Eu tinha 19 anos quando recebi um tremendo 4,0 do “professor Wandenkolk”, na cadeira de Plástica. Era o ano de 1971 e eu estudava na Escola de Belas Artes no Recife. Não tinha ideia do que estaria por acontecer naquele início do meu curso de Arquitetura. Não sabia de muitas coisas ainda. Mas aquele confronto com o mestre e sua intrigante afirmação – “estava bonito, mas não era uma fonte” – me instigou para a conquista de patamares mais altos e mais difíceis e a partir do barro que eu amassava, batia e moldava, surgiam as primeiras revelações estéticas. Brutalismo e delicadeza. É assim que vejo e sintetizo o mestre Wandenkolk Walter Tinoco e sua obra, e assim vou apresentá-la a vocês, jovens alunos e colegas arquitetos.
Wandenkolk Walter Tinoco nasce em 1936 em Recife e gradua-se arquiteto em 1958 pela Escola de Belas Artes de Pernambuco, onde foi aluno de Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi. Dedica-se ao ensino a partir de 1960 na Faculdade de Arquitetura da UFPE, onde leciona as disciplinas de Plástica e Pesquisas Tridimensionais, sendo professor assistente de Amorim na disciplina de Pequenas Composições, e de Borsoi, em Grandes Composições.
Nas aulas de Plástica, aprendíamos, no início hesitantes, a tocar e sentir os materiais e a arte de se expressar no barro, no papel, na madeira. O mestre era implacável e não tinha meias palavras ao se deparar indignado com trabalhos desprovidos de preocupação estética, mal resolvidos, feios e desproporcionais. Wandenkolk passava para nós a existência da poética da forma bela, instigante, que ousava romper paradigmas do “mesmismo”. Ele nos transportava para outra dimensão e os que o seguiam nesta transgressão estética, superavam a quase imperceptível fronteira do êxtase plástico no universo da até então desconhecida necessidade íntima do belo.
Em paralelo, Wandenkolk inicia sua prática de arquitetura, seguindo desde o início, os caminhos da arquitetura moderna, tendo como mestre maior, Oscar Niemeyer, de quem afirma ter aprendido “a projetar de forma simples e limpa”. Sua admiração inabalável por Niemeyer até os dias de hoje está definitivamente expressa nesta sua espontânea afirmação: “Oscar Niemeyer não é um arquiteto... é uma escola de arquitetura”.
A plasticidade da arquitetura de Wandenkolk Walter Tinoco não é gratuita. É um componente indissociável de seu método projetual, pois ao conceber o edifício por inteiro – estrutura, layout e expressão plástica – a funcionalidade programática e espacial vai responder aos êxtases plásticos que surgem concomitantemente no ato da criação. Nas primeiras casas que projetou Wandenkolk, assim como Lúcio Costa e Delfim Amorim, vai utilizar racionalmente os materiais e técnicas locais e tradicionais, como as telhas cerâmicas, a pedra, o azulejo, as venezianas, o cobogó, os grandes e frondosos beirais (como tão bem escreveu nosso grande e querido Armando de Holanda Cavalcanti, em Roteiro para construir no Nordeste).
Para resolver questões de conforto ambiental, Wandenkolk vai trazer o vento, a brisa, a luz, as plantas, as árvores e as temperaturas amenas e agradáveis para dentro de casa, usando telhados de laje inclinada cobertos com telhas de barro que amenizam o calor e o mormaço, janelas altas de venezianas para a retirada do ar e ventilação cruzada, pergolados para os jardins internos que permitirão a chegada da chuva, que, como canta Tom Jobim “vai molhar a roseira”. E quem sabe receber a visita de um beija-flor curioso. A fluidez espacial resultante de um zoneamento funcional e lógico vai gerar a integração do interior-exterior... vai gerar sombras e contato direto com a natureza, um fato tão marcante em sua personalidade e na maneira de conceber a morada do Homem. Penso agora em Richard Neutra e suas casas concebidas para trazer o bem-estar a seus moradores por acreditar que uma casa bem projetada tem um impacto benéfico sobre o ser humano que a habita.
