O conceito de permeabilidade urbana utilizado nesse comentário refere-se à irrigação do território urbano por espaço público, por ruas, e descreve o quanto as formas urbanas, em seu arranjo espacial, podem facilitar ou dificultar o movimento de pessoas e veículos. A pesquisa no campo dos estudos urbanos mostra, de modo recorrente, que a condição de permeabilidade seria fator preponderante na vitalidade dos lugares isto é, na presença, maior ou menor, de pessoas e veículos, nas diferentes partes das cidades (1).
Tomada em momento de pôr-do-sol do Guaíba, a imagem (Fig. 1) é uma representação onírica do cais do porto de Porto Alegre, mostrado em um tempo futuro, como um lugar incorporado ao centro da cidade, diretamente acessível através de suas ruas e, portanto, naturalmente aquinhoado com a vitalidade inerente àquela parte da cidade. Na imagem, os armazéns do cais abrem passagem para que uma das ruas do centro alcance a orla. A imagem mostra a acomodação arquitetônica ali ocorrida entre armazéns e atividades neles contidas e o arruamento da área central, leito viário e calçadas, que avança em direção ao rio. Pedestres e veículos usufruem e compartilham esse espaço público novo, inusitado, ali surgido (2). A imagem sugere que o advento de uma relação espacial direta – de visibilidade irrestrita e livre acesso – entre os espaços públicos do centro da cidade – suas ruas – e as águas do rio Guaíba e ilhas teria impacto paisagístico e econômico dramático para o centro da cidade.
O ponto de partida nessa minha reflexão sobre a urbanização do cais do porto de Porto Alegre está no comentário do colega Paulo Bicca, publicado recentemente na imprensa local. Ao comentar os projetos hoje em pauta para aquela área, ele diz que ‘não se tem dedicado a devida atenção às possíveis relações que estes projetos devem estabelecer com a cidade’ (3). Como modo de ativar essas possíveis relações entre projetos e cidade, ele sugere que outras passagens através do muro da Mauá fossem criadas viabilizando assim o contato direto entre a cidade e a orla. Nessa linha, ele propõe a extensão das ruas Padre Tomé e Araujo Ribeiro até a orla, triplicando assim o número de conexões espaciais entre a cidade e o rio, hoje restrito a uma única passagem, frontal à avenida Sepúlveda. Ainda que a proposição do colega seja fundada em razões locais – a extensão do eixo da Igreja das Dores até a orla e a substituição dos atuais galpões dos correios, hoje localizados no porto por uma nova biblioteca pública –, o conceito de fundo que essa proposição contém – o incremento à permeabilidade entre a orla e a cidade – traz em si o ingrediente fundamental a ser utilizado na urbanização do cais, qualquer que seja o projeto a ser ali adotado.
Foi isso o que me levou a elaborar esse comentário enfatizando a essencialidade deste incremento à permeabilidade urbana, trazido à baila pelo colega. Conduta urbanística que, levada ao limite, nos encaminharia naturalmente ao exame da possibilidade de extensão, até o rio, da totalidade das ruas do centro da cidade perpendiculares à orla. Veríamo-nos, assim, em um tempo futuro caminhando por uma rua qualquer do centro de Porto Alegre, tendo ao fundo da perspectiva o rio e ilhas e não mais, a figura devastadora do muro da Mauá (Fig. 2).
No diagrama (Fig. 3), vêem-se as ruas do centro, em amarelo, sendo estendidas, em vermelho, até um percurso de borda, idem em vermelho, à nossa hipotética rua da orla, situada na beira, entre a linha de armazéns e o rio. Para cada rua uma comporta. A estratégia de gestão espacial acima sugerida evidencia um modo de lidar com as possibilidades de urbanização da área portuária, quantitativamente e qualitativamente, distinto, ainda que não antagônico, daquele hoje em pauta: a implantação de um shopping-center de grande porte nas proximidades da Usina do Gasometro, três torres – com hotelaria, salas comerciais e estacionamentos - nas docas próximas à estação rodoviária (Fig. 4) (4). Todavia, ainda que esse projeto ambicione integrar a orla à cidade – assim diz o texto de apresentação – o que de fato ocorre é que esse esforço de urbanização é todo ele realizado extramuros, fora do muro, de modo precariamente conectado ao espaço publico do centro da cidade, como bem detectou o colega em sua avaliação. Tendo esse cenário em conta, o modo de ocupação da área portuária aqui postulado, fundado no incremento à permeabilidade urbana, virá simplesmente em auxílio, em complemento - buscando prover suporte espacial - ao projeto hoje proposto que, sem as benesses da permeabilidade urbana, tenderia a encaminhar de modo inexorável a segregação espacial e a elitização daquela área.
notas
1
Ian Bentley et al, 1985. Responsive Environments: A Manual for Designers. London: The Architectural Press.
2
Projeto de Aline Aguiar, realizado para a disciplina de Projeto Arquitetonico I da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, durante o segundo semestre de 2010.
3
Jornal Zero Hora de 18/5/2013
4
<http://portoimagem.wordpress.com/imagens-do-projeto-de-revitalizacao-do-cais-maua>
sobre o autor
Douglas Aguiar é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul