I
Tagore disse uma vez que as árvores são o extremo esforço da terra em conversar com o céu. Às vezes parece que outras formas de vida procuram estabelecer relações mais complexas com o céu, enquanto o homem busca copiar um céu que ele mesmo criou. Isso torna o exercício humano de criação uma fabricação de espelho, embasado numa metalógica conveniente.
Quando se edifica, se produz algo para satisfazer a necessidade do homem, seja ela de habitação, religiosa, funcional etc. e, dessa maneira, a arquitetura é uma criação do homem para ele mesmo. Até quando se constrói algo em benefício de outra espécie, assim é porque o homem quis, uma vez que todas as decisões sobre o que se cria e se produz na Terra são tomadas pela humanidade. Entretanto, os humanos não são a única coisa no planeta.
Quando edificamos, edificamos sobre um terreno. Esse terreno existia antes de criarmos as nossos contratos sociais e até mesmo antes da própria existência do homem. Ou seja, o terreno – como parte da natureza – não tem nada a ver com as nossas práticas. Não tinha, até o homem arrancar as árvores, abrir um buraco, botar uma dúzia de sapatas e edificar uma casa. Os pássaros que moravam nessas árvores também não tinham nada a ver com isso.
Essa abordagem pode soar utópica e inverossímil na estrutura social e produtiva que temos hoje, mas na verdade é bem prática. Prática porque a arquitetura – que serve ao homem – não tem se mostrado eficaz em sanar os problemas do habitar (no sentido amplo heideggeriano). Na prática, temos enchentes, temos poluição, temos doenças oriundas dessa poluição, temos sub-habitações e outras tantas mazelas que desqualificam o habitar. E na prática, essas chagas têm como impulsionador a impermeabilização e canalização arbitrária; excesso de carros, fábricas e prédios gerando ilhas de calor; políticas públicas não efetivas e demais criações humanas. Nessa perspectiva, essa produção humana mais se aproxima de uma autofagia do que da solução dos conflitos ordinários do existir. É contraproducente divagar sobre o não produzir, não edificar. Entretanto, a epistemologia produtiva deveria atualizar-se frente aos novos cenários que se projetam.
II
O primeiro passo para uma compreensão mais abrangente do homem no mundo é dado através do entendimento da abordagem sistêmica. O respirar de uma pessoa capta oxigênio do ambiente imediato e devolve dióxido de carbono para esse mesmo ambiente. Ainda que em escala pequena, esse processamento depende e altera esse ambiente imediato. Em uma escala menor há a respiração celular. Numa escala maior, há a respiração das florestas, dos oceanos etc. A Teoria dos Sistemas, sugerida por Bertalanffy na década de 1930, trouxe à abordagem científica o caráter relacional dos elementos do ambiente, numa perspectiva sintética frente as relações complexas das coisas do mundo. Na década seguinte, Wiener contribuiu para a evolução dessa abordagem sistêmica, inserindo também o caráter analítico ao afirmar que a ciência deve estudar não só a influência do todo nas partes, mas também o comportamento dessas partes e a relação entre elas e o sistema. Essa abordagem cibernética aclarou a relação dos sistemas e das partes: o ambiente fornece informações à uma parte, que a processa e devolve um produto ao mundo, num exercício cíclico, assim como nos processos de respiração supracitados.
A cibernética tornou a abordagem sistêmica mais prática, sendo utilizada por várias ciências aplicadas como administração, economia, ciências da informação etc. Compreender que tudo está relacionado – inclusive o que nós produzimos e botamos no mundo – nos permite enxergar como todas as coisas coexistem no ambiente. Os prédios que produzimos são coisas que pomos no mundo para se relacionar com nós humanos e nossas necessidades de habitação, trabalho, transporte, cultura etc. Estariam, contudo, os nossos edifícios relacionados somente com aquilo que planejamos? Eles não se relacionam com a fauna nativa, flora, microclima etc. só porque não relevamos isso?