Wandenkolk, entretanto, não se limita a esta tipologia e ao explorar a força plástica da forma que o concreto possibilita vai conceber programas construtivos mais ousados e que geram soluções inovadoras e recortadas sempre guardando o forte componente racionalista na pureza, elegância e leveza de suas formas e proporções puras. Mais do que projetar para “o homem nordestino”, Wandenkolk suplanta a fronteira limitante e reducionista do regionalismo. À sua crença no Movimento Moderno como linha condutora de sua arquitetura, adicione-se a preocupação com o clima e particularidades culturais, como já o tinham feito Alvar Aalto e Richard Neutra a partir de experiências construtivas definidoras de princípios projetuais em regiões de diferenças climáticas extremas – da gélida Escandinávia à tórrida Califórnia. Mais do que uma resposta ao modo de viver do homem nordestino, Wandenkolk projeta a morada do Homem Moderno, ao utilizar racionalmente os materiais locais e observar suas maneiras de viver e práticas sociais.
Seus primeiros edifícios de apartamentos são volumes prismáticos de proporções puras, estrutura marcada, generosos panos de vidro que recebem o sol nascente. Para proteção dos panos da fachada utiliza cerâmica, pedras e texturas diversas, além de elementos funcionais como o cobogó e o brise-soleil para amenizar o sol poente escaldante. Atribuo à genuína e forte afeição de Wandenkolk à natureza, ao verde da mata e aos animais e pássaros cantantes, a idealização de uma outra tipologia habitacional, que vou chamar de edifício-jardim. Casas suspensas, onde a nostalgia do morar no chão é atenuada pelo contato possível com o verde exuberante de nossa vegetação, com as roseiras, mamoeiros, papoulas e folhagens tropicais. O Edifício Villa Bela de 1974 é o primeiro deste tipo, realizado em parceria com Ênio Eskinazi, ex-estagiário e sócio de Wandenkolk de 1966 até 1974. Segue-se o Villa Mariana de 1976, o Villa da Praia, de 1977 e o Villa Cristina, de 1978. Estes edifícios começam a ser construídos na década de 70 numa longa e bem sucedida parceria com Antônio Callou da Cruz, diretor presidente da ACCruz. Lembro-me de tê-lo ouvido afirmar: “Callou constrói bem”. Isso vindo de Wandenkolk é um grande elogio. Esta curta frase de três palavras revela sua apreciação profissional pelo construtor que edifica seus projetos com a qualidade requerida.
O Villa Mariana é emblemático. Suas varandas derramam o verde pelas fachadas que se afastam das vidraças e os recortes geram um recuo confortável e íntimo onde só as plantas, os pássaros e o silêncio tem acesso. Dá vontade de morar no Villa Mariana. Inusitadamente para um edifício de arquitetura contemporânea, o Villa Mariana é protegido por lei municipal da cidade do Recife e constitui um Imóvel Especial de Preservação desde 1996. Não é permitida qualquer intervenção que altere sua configuração original.
Wandenkolk trata o edifício como uma obra de arte plástica. A beleza, em sua obra, é funcional e, portanto necessária. E é esta necessidade de hedonismo estético que vai estabelecer um diferencial nas qualidades inerentes de sua obra arquitetônica. Volumes amorfos e estáticos não fazem parte do repertório wandenkolkiano. A instigante necessidade plástica e o prazer que dela resulta é alcançada através de recuos, reentrâncias, recortes, saliências, luz e sombras, que geram jogos prismáticos em movimento que atraem ou magnetizam o olhar do observador que não lhe é indiferente.
