Ocorre-me narrar um encontro possível entre Lina Bo Bardi, Adriana Calcanhotto e Waly Salomão. Um encontro de artistas, de fato, e um encontro entre arquitetura, poesia e o gesto de arquitetar palavras musicalmente. Lina, arquiteta, meio italiana, meio brasileira, expoente nome da arquitetura brasileira, cujas principais obras datam do período de sua chegada ao Brasil, no início da década de 1950, até fins da década de 1980, principalmente em São Paulo e em Salvador (1); Adriana, meio gaúcha, meio carioca, expoente voz da poesia brasileira cantada, cuja produção musical e artística ganhou notoriedade no início dos anos 1990; Waly, poeta, ensaísta, produtor e diretor artístico baiano, peça-chave da Tropicália e parceiro de Adriana em várias composições poético-musicais.
Meu encontro com esses artistas-poetas, que cruza transversalmente o encontro entre eles próprios, se deu mais ou menos na mesma época, quando ingressei na faculdade. Estava nos primeiros períodos do curso quando passou por minhas mãos uma contagiante “fábrica musical”, que cantava poemas: o álbum A Fábrica do Poema, de Adriana, lançado em 1994 pela gravadora EPIC (Sony Music); ao passo que ia descobrindo aquela que seria, já a partir daquele momento e de modo derradeiro, uma grande inspiração na minha, então, recém-iniciada carreira em arquitetura e urbanismo, pelo modo de compreender, ensaiar e produzir arquitetura e cidade: Lina e sua obra de readequação da antiga fábrica de tambores dos Irmãos Mauser (e, posteriormente, fábrica de geladeiras IBESA/Gelomatic), ou seu Sesc Fábrica da Pompeia, ou, ainda, seu Sesc Pompeia – que a arquiteta chamava de Cidadela e que eu gosto de chamar, no sonho e nos rastros de Adriana e Waly, de Fábrica do Poema –, localizada no bairro da Pompeia, em São Paulo, importante complexo industrial de meados do século passado (2).
Tomando partido das atividades culturais e esportivas que o Sesc (abreviatura de Serviço Social do Comércio) já havia passado a desenvolver no lugar, ainda que de modo improvisado, após adquirir o terreno, em 1971, com o conjunto já fechado e em desuso, o original Centro de Lazer Sesc Fábrica da Pompeia teve o projeto iniciado em 1977 e a conclusão da obra em 1986 (3). Referência internacional de arquitetura e espaço público, o equipamento é protegido desde 2009, a nível local, pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), e foi tombado, no ano passado, como patrimônio histórico e cultural nacional, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Nesses anos todos, sempre que ouvia a música A Fábrica do Poema, faixa-título do disco homônimo, imaginava Adriana compondo a poesia/canção na própria Fábrica, ali, in loco, pelas ruas internas do conjunto da antiga fábrica, por sobre o píer de madeira projetado por Lina, sob as imponentes passarelas enviesadas. Sempre acreditei que a música teria não apenas sido inspirada pela Fábrica de Lina, mas que dela tinha sido motivo, sobretudo pelo fato da canção ter sido dedicada à memória de “Donna Lina Bo Bardi” – como também o fora o poema de Waly que lhe deu origem, homônimo à faixa e ao disco, publicado em 1996 (4).
Para tirar essa dúvida, cuja aposta eu já esperava ganha, não poderia haver outra maneira que não fosse perguntar à própria Adriana. Numa das apresentações da moça a que assisti, durante a turnê Trôbar Nova, na Sala Principal do Teatro Castro Alves, em Salvador, em princípios de junho de 2011, ocorreu-me contar-lhe, no backstage, num momento de absoluta tietagem e nos poucos minutos que durou nossa conversa, minha quase fantasiosa versão do conjunto das Fábricas: teria Adriana musicado o poema na Fábrica, inspirada por donna Lina e pelo lugar? Complacentemente, Adriana respondeu-me que não, que a história era a seguinte (e, aqui, assumo o risco da memória): que Waly lhe telefonara, certa vez, dizendo-lhe que tinha “esse” poema “impossível” de musicar. Ao que ela argumentou, contrariando-o, que não, que aquele poema era perfeitamente musicável.
Confesso que fiquei meio decepcionado, pois minha tese “imaginativa”, que me parecia absolutamente sustentável, tinha ido “por água abaixo”. Assim, estava descartada, pelo menos em princípio e nas falácias inexoráveis das criações que só a memória pode causar, a existência de uma relação direta entre Adriana e a Fábrica do Poema. Mas a história não me convenceu de todo. Ou melhor, eu acreditei na versão a mim contada por Adriana, mas, ainda assim, algo validava minha imaginação, não me permitindo desacreditar de todo na versão que eu próprio havia inventado. Foi então que disse à Adriana, entre risos e euforia, que continuava – e continuaria – pensando que sim, que a tese que eu havia levantado ainda se sustentava no meu imaginário-memória, e que eu continuaria “vendo-a” compondo e musicando A Fábrica do Poema na própria Fábrica.
