Trinta e sete países dos cinco continentes participam até o dia 27 de setembro de 2016 da primeira edição da London Design Biennale. A iniciativa de organizar o evento foi de Sir John Sorrell, criador, há 12 anos, do London Design Festival. Sua ambição declarada, expressa na cerimônia de abertura, é que a Bienal de Londres seja para o design o que Veneza é para a arquitetura.
O princípio é o mesmo: são representações oficiais dos países, tal como também ocorria, até alguns anos atrás, na Bienal de Arte de São Paulo. Estimulados pelo aniversário de 500 anos da publicação de Utopia, de Thomas More, os organizadores escolheram “Utopia by design” como o tema.
As respostas compuseram um rico e diverso painel, muitos deles tingidos com fortes cores políticas, que se distribuíam por toda a imponente Somerset House. A instalação francesa focou na cultura síria para refletir sobre o que o designer Benjamin Loyauté chamou de “geopolítica do design”. Na representação da Bélgica, país onde Utopia foi originalmente publicado, Benoît Van Innis sinteticamente fez o seu manifesto. À maneira da xilografia mostrando um mapa de um lugar simbólico da ilustração original, ele fez uma litografia com o seu mapa afetivo do que ele chamou dos 50 anos de “EUtopia”, um neologismo para falar da união europeia, agora tão ameaçada pelo Brexit e outros “exits” mencionados por ele.
Os jogos de palavras estiveram em outras instalações. A Suécia propôs a WEtopia, querendo reforçar o conceito do coletivo em oposição ao culto às estrelas que costuma predominar em mostras de design. Sua instalação, “Welcome to Weden”, tira o S do nome do país em inglês para expressar essa ideia do coletivo. A exposição mostrou parte do resultado de um trabalho que vem sendo feito nos últimos dois anos pela curadora Jenny Nordberg de reaproximação entre fabricantes, designers e artesãos para que o design no país seja mais sustentável e reforce os seus aspectos locais. Ela postula que os produtos voltem a ser fabricados no país, como ocorria no início do século 20. Já a representação de Taiwan apresentou “Eatopia”, uma performance com o oferecimento ritualístico de pratos e petiscos que exploram a história da identidade do país e o caldeirão cultural em que se transformou.
A interpretação mais frequente de utopia está relacionada ao futuro, mas alguns países se voltaram ao passado para expressá-la. O Chile retornou ao período de Salvador Allende, enquanto a Rússia trouxe em primeira mão para a Bienal a pesquisa que a diretora do Moscow Design Museum, Alexandra Sankova, vem empreendendo de trazer à tona projetos utópicos feitos por designers na União Soviética entre os anos 1960 e 1980. Usando projeções de slides e multimídia, Sankova compôs um rico painel dessas ideias que foram depois totalmente banidas. O país ganhou o prêmio de melhor interpretação do tema da utopia.
Participei do júri das premiações, ao lado de um time de peso, composto por Paula Antonelli, curadora de design do MoMA em Nova York; Victor Lo, chairman da Gold Peak Industries, de Hong Kong; Ana Elena Mallet, curadora independente, do México; Kayoto Ota, japonesa, escritora e curadora; Paula Scher, designer gráfica e diretora da Pentagram; Martin Roth, alemão, que acaba de renunciar à direção do Victoria & Albert Museum; e os também residentes em Londres Jonathan Reekie, diretor da Somerset House; Richard Rogers, arquiteto; Ian Callum, diretor de design da Jaguar; Jeremy Myerson, professor do Royal College of Art; Christopher Turner, diretor da Bienal; e Ben Evans, também da equipe.
Essa composição levou a uma discussão muito rica. Prevaleceu na avaliação as propostas mais consistentes em detrimento daquelas vistosas e glamorosas mas vazias de conteúdo. E a “ideia por trás” que teve o maior número de adesão por parte do júri é aquela que interpreta a utopia como um lugar de convívio, em que as pessoas possam se encontrar, conversar, trocar.
Na instalação do Paquistão, painéis de tecidos impressos em henna se articulavam a banquinhos pivotantes para as pessoas sentarem e brincarem. O designer Konstantin Grcic, da Alemanha, optou por uma projeção numa tela simulando uma lareira, com cadeiras para as pessoas apreciarem o “fogo”. Já o Líbano interpretou a ideia literalmente: a arquiteta e curadora Annabel Kassar reconstruiu num dos terraços da Somerset House cenas de rua de Beirute. Cadeiras e sofás velhos reparados, sinais improvisados, um local onde um artesão fazia um acolchoado, uma sala para a exibição de novelas libanesas e até postos de venda de falafel e suco de laranja espremido manualmente na hora formaram um ambiente não para ver, mas onde permanecer. Depois de uma acalorada discussão entre os jurados, a instalação libanesa levou o grande prêmio da Bienal.
Annabel diz que, ao considerar o tema da utopia, pensou nas várias exposições de design que visitou ou concebeu nos últimos anos, e então deliberadamente quis se afastar do que tinha feito ou visto. “O design das ruas de Beirute é improvisado, engenhoso, imperfeito. Eles estão servindo a uma necessidade.” Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência!
Os eventos internacionais de design em geral estão mais ligados aos interesses de mercado do que aos objetivos intrínsecos do design de melhoria da vida das pessoas. Neles, o design vernacular ou “pobre” raramente tem visibilidade, a não ser quando mediado por “estrelas” com grande visibilidade. A Bienal de Londres foi na contracorrente, e mandou uma mensagem clara. Cinco séculos atrás Thomas Morus escreveu sobre utopia como, ao mesmo tempo, um “não lugar” e um “bom lugar”. A instalação do Líbano postula que ela ocorre aqui e agora, e que seu significado maior é o convívio.
Uma nota final: a Bienal foi anunciada há um ano, e nesse curto período os organizadores conseguiram “levantar” um painel multifacetado e atrair 37 países, o que não é pouca coisa. Infelizmente o Brasil não estava lá. John Sorrell e Christopher Turner se empenharam pessoalmente pela nossa participação, no entanto a falta de políticas públicas para o design tem impedido a nossa inserção de forma mais afirmativa no cenário internacional.
sobre a autora
Adélia Borges é crítica, historiadora de design e artesanato e curadora. É autora de mais de uma dezena de livros, entre eles Design + Artesanato: O Caminho Brasileiro, de 2011. Entre 2003 e 2007 foi diretora do Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Jornalista formada pela USP em 1973, é colaboradora de várias publicações, com textos publicados em sete línguas. Palestrante frequente, já se apresentou em 19 países. Fez a curadoria de mais de 40 exposições no Brasil e no exterior.