Ao apresentar o projeto do Shed (1) para uma plateia acadêmica de professores e alunos reunidos no Departamento de História da Arte na Columbia University, Liz Diller abriu-se com uma franqueza que surpreendeu aos que nunca a haviam visto falar. Após descrever o longo processo de concepção do projeto até a sua atual fase de construção, revelou uma certa angústia frente à distância entre suas intenções iniciais e a realidade do seu desenvolvimento. Comparou-o com o High Line, surgido de uma ideia de preservação da infraestrutura desativada, condenada à demolição em uma região degradada, que se tornaria o disparador de um intenso processo imobiliário que renova a população moradora e gera fortes tensões sociais. Disse que jamais poderia esperar que o antigo elevado de aço se tornaria uma atração turística para milhões de visitantes, mas se perguntou “se soubéssemos, faríamos diferente? Creio que não”.
A reflexão também se aplica ao Shed, nascido Cultural Shed, mas que teve seu nome alterado em um sinal de como os projetos saem do controle dos seus criadores.
O projeto surgiu como uma proposta para uma área sobre o pátio de manobras da ferrovia no Hudson Yard, a ser urbanizada após a sua cobertura. Em meio à mega operação imobiliária concebida na gestão do prefeito Michael Bloomberg, uma pequena área foi reservada para uso cultural para a qual seu escritório elaborou uma proposta que abrangia a arquitetura e o plano de negócios capaz de viabilizá-la. Interessante ver como esses arquitetos que dedicaram grande parte da fase inicial de sua carreira a performances e instalações críticas à arquitetura concebem um projeto, um programa e um empreendimento.
A proposta da arquitetura associada à formulação do programa surgiu da interpretação do Fun Palace, instigante proposta de Cedric Price que inspira os adeptos de uma arquitetura infraestrutural neste início de século. Diller destaca a riqueza do caráter aberto e flexível, um tanto indeterminado, desse projeto, defendendo a sua atualidade. A flexibilidade do Centro George Pompidou de Paris, inspirado em Price, condenada na década de 1980 a ponto de ser substituída pela nova museografia de Gae Aulenti, é agora um objetivo a ser perseguido. O Shed surge dessa ideia, mas encontra nas estruturas dos grandes guindastes e pontes rolantes portuárias a sua forma.
Nos primeiros estudos surgem as grandes pontes-rolante constituindo coberturas telescópicas retrateis, capazes de triplicar a área coberta. Quando recolhidas, elas formariam os pavimentos de um edifício quase convencional. Uma vez abertas, gerariam diferentes arranjos de espaços de grande pé-direito.
Em algum momento do desenvolvimento do projeto essa flexibilidade foi reduzida para apenas uma cobertura móvel, que se recolhe sobre um prédio de seis andares. Logo em seguida surge uma torre de apartamentos, a ser projetada pelo escritório de modo a permitir que ela estivesse integrado ao projeto. Mudanças que acompanham a nova equação de viabilização da proposta.
Se a sustentabilidade econômica do projeto era uma ideia ainda vaga na proposta inicial, a criação de uma poderosa organização sem fins lucrativos financiado por doações agrega parâmetros de realidade ao processo de projeto, inicialmente financiado apenas por verbas públicas concedidas por Bloomberg. Em 2015, Alex Poots assumiu a direção artística do empreendimento, definindo o que será de fato o programa do edifício. As ilustrações disponíveis nos releases digitais do empreendimento (www.dsrny.com) ainda mostram a compatibilidade entre sua concepção e as direções propostas por Poots.
A certa altura da palestra, Liz Diller se pergunta o que fazia daquela estrutura uma arquitetura. Problema bem conhecido por nós arquitetos brasileiros desde que Lucio Costa definiu a intenção plástica como diferencial em relação à mera construção.
A cobertura retrátil não poderia ser uma “simples estrutura” de aço a ponto de se confundir com os guindastes ainda existentes na região portuária de Nova York. Não seria um ready made, mas algo que interpretasse as estruturas portuárias sem repeti-las.
O desenvolvimento da estrutura passa então por um ajuste escultural, atenuando sua geometria com traços biomórficos. Fácil lembrar das estruturas de Pier Luigi Nervi na Itália, ou mesmo de Enrico Tedeschi em Tucumán, na Argentina, onde a economia das linhas diagonais são suavizadas pelas curvas suaves das peças em concreto armado. Curvas facilmente produzidas por formas de madeira.
No Shed a estrutura é em aço, produzido por manufatura altamente especializada em uma fábrica na Itália. A produção digital se limita, portanto, ao uso de softwares de projeto, no caso o Catia, e não à fabricação da estrutura, que só se viabiliza pelo uso de mão de obra com alta capacidade de manufatura. O software transfere a forma para a fábrica, orienta as máquinas de corte, mas a montagem requer a capacidade humana de ajustes, montagem e acabamento. Não se subestime o impacto dessas decisões de projeto no custo final previsto, de U$ 425 milhões para seus 18,58 mil m2 supera em muito o Museu do Amanhã do Rio de Janeiro, com seus R$ 215 milhões para 15 mil m2 de construção. No entanto, o efeito das obras de Diller Scofidio + Renfro na valorização imobiliária do seu entorno já foi atestada pelo High Line e, certamente, os doadores que viabilizam a The Shed, a organização sem fins lucrativos que dirige o empreendimento, não irão perder dinheiro.
Esteticamente a forma resultante tem algo de Art Nouveau, das coberturas de Hector Guimard nos metrôs de Paris, ou de Victor Horta em Bruxelas. Ao apontar para o século 21, retornamos ao início do século 20, com tecnologia nova. Dos programas contestadores sobram apenas os dilemas dos autores. Será essa a contemporaneidade que teremos?
nota
1
The Shed, de Diller Scofidio + Renfro, Nova York, 2019 (data de finalização presente no website do escritório).
sobre o autor
Renato Luiz Sobral Anelli, arquiteto e professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos. Professor visitante na Columbia University com apoio Fapesp.