Um atravessamento
Por ocasião da escrita deste texto, pude conferir a seguinte versão a respeito da composição da música, em um texto de Adriana intitulado A Fábrica do Poema – Faixa a Faixa, datado de outubro de 1994:
“Durante o tempo em que estava compondo para o disco pensei várias vezes em escrever algo para Lina Bo Bardi, chegando até a anotar algumas idéias soltas. Lembrei e esqueci disso muitas vezes até ficar sabendo que WALY havia escrito, no ano passado, um [poema] para ela. Liguei para ele (já do estúdio) e pedi para ouvir pelo telefone mesmo. Ele leu de um jeito lindo e quando ficou em silêncio, no fim, a canção (para mim) estava pronta” (5).
Dois atravessamentos
A leitura de um artigo do Estadão (6), escrito por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Lina, em 2014, quase colocou em xeque o motivo mesmo da redação deste texto. O texto do blog do jornal transcreve uma resposta de Waly ao poeta e crítico Adolfo Montejo Navas sobre sua relação com a Fábrica de Lina, fruto de uma entrevista concedida em 2001 para a revista Cult e que, não tendo sido publicada na íntegra à época, veio à rede a partir da revista virtual Erráticas, em publicação de 2004. Transcrevo a resposta a partir da fonte primária:
“Vou contar uma história ilustrativa sobre um poema: Lina Bo Bardi me pediu que retribuísse com um poema para a sua restauração da Fundação Gregório de Mattos, em Salvador. Infelizmente, eu não consegui fazer enquanto ela vivia, porque o poema não tem essa encomenda; só uns anos depois realizei ‘A Fábrica do poema’, pensando nos materiais que ela usava, pensando na fábrica do Sesc Pompéia. E eu fiz intencionalmente esse poema anti-musical, anti-facilidade, de forma que as palavras não fossem palatáveis, digeríveis, musicáveis e aí Adriana Calcanhotto, que estava na época interessadíssima na Lina Bo Bardi, foi avisada de meu poema por Susana Moraes, filha do grande Vinicius – nós somos todos filhos de Vinicius de Moraes! – me pediu o poema e eu enviei por fax totalmente descrente de que ela pudesse musicá-lo, porque tinha introduzido espinhas de peixe na garganta da palatividade. Por incrível que pareça Adriana musicou a letra de forma maravilhosa, e eu, para fazer pirraça aumentei intencionalmente o poema para publicação em Algarávias. O poeta deve ser assim, pirraçento com o mercado, com o mundo da facilidade, da fácil diluição” (7)
* * *
Se as versões da minha conversa com Adriana, em 2011, e de seu texto, de 1994, parecem, num primeiro momento, um tanto antagônicas, num segundo momento, penso que elas se completam, seja pelo telefonema entre Adriana e Waly a respeito de Lina e da Fábrica, seja pela resposta de Waly durante a entrevista, de 2001, que comprova sua própria “descrença” sobre a musicalização do poema e dá o veredito final sobre a tal relação entre as Fábricas dos Poemas.
Desde a primeira vez em que pisei na Fábrica do Poema, Lina, Adriana e Waly – poema, música e arquitetura –, imbricados, coexistentes, coimplicados, numa conversa quase anacrônica, tomaram conta do meu corpo, e não consigo parar de pensar nessa relação que acabei constatando não somente possível, mas também verdadeira.
A experiência de chegar ao local; olhá-lo de fora; penetrá-lo pela rua criada entre os edifícios restaurados e os novos edifícios, que traz o espaço urbano para dentro do terreno; viver o galpão da biblioteca e do espelho-d’água-rio; ser tomado pela plástica dos ateliers de blocos de concreto autoportantes e pelas passarelas de concreto protendido que conectam os dois novos edifícios inseridos no conjunto preexistente; adentrar os pavimentos do edifício da piscina, quadras poliesportivas e aparelhos de ginástica e ser, ali, amparado pelas janelas-ameba – ou os chamados “buracos de caverna”; pelas singelas flores de maracatu, reinterpretadas por Lina a partir de suas expedições anteriores ao sertão baiano; ir subindo as escadas externas ao edifício administrativo e sentir a chegada triunfante, enfim, é uma expressão da própria poesia da arquitetura – que também pode ser exemplificada pelas flores-fumaça exaladas pela chaminé-logotipo da nova fábrica (ilustração criada por Lina), transformando-se em flores-poema na arquitetura da caixa-d’água cilíndrica de 70 metros de altura: arremate gestual, onde cultura e cotidiano, lazer e recreação, jogo e espaço público ganham lugar.
Um popular pelo qual Lina havia se interessado, sobremaneira, já na sua primeira estadia em Salvador, na virada dos anos 1950/1960, quando do projeto de reabilitação do Solar do Unhão, onde teria lugar o Museu de Arte Popular que tanto idealizou. Um popular que ressurge, ou ganha oportunidade de reaparecimento, na sobrevivência das expressões artísticas brasileiras, como uma necessidade de abordagem efetivamente pública de cidade.