O problema é que somente quando as disfunções surgem, emanam as necessidades e as problemáticas. Somente a ineficácia de um elemento faz com que o enxerguemos como uma coisa Zuhandenheit, útil ao nosso sistema. Emana então o ‘pelo que’ dessa coisa e nos faz acender uma luz e pensar “ah, tá... o problema é esse, essa coisa existe para isso”. Precisamos da necessidade dos piscinões de São Paulo e das fachadas bird-friendly de Nova Iorque para nos darmos conta de que há um sistema ambiental e que ele existe quer o ser humano o considere, quer não.
III
Isso nos conduz ao segundo passo para a compreensão expandida do homem no mundo, a ecologia profunda, conceito proposto por Arne Naes na década de 1970. A ideia é simples: a humanidade é uma população própria e significante, entretanto, é somente mais um elemento na teia da vida. Ou seja, há outras coisas significantes no mundo, de grandeza igual, maior ou menor à nossas vidas. As formigas existiram sem o homem? Talvez sim, mas com certeza a existência do homem altera a existência das formigas e vice-versa. E o comportamento dos fluidos, existiria? Dos astros? As organelas das células do homem sim, existem dentro do sistema ‘homem’ e é difícil imaginar sua existência sem a existência do mesmo. Tudo se trata de perspectiva para abordar cientificamente as relações das coisas do mundo: botando o homem como centro ou como mais um elemento da complexa trama das coisas que habitam a Terra.
Aí que começam a surgir lacunas na abordagem ambiental das ciências aplicadas. Como estudar algo que não somos nós, não é produzido por nós, através de uma perspectiva viciada em centrar o homem? Essa abordagem tendenciosa do meio ambiente é levada às tecnologias que incorporam questões ambientais, como a arquitetura. Decorrente disso, a arquitetura se preocupa somente com questões de conforto e males ambientais que lastimam escancaradamente o homem, como enchentes, poluição, etc. Esse indução, tentando resolver somente o imediato, vicia os valores sociais, vontades políticas e métodos produtivos quanto ao tema. Numa perspectiva sistêmica, se molesta minimamente a natureza, por mais que soe inofensivo ao homem, em algum grau e algum aspecto irá afetá-lo.
A arquitetura passiva e renovadora de qualidade ambiental começa a surgir, mas ainda em concursos e estudos de caráter utópico. O mercado não liga, a tecnologia não acompanha. A mensuração de eficiência energética é um primeiro passo, mas o meio ambiente não se limita às fontes de energia úteis ao homem. O antropocentrismo na abordagem ambiental não seria um problema se, cientificamente, fosse comprovado que o homem tem poder de controle sobre essas moléstias ambientais que o aflige. Entretanto, isso não foi refutado e o critério de demarcação não consegue estabelecer tais poligonais.
IV
Aclara-se essa articulação com a arquitetura quando retornamos à ideia de que no princípio a paisagem era natural e o meio ambiente equilibrado, sujeito somente às modificações do tempo e não às degradações antrópicas. Por mais dos aspectos de origem política, social ou histórica, as consequências palpáveis na paisagem são materializados através da arquitetura. Um parque industrial é composto de edifícios, a cidade é composta de tramas de edifícios e vias etc. Tudo ao nosso redor é arquitetura.
Mesmo que as decisões que resultam na construção tenham origem exógena à arquitetura, poderia o materializador – o arquiteto – lavar as mãos e ignorar que existe um mundo não humano ao redor da arquitetura? Por isso a necessidade de atenção dos arquitetos frente à inoperância política, às maquiagens verdes adotadas pelas prefeituras, fugacidade do mercado e até a própria prepotência humana frente ao meio ambiente. Afinal, cada centímetro do seu traçado irá se materializar numa casa. Contudo, essa casa está sobre a terra, sob o céu, no mundo, do mundo e com o mundo. Assim como cuidamos da nossa casa, há de atentar para a casa das nossas casas, pois também habitamos nela.
sobre o autor
Gabriel Ferreira Canabarra é administrador, mestrando em Estratégia e Competitividade e graduando em Arquitetura e Urbanismo.