— Oi, Abilio, o Claudio Libeskind pediu para informar a você e ao Vitruvius que seu pai, David Libeskind, acaba de falecer.
Foi assim, com uma mensagem informal enviada por Marina Grinover pelo Facebook, lida enquanto caminhava de volta para casa, que eu tomo conhecimento da morte de um dos arquitetos mais importantes para a cidade de São Paulo. Antes de abrir o portão, olho no celular para ver data e horário da mensagem: 9 de abril de 2014, 22h35.
Eu mesmo preparo a matéria que entra no ar logo a seguir, ainda na quarta-feira, como destaque do noticiário do portal (1). Sem o acesso ao nosso banco de dados, pesquiso o nome do arquiteto nos verbetes do Itaú Cultural e me deparo com os dados levantados pela pesquisa de Luciana Tombi Brasil. Num rompante me vem à lembrança a surpresa que tive ao ver as belíssimas residências projetadas por Libeskind presentes no volume da dissertação de mestrado de Luciana (2). Do arquiteto, conhecia muito bem o excepcional Conjunto Nacional na Avenida Paulista e um ótimo edifício em Higienópolis, onde residiam amigos. Conhecia de publicações duas ou três casas, que considerava bons projetos, e nada mais. Após a banca de defesa da dissertação de mestrado, ocorrida na FAU Maranhão no dia 24 de setembro de 2004, da qual participei ao lado de Luís Antônio Jorge, orientador, e Paulo Bruna, professor da casa, comentei com Luciana que estava interessado em publicar a dissertação na forma de livro. Estas coisas aconteceram há uma década, constato antes de dormir.
Na manhã seguinte, quinta-feira, pego o metrô até a estação Butantã, entro em um táxi e peço para o motorista me levar até o Cemitério Israelita do Butantã. No caminho, conforme rumo para Oeste, observo a cidade baixa e esgarçada que se estende sem fim e sem identidade dos dois lados da Rodovia Raposo Tavares. Penso o quanto esta realidade urbana é o anverso da cidade bem projetada que admiro, da qual o Conjunto Nacional (3) é o maior ícone na cidade de São Paulo. Penso também no dia em que conheci Davi Libeskind. Foi em sua bela casa no Pacaembu, acompanhado dos arquitetos Luciana Tombi Brasil e Mario Figueroa. A data não me recordo, mas foi no ano de 2005. Não sei ao certo o que conversamos, mas devo ter dito sobre o quanto sua obra residencial era maravilhosa e o quanto ela merecia ser divulgada, pois pouca gente a conhecia. Devo ter dito isso ou algo parecido, pois fui até lá, acompanhado da autora, pedir autorização para publicar o livro.
O táxi sai da via expressa, entra no bairro e dispara por uma avenida, ainda mais rápido do que na rodovia. “Não deve ter radar por aqui”, penso. Quase pergunto para o taxista se ainda está longe, mas ele está para pouca conversa, eu também. Para me distrair, tento me lembrar quantas vezes tinha me encontrado pessoalmente com Libeskind. Mais de uma dúzia, menos de duas dezenas: chego nesta conta. O suficiente para acompanhar a oscilação de sua saúde e a coragem com a qual enfrentava há muitos anos o mal de Parkinson, doença que vinha minando de forma crescente sua mobilidade e sua capacidade de falar, mas não sua memória e consciência da realidade. Estabelecemos uma rotina de comunicação que aos poucos foi se transformando em confiança mútua, vital para a necessária pesquisa complementar, realizada a seguir com a participação da autora, deste editor e, principalmente, de Ivana Barossi Garcia, da Romano Guerra Editora. David adorava a Ivana e a recebia sempre com um sorriso largo; estava garantido assim que nossas reuniões seriam sempre muito agradáveis, e foram.
O taxista contorna uma curva com velocidade excessiva e a frenagem brusca me desperta do devaneio. O cemitério está diante de mim. O porteiro nos explica onde acontece o velório e rumamos na direção indicada. O motorista não é insensível diante da solenidade da morte evocada pela sucessão de túmulos dos dois lados da rua; o automóvel agora segue tão vagaroso que passamos a ser ultrapassados por outros veículos pela esquerda, enquanto à direita me é possível ler alguns nomes hebraicos nas lápides. David Libeskind será em breve mais um nome hebraico gravado na pedra. Provavelmente com ancestrais poloneses, como a maioria da comunidade judaica no Brasil, Libeskind nasceu em Ponta Grossa, Estado do Paraná, em 24 de novembro de 1928, mas a família mudou-se no ano seguinte para Belo Horizonte. Na capital mineira David estudou do primário ao curso de arquitetura na UFMG, onde se graduou em 1952. Foi aluno do pintor modernista Guignard na adolescência e estagiário do Sphan pelas mãos do seu professor Sylvio de Vasconcellos. A amplitude de seus interesses marcou sua atuação profissional: ao longo da vida foi arquiteto, pintor, artista gráfico e ilustrador. Tento me lembrar o que li e o que me foi contado por David, mas não me recordo.