A experiência da Fábrica é arquitetura-poema, mas também um poema de arquitetura “ideal” sonhado, “cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra”, como é lido/dito n’A Fábrica do Poema. Talvez esteja aí uma pista, ou um convite para a reflexão, sobre a “questão-chave” enunciada na frase-epílogo do poema-canção, de ordem do sensível e do subjetivo, mas também de ordem poética: “Sob que máscara retornará o recalcado?” talvez expresse justamente a relação entre arquitetura e arte; entre Lina e seu gosto pelo popular, por trabalhos, técnicas manuais e experimentações in loco; por sua busca pela forma participativa de trabalho no canteiro de obras; por seu olhar, postura e prática antropológica de arquitetura e de cidade; pela idealização, concepção e construção do espaço público efetivo que é a Fábrica do Poema.
notas
NA – O nome e a obra de Lina Bo Bardi, e, particularmente, o Sesc Pompeia, chegaram até mim por intermédio de dois professores da faculdade, que continuam sendo parte inspiradora e fundamental da minha formação acadêmica/profissional: César Floriano dos Santos e Maria Inês Sugai. A eles agradeço pela generosidade de transmissão de conhecimento e dedico este pequeno ensaio. Por extensão, também dedico este texto à Isis Soares, na coautoria de concepção, redação e leitura do nosso discurso de formatura, Turma Lina Bo Bardi (Universidade Federal de Santa Catarina/2010); e à Juliana Serafim, na inestimável contracena das bolhas de sabão daquela memorável noite de outono. Dedico este texto, ainda, à Mirelle Papaleo, Cláudia Baratto, Isabel Wittmann e outros amigos que estiveram na Fábrica comigo nas várias visitas, partilhando daquelas experiências, em particular, Tiago Schultz, pela companhia, pela arquitetura, pela fábrica, pelo poema, pelo gesto, pelo momento. Agradeço a Glauco Ferreira pela descoberta do álbum A Fábrica do Poema e por tantas outras descobertas daquele tempo bom; e à Janaina Chavier, na interlocução recente sobre a Fábrica e sobre este texto. Todas as imagens foram feitas em dezembro de 2012.
1
Dentre as muitas referências à vida e à obra de Lina Bo Bardi, ver, sobretudo, FERRAZ, Marcelo (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo, Instituto Bardi/Imprensa Oficial, 1993.
2
Construída em fins da década de 1938, a empresa de tambores de aço Mauser & Cia. Ltda. funcionou até o ano de 1945, quando foi vendida para a de geladeiras a querosene Indústria Nacional de Embalagens S. A. (IBESA/Gelomatic). O projeto original da fábrica havia sido inspirado na arquitetura inglesa fabril típica do início do século 20, e sua estrutura, moldada por um dos pioneiros do concreto armado, ainda no início do século 20, o francês François Hennebique. A preservação do conjunto edificado foi um dos partidos projetuais adotados por Lina Bo Bardi, que havia sido convidada para realizar o projeto de readequação e manutenção da antiga fábrica a partir do propósito do projeto de ação cultural do Sesc.
3
Sobre um histórico do Sesc Pompeia, ver: FERRAZ, Marcelo. Numa velha fábrica de tambores. Sesc Pompeia comemora 25 anos. Minha Cidade, São Paulo, ano 08, n. 093.01, Vitruvius, abr. 2008 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/08.093/1897>; FERRAZ, Marcelo; TRIGUEIROS, Luiz (Orgs.). Sesc – Fábrica da Pompéia. Lisboa, Blau/Instituto Bardi, 1996; LATORRACA, Giancarlo (Org.). Cidadela da liberdade. São Paulo, Instituto Bardi/Sesc São Paulo, 1999.
4
Conhecido na voz de Adriana Calcanhotto, o poema A Fábrica do Poema, em versão integral em relação à canção homônima, pode ser conferido no livro original e na coletânea póstuma, respectivamente: SALOMÃO, Waly. Algaravias: câmara de ecos. São Paulo, Editora 34, 1996; SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
5
CALCANHOTTO, Adriana. A Fábrica do Poema – Faixa a Faixa. Discos. A Fábrica do Poema. Textos. Adriana Calcanhotto, out. 2004. Disponível em: <www.adrianacalcanhotto.com/sec_discografia2_textos.php?id=6>.
6
NUNES, Geraldo. Lina Bo Bardi, música, poesia e arquitetura. Geraldo Nunes: Madrugas & Memórias, São Paulo, Estadão Blogs, 19 dez. 2014. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/geraldo-nunes/lina-bo-bardi-musica-poesia-e-arquitetura/>.
WALY, Salomão; NAVAS, Adolfo Monteio. Entrevista. Errática, São Paulo, 2004. Disponível em: <http://erratica.com.br/opus/12/>.
sobre o autor
Osnildo Adão Wan-Dall Junior é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, com período de mobilidade acadêmica na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. É também mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, onde é membro do grupo de pesquisa Laboratório Urbano e da equipe de produção editorial da revista Redobra.