Não tenho a pretensão de detectar a existência de uma fase madura em sua carreira até porque a maturidade em Wandenkolk é intrínseca e inerente. Sua arquitetura é, e sempre foi, uma resposta lógica às possibilidades técnicas, ao progresso da construção civil, ao avanço tecnológico, ao espírito do tempo. Sua forma de projetar o Moderno está presente também na racionalidade construtiva, através de estruturas moduladas que reduzem os custos da construção e transformam paredes portantes em simples elementos de vedação. Assim ele pode abrir cada vez mais, grandes panos de vidro. A arquitetura de Wandenkolk Walter Tinoco é uma arquitetura ética e de princípios. Sua convicção na Arquitetura Moderna o imunizou contra a cegueira que privou vários arquitetos de entender o espírito do tempo, tornando-os vítimas voluntárias e seduzidas do decorativismo fácil dos modismos vigentes. Em sua trajetória profissional Wandenkolk sempre desenvolveu o Projetar Moderno. Ele nunca traiu a modernidade como os que se renderam aos enlevos ornamentais e anacrônicos que insultam e ofendem as nossas cidades numa explosão desordenada de colagens e referências estilísticas do passado sem significado.
O brutalismo de sua arquitetura é sinônimo da verdade tectônica e está presente em sua coerência projetual e construtiva que não esconde as juntas dos materiais e as superfícies que se cruzam, sempre que possível revelando-as. E, na ausência de máscaras ou disfarces. Falo da exposição desnuda do concreto – como no Villa da Praia, na FIEPE ou Casa da Indústria, projeto criminosamente adulterado pela pintura do concreto e no preenchimento de uma das fachadas. Esse brutalismo está expresso ainda através de uma força plástica arrebatada, inquietante e crua em toda sua obra. De maneira contundente na Caixa d’Água da Universidade Federal de Pernambuco, obra de acentuada robustez onde o concreto nu, cru e aparente explode em toda sua verdade construtiva ficando despudoradamente à mostra.
Seu único compromisso é com a contemporaneidade. É assim que Wandenkolk Walter Tinoco continua a projetar e a construir em sua casa-escritório na Várzea, de onde avista sobre a mata, a caótica silhueta da cidade do Recife e de onde se vê lamentavelmente tão pouca boa arquitetura. Nesse pequeno refúgio, entre árvores e flores, desfrutamos obras do Wandenkolk artista plástico, integradas à natureza e ao construído. O Wandenkolk artista plástico se revela quando ele se aposenta da Universidade Federal de Pernambuco como Professor Catedrático, quando ao sentir falta das aulas de plástica e do contato e manuseio dos materiais, ele dedica-se à produção de painéis e esculturas em concreto e aço cromado, entre outros materiais.
A delicadeza de Wandenkolk está no seu amor à natureza. Este homem grande e robusto de olhar e voz firme e de atitudes contundentes se entrega e se integra totalmente no “mato” que tanto gosta, precisa e respeita. Será que é aquela necessidade do silêncio que Barragán expressava no enigma perturbador de sua arquitetura? O seu, não é um amar platônico, passivo, contemplativo e retórico, mas uma afeição simbiótica e real. Ele precisa tocar a terra, ouvir a linguagem dos bichos e o barulhinho das águas... ver uma flor e o sol nascerem, ouvir o que dizem as árvores. Isto tudo ele permite e permeia em sua arquitetura, na construção da morada do Homem. O reconhecimento de sua obra foi objeto de várias premiações do IAB-PE e de um filme (1). Ele recebeu recentemente a Medalha de Ouro do Crea. Sua obra tem sido pesquisada por arquitetos-professores (2) e alunos de várias instituições de ensino da arquitetura em Pernambuco.
notas
1
O filme Wandenkolk, direção de Bruno Firmino, será exibido no dia 19 de outubro de 2016, Campus da UFS em Laranjeiras, durante a mostra de filmes sobre arquitetura moderna brasileira da III Semana Acadêmico-Cultural, promovida pelo Docomomo Brasil em parceria com o DAU/UFS.
2
Ver, em especial: MOREIRA, Fernando Diniz; FREIRE, Ana Carolina de Mello. O Edifício-quintal de Wandenkolk Tinoco. Reflexões sobre a moradia em altura nos anos 1970. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 129.04, Vitruvius, fev. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.129/3749>.
sobre a autora
Betânia Brendle é professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe. É PhD em Desenho Urbano pela Oxford Brookes University (1994) e tem Pós-Doutorado na Technische Universität Dresden (Institut für Baugeschichte, Architekturtheorie und Denkmalpflege) (2015).