa arquitetura para equipamentos de interesse social, sendo a escola um dos programas mais recorrentes (3). Neste sentido, o projeto de Francisco Spadoni e Pedro Taddei mostra-se obra referencial em vários aspectos: como estratégia governamental para recuperação de área deteriorada urbana e socialmente, levando em conta seu caráter público enquanto uso e sociabilidade; como edifício extremamente qualificado para acolher o programa educacional; e como desdobramento de uma prática tradicional de um Estado atento às demandas coletivas por equipamentos de boa qualidade (infelizmente, ainda muito longe da quantidade necessária).
notas
NE
Este texto é desenvolvimento da justificativa de premiação presente na Ata de Premiação APCA 2013, assinada pelos críticos de arquitetura filiados à Associação Paulista de Críticos de Arte. Os prêmios outorgados nas sete categorias – Conjunto da obra; Melhor obra; Obra referencial; Registro de arquitetura; Fronteiras da arquitetura; Promoção à pesquisa; e Urbanidade – foram selecionados por unanimidade ou maioria a partir de critérios discutidos coletivamente. A responsabilidade de redação final coube a um determinado crítico, mas os argumentos foram discutidos coletivamente pelos críticos de arquitetura Abilio Guerra, Fernando Serapião, Guilherme Wisnik, Maria Isabel Villac, Mônica Junqueira de Camargo, Nadia Somekh e Renato Anelli. A relação dos artigos referentes aos sete prêmios da Arquitetura é a seguinte:
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Melhor obra”. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin / Eduardo de Almeida e Rodrigo Loeb. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.03, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5053>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Promoção à pesquisa”. Concurso Internacional Estação Antártica Comandante Ferraz. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.04, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5060>.
SOMEKH, Nadia. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Fronteiras da arquitetura”. Bom Retiro 958 metros / Guilherme Bonfanti (luz) e Carlos Teixeira (direção de arte). Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.05, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5062>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Melhor conjunto da obra”. Carlos Lemos. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.06, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5064>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Registro de arquitetura”. Nelson Kon. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.07, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5072>.
ANELLI, Renato. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Urbanidade”. Conjunto habitacional do Jardim Edite / MMBB Arquitetos, H+F Arquitetos.Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.08, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5074>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2013 – Categoria “Obra referencial”. Centro Paula Souza / Francisco Spadoni e Pedro Taddei. Drops, São Paulo, ano 14, n. 077.09, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.077/5076>.
1
GUERRA, Abilio. O artista da coragem. Minha Cidade, São Paulo, ano 01, n. 001.002, Vitruvius, ago. 2000 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/01.001/2107>.
2
SPADONI, Francisco. Centro Paula Souza. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 159.01, Vitruvius, mar. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.159/5075>.
3
GUERRA, Abilio. Arquitetura e Estado no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 064.00, Vitruvius, set. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.064/420>.
ficha técnica
projeto
Francisco Spadoni e Pedro Taddei Neto
cliente
Centro Paula Souza – Governo do Estado de São Paulo
gestão do projeto
Fupam – Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente (FAUUSP)
coordenador
Tiago Andrade
coordenador assistente
Bruno Fernandes
colaboradores
André Rua, Carolina Mina Fukumoto, Cristiane Kimie Maeda, Fabiana Benine, Fernando Shigueo Fujihara, George Ferreira, Jaime Vega, Marcos da Costa Sartori, Marina Crespo, Mayra Simone dos Santos, Natalia Turri Lorenzo, Paulo Catto, Sabrina Chibani, Wellington Teles.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.