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Abilio Guerra comenta a sessão inaugural da Feira Literária Internacional de Paraty – a Flip 2015 –, onde se apresentaram Beatriz Sarlo, Eliane Robert Moraes e Eduardo Jardim, e que contou com a inesperada participação do ator Pascoal da Conceição.

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GUERRA, Abilio. “Eu sou trezentos e um!”. Começa a Flip dedicada a Mário de Andrade. Drops, São Paulo, ano 16, n. 094.01, Vitruvius, jul. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/16.094/5600>.


Após Mauro Munhoz, diretor-presidente da Associação Casa Azul, e Paulo Werneck, curador do evento, darem as boas vindas aos participantes e declararem aberta a edição 2015 da Festa Literária Internacional de Paraty, subiram ao palco os convidados: Beatriz Sarlo, Eliane Robert Moraes e Eduardo Jardim. O fio condutor da conversa foram as ambivalências presentes na obra do escritor brasileiro Mário de Andrade ou na interpretação dos seus significados.

A conceituada crítica argentina apresentou um quadro comparativo entre as cenas modernistas de São Paulo e Buenos Aires nos anos 1920, onde o ponto em comum era a celebração da cidade moderna e todas suas aquisições maquínicas. Como contraponto mais importante, apontou para os projetos de busca de uma identidade nacional, que chegam a proposições muito distintas. Do lado brasileiro, a riqueza da diversidade cultural vai encontrar no trânsito incontido de Macunaíma por nossa geografia física e cultural sua mais profunda síntese. Percorrendo os polos mais urbanizados do país – São Paulo e Rio de Janeiro –, o herói sem nenhum caráter vai retornar à mata virgem para se tornar constelação. A história, a mitologia, a fabulação, as culturas africana, indígena e brancas de várias origens, tudo misturado e fundido no projeto cultural de Mário. Enquanto isso, na Argentina, Jorge Luis Borges e colegas traçam um projeto equivalente, mas limitado pelo arco mais estreito da diversidade. O gaúcho síntese do homem portenho teria surgido em um momento onde o gaúcho histórico, que toca o gado pelos pampas, já era um personagem soterrado pelas transformações econômicas e sociais do país. Quando não havia mais gaúchos, afirma Sarlo, o “argentino” se torna em um deles.

Eliane Robert Moraes, especialista em literatura erótica, vai busca em passagens da obra de Mário de Andrade a manifestação de uma sexualidade exaltada, mas contida pelos códigos sociais vigentes na época. Do ponto de vista da elaboração estética, destaca uma passagem em Macunaíma onde o personagem, preocupado em aperfeiçoar seu português escrito e seu brasileiro falado, ganha uma flor de uma “cunhatã”. Trata-se de uma passagem deliciosa do romance, que reproduzo aqui:

“Macunaíma passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma urupema carregadinha de rosas. A mocica fez ele parar e botou uma flor na lapela dele, falando: — Custa milréis. Macunaíma ficou muito contrariado porque não sabia como era o nome daquele buraco da máquina roupa onde a cunhatã enfiara a flor. E o buraco chamava botoeira. Imaginou escarafunchando na memória bem, mas nunca não ouvira mesmo o nome daquele buraco. Quis chamar aquilo de buraco porém viu logo que confundia com os outros buracos deste mundo e ficou com vergonha da cunhatã. ‘Orifício’ era palavra que a gente escrevia mas porém nunca ninguém não falava ‘orifício’ não. Depois de pensamentear pensamentear não havia meios mesmo de descobrir o nome daquilo e pôs reparo que da rua Direita onde topara com a cunhatã já tinha ido parar adiante de São Bernardo, passada a moradia de mestre Cosme. Então voltou, pagou pra moça e falou de venta-inchada: — A senhora me arrumou com um dia-de-judeu! Nunca mais me bote flor neste... neste puíto, dona!”

A partir desta passagem, Eliane Robert Moraes faz uma série de interpretações dos deslizamentos de significados de “buraco”, sua oscilação nos universos culto e popular da língua, a incapacidade do personagem em assimilar por completo a parte nobre, mas sua perspicácia em encontrar na palavra “puíto” uma saída para o caso. Achando graça do termo indígena e desconhecendo seu significado original – ânus –, a cunhatã, a moça branca da cidade, achou graça da “palavra-feia” e se pôs a perguntar a todos se queriam “que ela botasse uma rosa no puíto deles”. Temos aqui uma vitória do termo interditado, onde o universo popular serve de válvula de escape para o universo reprimido da sexualidade.

Por fim, Eduardo Jardim comentou aspectos da trajetória ambivalente e, em alguma medida, ambígua do homem e literato Mário de Andrade. “Eu sou trezentos”, expressão do escritor, é o ponto de partida de suas ilações, que apontam para as tensões presentes em uma trajetória que vai se abrindo em meio aos pares opostos – nacional e universal, popular e erudito, comedido e detemperado, apolíneo e dionisíaco, o urbano e o rural... Jardim vai encontrar em dois retratos de Mário feitos por amigos as construções paradigmáticas deste jogo de opostos.

Repetindo em parte a apresentação que fez para um público menor na preliminar paulista da Flip, ocorrida no Sesc nos meses de maio e junho, o crítico carioca lembra primeiro a descrição feita por Alceu Amoroso Lima, feita no apogeu da atuação do grande líder cultural, descrito como um homem alto, de ombros largos, cara grande e sorriso largo, uma pessoa expansiva, dona de si, talhada para o papel histórico para o qual foi escolhido e escolheu. O segundo perfil de Mário de Andrade foi feito por Rubens Borba de Moraes, intelectual carioca que encontra o escritor paulista andando pelo centro de São Paulo. Sua descrição aponta para um homem frágil, esverdeado, adoecido, ensimesmado em uma solidão desacorçoada.

Jardim vê nas duas descrições a complexa, interessante, poliédrica personalidade de um homem que atravessa sua curta vida divido entre o compromisso intelectual coletivo e a possibilidade de uma obra individual, entre o papel a ser cumprido no meio culto de uma sociedade patriarcal e o desejo da satisfação sensual e sexual em larga medida reprimida. Segundo Jardim, é justamente estas tensões nunca apaziguadas e jamais “sequestradas” que sustentam toda sua obra e lhe garante sua profundidade e abrangência.

Quando Jardim terminava sua apresentação e lia um trecho de “Meditações sobre o Tietê”, obra crepuscular do autor modernista, eis que invade a cena uma encarnação assombrada de Mário de Andrade, protagonizada pelo ator Pascoal da Conceição, que entoava em tom mais alto do meio da plateia outras passagens do mesmo autor. O abraço entre constrangido e emocionado de Jardim e Conceição é a cena final do primeiro ato da Flip 2015.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

Eduardo Jardim e Pascoal da Conceição como Mário de Andrade
Foto divulgação

 

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