Salvador presenciou na segunda metade do século 20 forças urbanas absolutamente inéditas e marcantes. As décadas de 1950, 1960 e 1970 trouxeram marcas à cidade como a revolução de Edgard Santos, os movimentos de Carybé, Pierre Verger, Jorge Amado e Calazans, o Tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, a construção das avenidas de vale por Antonio Carlos Magalhães, a Paralela e o novo centro administrativo pensado por Mário Kertész. Mas nada disso eu havia presenciado. Apenas ouvi falar.
Nasci em 1977 e demorei a me tornar gente. Acho que comecei a me sentir alguém quando passei a perceber que Salvador era mais que a minha rua. E tenho muito claro o exato momento em que isso aconteceu.
Acompanhei, nos meados de 1980, a instalação da passarela que atravessa a avenida Centenário, ligando o já existente Victoria Center ao futuro Shopping Barra. Eu estudava ali ao lado, no Jardim Brasil, e o meu caminho para a escola se tornou uma incrível oportunidade de ver aquela passarela subindo, sem que eu acreditasse, de fato, que ela fosse se tornar real. Era para mim incrivelmente lógico que aquilo não ficaria de pé.
Pouco tempo depois, eu passava diariamente pela passarela já pronta. Tornou-se o meu caminho para a escola. Foi ali que soube que existia um tal de João Filgueiras Lima, o Lelé. Foi ali que comecei a perceber a cidade e a arquitetura deste homem.
As passarelas de Salvador são uma marca mundial, mesmo que o mundo ainda não tenha se dado conta disso. Eu não sabia quem era Lina Bo Bardi, não lembro de Gil na Fundação Gregório de Mattos. Waly Salomão então, nem pensar. Lelé foi, para mim, a grande força urbana da década de 1980 em Salvador. Ele fez a arquitetura para um mundo melhor.
Estou, agora adulto e envolvido na gestão pública, novamente com Lelé na história da minha vida. Iniciaremos, agora em junho, a demolição de escolas projetadas por Lelé em 1980. Entre nós, na prefeitura, são as chamadas "escolas padrão Desal".
Projetadas com blocos pré-moldados, com a improvável mistura de força e sutileza, algumas com painéis de Athos Bulcão, levam consigo a marca de Lelé, este homem que fez eu me entender como gente. Fez-me gostar da minha cidade pela primeira vez.
A absoluta falta de manutenção, uma grande irresponsabilidade no trato do patrimônio público, tornou irrecuperáveis muitas dessas escolas projetadas por Lelé. Deixá-las de pé é ferir a obra do mestre. Mas dói.
Mário Kertész me ajudou a encontrar Lelé em 2013, pouco antes de ele morrer. Levei a ele um convite para novos projetos na área de turismo. Ele estava cansado e descrente, mas mantinha a altivez e o estilo franciscano. Não agendou uma segunda conversa.
Hoje, visitando as escolas que ele projetou, entendo um pouco mais porque não voltei a vê-lo. A cidade lhe pede desculpas. Lelé estava no caminho da minha escola. Agora estou eu no caminho da escola dele. Peço sua benção e sua compreensão.
nota
NA – publicação original do artigo: BELLINTANI, Guilherme. Lelé e as escolas. A Tarde, Salvador, Seção Opinião, 16 jun. 2015.
NE – a republicação deste artigo se deu graças à valiosa colaboração de Marcio Correia Campos.
sobre o autor
Guilherme Bellintani é Secretário de Educação de Salvador.