Entro no velório, construção moderna em concreto armado à vista, e logo me encontro com Claudio Libeskind, um dos dois filhos homens. Claudio me abraça, agradece a presença e me diz o quanto o livro foi importante para o pai. Eu retruco que o pai merecia um livro maior, mais bonito, mais completo do que aquele que conseguimos fazer a partir do recorte estrito de uma dissertação de mestrado. Eu disse o mesmo algumas vezes para o próprio David, mas ele sempre – com evidente sinceridade, mas enorme generosidade – me dizia que estava muito contente com o livro e que sua única vontade era vê-lo pronto antes de morrer. Posso confessar agora que o receio de não cumprir este desejo eu compartilhei por temerários três anos com Luciana Tombi Brasil, a autora, e Silvana Romano Santos, que dividia comigo a responsabilidade pela edição.
Deixo o Claudio recebendo o conforto de familiares e amigos, que agora chegam em maior número, e entro na sala onde está o corpo. O cômodo está ainda vazio e me sento em um dos cantos, onde posso admirar o maravilhoso caixão de papelão. Como vou dar aulas a seguir, estou com mochila, onde pego papel e lapiseira e começo a escrever este texto. O que vou dizer do arquiteto? E do homem? Do homem que aprendi admirar falta reiterar que lutou com coragem contra a doença que o acometia. Quando o lançamento do livro começou a se avizinhar – a edição se viabilizou graças à coedição com a Edusp e à colaboração gentil de Luís Antônio Jorge, orientador da dissertação, que solicitou recursos complementares à Fapesp e escreveu a apresentação do volume (4) –, David repetia que não iria ao evento. Contudo, ele reiniciou a fisioterapia que havia interrompido. E sua dedicação era tamanha, que voltou a andar, o que não fazia há algum tempo. Andava com muita dificuldade, com ajuda de bengala ou andador, mas sozinho (ao menos ele assim queria e assim enxergávamos seu esforço). A data de lançamento foi marcada e até a véspera Libeskind dizia que não compareceria. Ele fingia que falava a verdade; nós fingíamos que acreditávamos. No dia 19 de fevereiro de 2007, no início da noite, lá estava ele, ladeado pela família e assediado por um número surpreendente de admiradores. Foi uma noite memorável, para ele, para mim e para muitos outros.
Na cerimônia final, os filhos dizem suas últimas palavras. Claudio me faz chorar com um depoimento emocionado e emocionante, lembrando que o pai lhe comprou os primeiros instrumentos de desenho e o ensinou a desenhar, e que lhe ensinou outra coisa ainda mais importante, o valor da honestidade diante da vida, palavras reiteradas a seguir pelo outro filho, Marcelo, engenheiro. Olho à volta e vejo que não só as mulheres choram; outros homens, como eu, enxugam discretamente as lágrimas que insistem em escorrer. Olho pela última vez o caixão de papelão. Meu amigo está lá dentro. Não, ele não está mais lá; o corpo, a primeira casa do homem, está agora desabitado. David foi um brilhante artífice das outras duas casas do homem, a residência e a cidade. O singelo livro que fizemos registra com honestidade estes feitos. Antes de ir embora para sempre, David Libeskind legou para a posteridade um projeto adequado a uma cidade mais humana, mais gentil, mais democrática, o Conjunto Nacional. Contudo, antes que ela seja viável para a maioria, uma agenda hercúlea de necessidades precisa ser cumprida. Mas David contribuiu para mostrar que ela é possível.
notas
1
Morre David Libeskind. Arquiteto falece aos 85 anos de idade. São Paulo <www.vitruvius.com.br/jornal/news/read/1920>.
2
Ver: GUERRA, Abilio. David Libeskind e a arquitetura residencial em São Paulo. Resenhas Online, São Paulo, ano 03, n. 033.02, Vitruvius, set. 2004 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/03.033/3178>.
3
Ver: VIÉGAS, Fernando Felippe. Conjunto Nacional: a construção do espigão central. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2004; VIÉGAS, Fernando Felippe. Desenho de cidade: o projeto do Conjunto Nacional. Novos Estudos, n. 70. São Paulo, Cebrap, nov. 2004, p. 185; STINCO, Cláudia Virginia. O Conjunto Nacional: história e análise de um modelo. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2004.
4
BRASIL, Luciana Tombi. David Libeskind. Ensaio sobre as residências unifamiliares. Coleção Olhar Arquitetônico, volume 02. São Paulo, Romano Guerra/Edusp, 2007. Ver: EKERMAN, Sergio Kopinski. David Libeskind, a arquitetura moderna e a modernidade brasileira. Resenhas Online, São Paulo, ano 07, n. 082.02, Vitruvius, out. 2008 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/07.082/3057>.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.