I
Certa vez, quando estudante, ouvi um professor fazendo uma crítica à um projeto falando que a arquitetura é feita de planos. Aquilo foi muito importante para mim. Importante porque me despertou – ou me apresentou – algumas neurastenias epistemológicas. A primeira foi meu incômodo sobre o trato científico das nomenclaturas em arquitetura. O que são planos? A arquitetura como demanda, processo de concepção, o modelo, a obra? Essa falta de pragmatismo investigativo afasta a efetividade do discurso arquitetônico, tanto acadêmico quanto nas aplicações. Poucas vezes a literatura abordou a identificação adequada em pesquisa arquitetônica. Um raro trato – sintético, mas sagaz – foi feito por Lawson sugerindo a abordagem de classificação da pesquisa em arquitetura como processo, produto ou performance.
O segundo incômodo surgiu ao tentar responder à pergunta sobre qual fase da arquitetura são planos. Não consegui conceber a existência de planos em nenhuma fase da existência arquitetônica. Pode parecer uma ponderação exacerbada, uma vez que ficou evidente o significado do que ele quis dizer, mas algo cético em mim não podia aceitar uma afirmação fundada em um erro físico e metafísico. Não há figura de linguagem que transforme o menor grão de areia em um ponto, nem a mais fina folha de papel em um plano.
O uso da abstração para ajudar a conceber modelos é essencial. Porém, quando utilizado para induzir, pode levar a confusões epistemológicas graves. E esses erros epistemológicos salgam o terreno da obra. O modelo não é nem início nem fim, mas um elo. Um elo forte. A maneira como se pensa está intimamente relacionada com o como e o quê se cria. “Sempre que se discutem modos estéticos de elaboração, o conceito de criação é simultaneamente inevitável e problemático” (Steiner).
II
A abordagem euclidiana é muito útil ao arquiteto no momento da construção da obra. A geometria do que se vê auxilia a modelagem da ideia de algo que irá se ver: a obra, com comprimento, altura e largura. Essa perspectiva já respalda aquele meu segundo incômodo, fastidioso, mas ainda assim pertinente: o plano é um objeto de somente duas dimensões.
O modelo, como instrumento, deve sempre procurar a representação mais fidedigna da realidade. Todos os arquitetos procuram caminhos para modelar a obra, simular sua existência desta e fazer as análises e ajustes ainda como modelo. E são diversas as projetações: os croquis de Niemeyer, modelagem de Gehry, composição do OMA etc. Tecnologias são desenvolvidas todos os anos buscando a qualidade da representação e diversos escritórios possuem sistemas computacionais adequados aos seus padrões projetuais. É a busca pela qualidade final na a obra, que passa pela busca-meio da modelagem verossímil e eficaz para o escritório. É a máxima da gestão da qualidade: alta tecnicidade nos meios a fim da qualidade no objeto final efetivo ao cliente.
Porém, na realidade próxima, arquitetos ao redor do mundo sofrem com a transição entre a tecnologia CAD e BIM. Independente de discursos saudosistas contra os tecnológicos, a modelagem BIM pode proporcionar a construção de um modelo mental de composição próprio. Talvez aí a diferença da minha abordagem para a daquele professor. Minha educação de representação foi pensada na linha: croqui de perspectivas, modelagem BIM, maquete. A percepção bidimensional sempre me pareceu um trâmite burocrático a ser feito no final de tudo, com cautela e qualidade, mas exclusivo à serviço da obra. Os planos descritos pelo professor eram vistos por mim como parte de um volume. Por mais que todo o projeto fosse uma simples parede reta, ainda assim há a percepção volumétrica da mesma e do seu espaço arquitetural. Caminhará ao lado dessa parede um ser humano, uma cotia ou uma formiga. As coisas físicas que ocorrem no espaço arquitetural dessa parede são tridimensionais.
Além disso, a percepção formal é inexoravelmente relativa. Nós podemos perceber planos, mas sabemos que eles não existem ao nosso redor na escala arquitetônica. Uma luz lançada sobre um elemento tridimensional geral forma bidimensional. Basta ver a sombra dos edifícios. Em um mundo tridimensional, nossos olhos recebem informações bidimensionais e a terceira dimensão (profundidade) é percebida através de informações indiretas como sombreamento, assimilação de perspectiva etc. Os gregos já compreendiam essa relação visão plana e realidade tridimensional para determinar deformações na obra que mostrassem em plano (nossa visão), de um determinado ponto, um volume perfeito.
A percepção da terceira dimensão é a assimilação simultânea de diversos eventos bidimensionais. Podemos ver, no máximo, três faces de um cubo opaco, mesmo sabendo que ele possui outras três faces bidimensionais que não enxergamos. A medida que mudamos de posição, novos eventos, enxergamos as demais faces. Divagando: um ser quadridimensional poderia enxergar o volume (tridimensional) em sua totalidade e apenas perceber o tesseract, por exemplo. Investidas no espaço-tempo na abordagem física levariam a ponderações ainda mais graves, práticas ou não. É plano? Depende do referencial. Além disso, uma vez compreendido o cubo, como voltar a enxergar a conjugação de seis planos como somente seis planos e não como um cubo?
Contudo, é uma associação de muitas condicionantes que diferenciam as interpretações do professor e a minha, além da física. Incomoda, acima de tudo, a miopia da afirmação do que é a arquitetura como concepção e consequência. Como resultado prático a arquitetura é um pouco – somente um pouco – mais palpável: interferência no espaço. Entretanto, epistemologicamente, nenhuma afirmação sobre o que ela é ou não é pode negar os aspectos fenomenológicos inerentes.
