A mesa que abriu o segundo dia edição 2015 da Festa Literária Internacional de Paraty foi uma conversa complexa e difícil entre antropologia e poesia. De um lado, Antonio Risério, intelectual baiano de primeira grandeza, de quem guardo na memória artigo seminal sobre o modernismo paulista, publicado há décadas na Folha de S.Paulo, onde apresentava o termo “paulistocentrismo” para definir o primeiro momento em torno da Semana Moderna de 1922, para a seguir comentar a inflexão pau-brasil voltada para o interior do país. Segundo Risério, teríamos aqui um momento especial de inversão de sinais em relação ao nosso passado e ao nosso destino. Diante dos prognósticos horrorosos e Gobineau e seguidores, operamos uma sessão de psicanálise coletiva, de aceitação de nossos limites e redefinição em alto grau do nosso devir.
Do outro lado, Eucanaã Ferraz, poeta carioca, do qual tenho memória mais recente, pois escreveu a convite de Paulo Werneck, naquela ocasião editor do caderno Ilustríssima da mesma Folha, uma resenha do livro Ministério da Educação e Saúde, de Roberto Segre, naquele momento apenas um projeto em andamento, sob minha responsabilidade e de Silvana Romano, e com problemas de recursos para sua finalização. O belo texto de Eucanaã ocupando duas páginas inteiras do folhetim foi uma injeção de ânimo para o término do livro. Ali ficava evidente seu vínculo e familiaridade com os temas do modernismo brasileiro e dos seus desdobramentos no urbano.
A distância de pouco menos de uma década entre as datas de nascimento coloca os personagens em gerações diferentes. Risério, nascido em 1953, representa a velha guarda que enfrentou os percalços dos estertores do regime militar; Ferraz, nascido em 1961, tem sua atuação iniciada no período da jovem democracia, com outra agenda e outras demandas. Talvez esta diferença explique, mais do que as entradas distintas na discussão, o estado de espírito que engendrou suas falas. Do sentido de urgência presente no discurso de Risério se desprendia um sentimento de desespero contido, de certeza da catástrofe, de grito agônico. Na fala mansa e açucarada de Ferraz se entrevia uma jovial confiança no futuro, do cumprimento de uma agenda de acertos, uma certeza do tempo disponível e favorável. Não seria exagero dizer que tínhamos ali duelistas potenciais – um, pessimista empedernido; outro, otimista convicto – que não chegaram a se enfrentar de fato, pois suas falas se propagaram em paralelo na plateia lotada e enlevada e o clima festivo da ocasião operou uma síntese improvável, quase impossível (o latente conflito se expressou nas fissuras do discurso e só se deixou mostrar mais evidente quando Risério contrariou Eucanaã ao dizer que uma eventual música de Tom Zé sobre a situação atual da metrópole São Paulo seria irrelevante, sem desdobramentos práticos).
A fala do antropólogo baiano centrou-se sobre a necessidade de uma narrativa comum tecida a partir da multiplicidade dos discursos e ações práticas dos grupos atuantes no corpo social e que forçam a expansão das liberdades democráticas. As falas de homossexuais, negros, índios, mulheres, “maconheiros” e demais grupos articulados precisariam desaguar em um lago comum. As noções de pertencimento e compartilhamento presentes nestes discursos só seriam operativos e – portanto – com capacidade de transformação efetiva dos processos de expansão, segregação e exclusão urbanas caso se unificassem na mencionada narrativa comum, de difícil mas não impossível execução. Se é que entendi a mensagem, o locus onde tal fenômeno ocorreria seria o próprio corpo físico da cidade, na promoção da sua identificação por parte dos seus moradores, na aproximação dos ritos de urbanidade do cotidiano, no enfrentamento cotidiano da cidade segregada, cuja lógica é dada pelos limites dos muros e clausuras. Em síntese, trata-se de enfrentar a anomia social descrita por Émile Durkheim – citado por Risério – com a montagem de um discurso comum. Contudo, o ânimo presente nestes argumentos se esfacela no final de sua fala, quando joga pesadas sombras sobre sua visão de futuro próximo. Segundo ele, a discussão sobre a cidade ideal, utopia trazida para a discussão urbanística pelos modernistas e disseminadas pelos modernos, está totalmente ultrapassada. Não há mais tempo para isso diante da eminência da catástrofe ecológica e que a grande questão atual é a sobrevivência, não mais a felicidade.
A fala de Eucanaã Ferraz começou com uma leitura emocionada e emocionante de um poema de Mario de Andrade, onde ele determina ao testamenteiro o que fazer com as partes do seu corpo. Segundo o poeta paulista, cada órgão seria enterrada em um lugar especial de São Paulo, cidade da qual foi um dos poetas maiores. O poeta carioca lembrou o papel fundamental ocupado pela metrópole nos debates intelectuais das vanguardas europeias e, em especial, o quanto vários dos fenômenos urbanos – iluminação, automóveis, locomotivas etc. – impunham uma nova experiência do vivido e do papel da arte. A visão romântica do artista enfurnado em sua torre de marfim, afastado dos problemas do cotidiano para conceber uma arte elevada, foi atropelada pelo engajamento do artista no cotidiano, onde o artista se mistura no burburinho da cidade infestada de ruídos, odores, confusões. A nova forma de entender e viver a o fenômeno urbano faz com que o artista entenda a cidade como uma “máquina de comover” em plena simetria com a “máquina de morar” de Le Corbusier.
Mário de Andrade acompanha à distância, mas pari passu, a evolução da discussão europeia. Ao contrário da geração anterior, que poderia ainda se imaginar como um beneditino resguardado em seu claustro, a geração modernista, com seu líder à frente, vivencia a experiência urbana com o corpo e a alma. Eucanaã traz à cena neste momento de sua fala o poema-comprimido “Bonde”, que Oswald de Andrade publica no livro Pau-brasil, de 1925: “O transatlântico mesclado / Dlendlena e esguicha luz / Postretutas e famias sacolejam”. Sinestesia que contamina sensações de coisas e pessoas, o movimento que sacoleja não só pessoas mas também as próprias palavras que as designam – magnífica e sintética forma de expressar o mergulho do poeta na vida febril da cidade moderna. No final, Ferraz evoca uma passagem de Macunaíma para lembrar do risco corrido pelo poeta que se envolve de forma afetiva e corporal com seu objeto de adoração: a Uiara, a sereia fluvial brasileira, chama o herói para a lagoa, para o fundo, para a dissolução. Independente do risco, a mensagem de Eucanaã Ferraz parece ser uma aposta no papel poeta como alguém que ainda tem a possibilidade de traduzir o fenômeno urbana em experiência humana.
Diante de posições tão distintas sobre o papel da poesia na contemporaneidade, é possível sugerir uma ambivalência para a frase “a poesia é uma ameaça”, dita por Eucanaã. Para este, o ameaçado é o status quo, que rebaixa a experiência urbana rica. Para o pensador baiano, a poesia é uma ameaça ao ser uma promessa que não pode se cumprir.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.