O Brasil precisa que o PT tenha oposições qualificadas à esquerda, como a do PSOL. Ao mesmo tempo, é inacreditável que logo após sofrer um escandaloso golpe parlamentar, os partidos de esquerda no país não consigam se unir minimamente, e que a candidatura de Fernando Haddad – a administração mais progressista que tivemos nas últimas décadas – sofra as consequências disso.
Refiro-me tanto à digna oposição de Erundina, por um lado, quanto ao factoide Marta, por outro. Muito longe da esquerda, como se sabe, Marta pessoaliza o capital simbólico dos CEUs na periferia, ao mesmo tempo que defende os privilégios das mansões dos Jardins, e prega o aumento da velocidade dos carros. Sua estratégia é cínica e oportunista: esconde o êxito objetivo da política de Haddad, que diminuiu o trânsito e reduziu expressivamente os acidentes na cidade, lançando o falso bordão da “indústria da multa”, que se aproveita do clima geral de acusações de corrupção do PT. Ocorre que Haddad, ao contrário, é o prefeito que combateu fortemente a corrupção, criando a Controladoria Geral do Município, que desmontou a máfia do ISS, recuperando mais de 600 milhões de dinheiro público desviado, e conseguiu renegociar a dívida (reduzida em 25 bilhões), colocando em ordem as finanças da prefeitura.
Por que isso parece não ser avaliado corretamente? É difícil dizer. Vivemos um momento de pouca clareza política em geral, no qual Donald Trump se afirma como o sincero que diz verdades, e Dória posa de trabalhador braçal. O poder de convencimento só depende do dinheiro disponível.
Mas eis aí uma questão crucial. Haddad mudou profundamente a cidade dando as costas àquilo que normalmente se considera “trabalho”. Assim, está no polo oposto de uma vasta tradição de políticos como Maluf, mas também Lula e Dilma, para quem progresso significa obras. Advogado, Haddad produziu ações que não manipulam betoneiras, e sim leis, atuando sobre as formas de uso da cidade. Trata-se de um político de outro tipo, com uma visão urbana estratégica e cirúrgica. Com muito poucos recursos, criou não apenas faixas exclusivas de ônibus e de bicicletas, mas também abriu avenidas ao uso dos pedestres, criou 150 linhas de ônibus noturnos e 120 praças com wi-fi livre. Significativamente, barrou o suspeitíssimo túnel da Av. Roberto Marinho, o que infelizmente levou as empreiteiras envolvidas a suspender importantes obras na área de habitação social. Ainda assim, duplicou o número de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) na cidade, por meio do Plano Diretor (notem que eu me concentro aqui em sua política urbana).
É fato que Haddad não se pautou por medidas eleitoreiras, muito ao contrário, e talvez pague o preço político disso. Mas, para além ou para aquém da cegueira ideológica do momento, produziu uma cidade com novos valores, orientada pelos interesses coletivos e pela ética do compartilhamento. Uma cidade com secretarias de direitos humanos e de igualdade racial, em cujo ambiente mais franco e generoso frutificou um belo e improvável carnaval de rua.
Vivemos, nos últimos anos, significativos progressos com as novas pressões e práticas cidadãs de apropriação do espaço público no Brasil. No cenário nacional, a Prefeitura de São Paulo é a que melhor está conectada a essas vozes. Deixaremos essa experiência radical se esvair? Será que divisão da esquerda, que caminha perigosamente para a atomização, afastando-se cada vez mais do governo, é um caminho inteligente a seguir?
nota
NA – Agradeço ao amigo José Guilherme Pereira Leite, cujas ideias constituem a base desse texto.
NE – Publicação original do artigo: WISNIK, Guilherme. Haddad revoluciona os usos da cidade. Coluna Tendências/Debates. São Paulo, Folha de S.Paulo, 28 set. 2016, p. A3.
sobre o autor
Guilherme Wisnik é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e foi curador-geral da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013.