“Achei que a minha irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Milhares de unhas que talvez seguissem o pouco sol. Talvez crescessem como garras afiadas”.
Valter Hugo Mãe, A desumanização
Brotar, modificar, renovar são algumas das concepções associadas à muda. O termo designa também uma planta jovem, que anseia pela ação do tempo. Essas acepções trazem consigo, entre outras coisas, a expectativa de desenvolvimento, de mudança, de frutificação.
Em A desumanização, o escritor Valter Hugo Mãe narra a história de uma menina que, diante da morte da irmã gêmea, se questiona sobre o que fora feito do seu corpo. Aquilo que é sepultado vem a equivaler à imagem do corpo que se desagrega sob a ação dos bichos da terra e ao cerne de algo fecundo. Estabelece-se a condição dúbia da menina plantada, de um corpo que é ao mesmo tempo carcaça e semente. Algo que, na ingenuidade da imaginação infantil, faz com que a menina plantada dê ramos e frutos, bem como unhas e dentes, em um processo de crescimento desordenado. Um corpo em muda do qual brotam elementos díspares ou ambíguos; onde convivem partes desconexas.
Corpos em muda reaparecem na produção recente de Eduardo Berliner, em trabalhos que trazem à tona o meio pelo qual seu universo figurativo opera hibridizações. Ao adentrarmos na exposição vemos um flautista com focinho, um cachorro com cabeça de criança, uma boneca com braços-chifres. No mesmo universo circulam dispersos elementos autônomos, sem origem ou destino certos, como membros que se ligam a um balanço ou partes que confluem para formar rostos reconstruídos. Berliner realiza um exercício em que a observação de animais em um museu de história natural e figuras humanas desconcertantes convivem com natureza mortas e aparições que nos fitam. São imagens que apostam na potência das transmutações, recombinações e decepações no espaço entre o humano e o animalesco.
Essas operações, no entanto, não se justificam apenas em termos das origens das suas imagens; não basta identificar figuras provenientes ora do exercício de observação ora do trabalho da imaginação. As obras novas suscitam um peso, uma espécie de incômodo, a medida que observamos situações em que a normalidade cotidiana, o onírico e o dilaceramento convivem sem muita distinção. Ao final não se sabe o que é real ou imaginário, o que é inocente ou perigoso, se há ou não um deslocamento do motivo explícito da pintura.
As imagens de Berliner, contudo, são matéricas. Trata-se de pinturas, desenhos, gravuras e aquarelas de densidades e constituições próprias, que ganham complexidade pelo acúmulo de gestos e acasos na manipulação do meio. Cada obra se impõe como um corpo na presença dos observadores. No fim, Eduardo Berliner aposta na ambiguidade do ver: de que se reconhece e não se reconhece aquilo no suporte da tela, do papel, da madeira. Um jogo permanente entre abstracionismo e figurativismo subjaz às discussões sobre seu imaginário: trata-se também de pigmento, luz, tamanho e distância.
Entre o imaginário e o matérico, esses corpos em muda dão a ver algo que está em curso na obra de Eduardo Berliner. Uma inflexão parece ter ocorrido recentemente nos permitindo conferir outras conotações às suas imagens e pensar a intensificação do acaso e da destreza na sua pintura e no seu desenho. A menina plantada de Valter Hugo Mãe ecoa na produção de Berliner não por uma referência direta ao universo do autor: encontramos em ambos o instante em que o potencial para mudança congrega os mais distintos caminhos, por onde germinam o raquítico e o gracioso, o prosaico e o brutal.
nota
NE – O presente artigo é o texto curatorial da exposição Corpo em muda, mostra individual de Eduardo Berliner na Casa Triângulo, com abertura no dia 5 de novembro de 2016.
sobre os autores
Priscyla Gomes e Felipe Kaizer são os curadores da exposição.