III
A geometria euclidiana é um recurso que por décadas ainda nos será útil para representação, reprodução e referência para construção da obra. Mas acaba aí. Sejam quais forem as utilidades representativas, a obra não é uni, bi ou tridimensional. E as abordagens espaciais não estão sós. Como a obra é feita por pessoas e para as pessoas, as percepções sobre a existência da mesma e todo o contexto que a envolve a caracteriza. Ou seja, é físico e metafísico. “Paredes são massas com portas e janelas, mas somente o vácuo entre as massas lhes dá utilidade. Assim são as coisas físicas, que parecem o principal, mas o seu valor está no metafísico” (Lao Tsé). Contudo, o geômetra não pode se valer apenas da inteligência espacial crua.
Essas inferências se mostram de maneira mais palpável nas discussões sobre a relação algo-forma: as relações de forma-funcionalismo, forma-performance, forma-semiótica etc., e quando a arquitetura comete seu maior equívoco, travestindo-se de forma pela forma, quando na realidade é uma auto-referenciação das vontades do desvelador: o arquiteto. O arquiteto projeta. Isto é, cria uma projeção, um modelo do que a obra poderá vir a ser. O diferencial da arquitetura de Koolhaas e Eisenman, por exemplo, está na verossimilhança deste modelo com as possíveis características de existência da obra, quando construída e em uso. Koolhaas compreende o entorno, manipula variáveis para prever como a obra irá existir. É dizer, como ela irá se pôr de pé – exsistere – e se relacionar com o mundo, no mundo e sendo do mundo ao seu redor, numa perspectiva heideggeriana. Eisenman projeta à sua vontade, sendo as variáveis externas somente as inexoráveis e ortodoxas (legislação, tecnologia etc.).
Na prática: o OMA simula a existência da obra, mas compreendendo a natureza temporal da existência, procura dar a obra uma flexibilidade aos usos (eventos) futuros, percepções próprias, significados apropriados etc. Em uma mistura de projetar e dar essa liberdade, o escritório foge da flexibilidade de guerrilha do modernismo e equilibra com técnicas de distribuição espacial através da flexibilidade compartimentada. É o exemplo da Biblioteca de Seattle (Joshua Prince na TED Conferences, 2006). Ou seja, a flexibilidade do nada modernista; a flexibilidade do poder vir a ser do OMA. Maneiras de manipular formalmente as diferentes abordagens fenomenológicas.
Esses exemplos servem para explicitar que a relatividade e diversidade de abordagens sobre a arquitetura evoluíram muito para que hoje tenhamos críticas sem vocabulário. Desde Vitrúvio já se explicitava utilitas, venustas e firmitas. Zevi escancarou as abordagens possíveis da arquitetura como política, filosófico-religiosa, científica, econômico-social, materialista, técnica, fisiopsicológicas e formalistas. Heidegger ensaiou sobre o existir e habitar. Norberg-Schulz estudou a tríade fenomenológica da arquitetura: a ideia de existência, espaço e arquitetura; conceito de habitar; e genius loci (abordagem deste diferente da trazida por Aldo Rossi). Entre tantas outras abordagens fenomenológicas, a arquitetura pode ser feita de planos sim, mas há toda uma gramática por trás da estética assim ou assada.
IV
Tudo termina na forma, afinal, esta é a alçada do arquiteto. Entretanto, é a forma real. E essa forma é aquela forma tridimensional física, mas também as existências que a transpassa. O arquiteto não deve jamais prender-se ao modelo, mas ao que a obra virá a ser.
Os resultados práticos são assustadores. Uma série de escritórios preocupados em fazer plantas baixas bonitas para decoração e fachadas de revista para obras ocas. Essa falha epistemológica serve como respaldo muito conveniente ao abuso mercadológico da arquitetura, e miopia de muitos arquitetos. “A comercialização do estético e suas reduções ao kitsch estão entre as características prioritárias das culturas economicamente mais ricas” (Steiner). Um ciclo vicioso perigoso, afinal, estamos falando sobre o espaço onde as pessoas existem.
É um grau de imersão grande e talvez esse aprofundamento não fosse necessário até agora. Mas com a complexidade que hoje conseguimos compreender, tanta informação e a mudança contínua da sociedade nos oferecem novas possibilidades de abordagens formais para além da euclidiana, para além da positiva. Há uma sorte de arquitetos e teóricos do final do século 20 com esse trato, mas ainda são poucos e longe da prática arquitetônica doméstica, cotidiana.
Há uma demanda por novas abordagens além da euclidiana, além da positiva. Possível com o avanço conceitual, técnico e histórico-factual alcançável hoje. Não uma oratória utópica da perfeição, mas uma abordagem arquitetônica possível. E hoje é possível transcender o ponto onde a arquitetura parece ter estacionado. Por isso é importante que as reflexões em arquitetura saiam da retórica e caminhem para uma pegada mais refinada, socialmente, tecnicamente, economicamente etc. A lacuna com a prática é ainda mais atrasada, vide as nossas cidades. É o problema epistemológico que a tantos neurastênicos incomoda.
sobre o autor
Gabriel Ferreira Canabarra é administrador, arquiteto e mestrando em Estratégia.