Prezado Oscar Niemeyer,
Em 1944, eu tinha 16 anos e daqui a pouco você compreenderá porque começo assim de tão longe (1).
Eu era “partigiano” em uma brigada pequena, mas com um grande nome: “Justiça e Liberdade”. Essa brigada era constituída, principalmente, de rapazes da cidadezinha de Gaggio Montano, situada no Alto Apenino bolonhês.
No mês de outubro os alemães estavam em retirada geral e abandonaram Gaggio Montano, que foi libertada pela brigada Justiça e Liberdade. Esperávamos a chegada dos norte-americanos da 5ª Armada; que o front passasse; que a guerra, quem sabe, acabasse. Por decisão estratégica, todo o front de Gaggio Montano já estava livre, porém a cidade dividida em duas partes pelo próprio front. Uma metade estava na zona americana, a outra em zona alemã. As linhas dessas frentes estavam estabelecidas no declive inicial dos montes que rodeiam Gaggio Montano: na parte alta, os alemães, que se fortificaram sobre o cume que separa as províncias de Bolonha e Modena. Ali permanecem por todo o longo e nevado inverno de 1944-1945.
Lá de baixo nós esquadrávamos o cume dos nossos montes repentinamente transformados em território inimigo. A chave da linha fortificada alemã era o Monte Castelo, que lá em cima domina todo o vale. Monte doméstico, com ambientes pacíficos cheios de histórias escondidas; o seu nome é antigo, pois na Idade Media, sobre o seu cume, surgia o “Castel Leone”, um ponto importante na geografia militar das lutas entre as comunas. Na sua base passava a estrada que levava de Florença a Modena, pela qual – se conta – passou Carlo Magno na viagem de volta à França, depois de ter sido coroado Imperador pelo Papa, em Roma, na noite de Natal do ano 800. De fato, os alemães ao escavarem para fazer as trincheiras, encontraram os longos alicerces do “Castel Leone”, que depois de 7 séculos reviveria um seu momento de glória militar.
Conheço bem essas histórias, as velhas pedras de Monte Castelo: o cume pertence à minha família; minha casa é lá embaixo, bem diante do Monte, e é circundada pela minha terra. A Guanella, assim se chama a minha casa: demarcava o ponto mais avançado das posições americanas e no seu jardim escavaram as trincheiras avançadas; mas para lá do jardim, nos campos, começava a “erra de ninguém”, a no man’s land.
No mês de novembro de 1944, guerrilheiros e civis veem chegar outros soldados, vestidos de verde, que substituem as tropas americanas da Twenth Mountain Division: são os “pracinhas” da FEB – Força Expedicionário do Brasil, que serão os nossos vizinhos e companheiros de luta contra o inimigo comum. Fácil foi familiarizar-se com os brasileiros, começar a compreender a língua, permanecer em suas companhias diante do fogo das lareiras enquanto o vale se afundava na neve... esta coisa que os brasileiros viam pela primeira vez. As crianças, nas casas dos camponeses aprendem a cantar “mamãe eu quero”.
Mas a guerra não é uma festa. O cume da montanha era hostil. Os alemães espiavam lá do alto, bombardeavam; de noite se ouvia as metralhadoras das patrulhas. Precisávamos expulsar os alemães daquele ponto. Monte Castelo, desde então, nos meses invernais, se transformou em um mito: a sua presença ameaçava todo o vale, ninguém conseguia afastar sua imagem diante dos olhos. Uma poder imperial longínquo, ao qual nos sentíamos submetidos: eles lá em cima, nós aqui embaixo. Monte Castelo era o objetivo da FEB, mil vezes percorrido pelos olhares dos pracinhas, golpeado pela artilharia, explorado pelos batedores brasileiros, que estavam em “campo ocasional”, na cidade de Porretta Terme (2).
Um primeiro ataque sem resultado: os alemães com seus canhões seguros nos bunkers forçaram os brasileiros ao ataque. Muitos os mortos. Perto da minha casa, a Guanella, um camponês lembra ainda hoje do campo com os cadáveres dos brasileiros. Abandonaram o ataque: Monte Castelo teve suas vítimas.
Em um dia de março de 1945, da localidade onde tínhamos estabelecido o Comitê de Liberação, que fez nascer as primeiras formas de democracia sob os tiros dos canhões, assisti a um espetáculo extraordinário: a artilharia americana começa a vomitar fogo concentrado em Monte Castelo, por horas a fio. O barulho é incessante e o Monte acaba por desaparecer sob uma nuvem negra. Depois, o bombardeio cessa e os brasileiros vão ao assalto final.
Desta vez o Monte Castelo ‘cai’ e muitos alemães se rendem aos brasileiros. Vi alguns, trazidos para o vale depois da conclusão do ataque, com os vivos transformados em máscaras de lama, maravilhados, talvez por não terem sido mortos.
Para Gaggio Montano cessou o pesadelo da guerra. Um mês depois Bolonha é liberada e em breve, toda a Itália. O nazismo foi vencido.
Voltei à minha casa, a Guanella, transformada por quatro meses de combate. Os seus velhos muros (é construída sobre uma torre medieval) deram guarida aos soldados brasileiros; em um livro da biblioteca, um soldado do Ceará deixou escrito palavras de saudade e de amor pela sua pátria longínqua: “Brasil, o meu Brasil, terra de liberdade...”
Os italianos recomeçaram a viver livres. Os brasileiros nos deram uma ajuda enorme para derrotar o fascismo. Não os esqueço.
Monte Castelo volta ao seu secular silêncio. Lentamente a vegetação cicatriza as feridas do monte atormentado; a terra cobre os tanques abandonados e as castanheiras renascem. A Pistoia, um cemitério militar, custodia os corpos dos muitos brasileiros mortos na guerra; seus companheiros de arma vêm todos os anos saudar os que aqui ficaram, e voltam a olhar o ‘seu’ Monte Castelo, um monte que foi importante na história do Brasil e que é também do povo brasileiro. Com certeza, é um monte que “pertence” ao Brasil.
Este pensamento me leva, facilmente, e naturalmente, a considerar uma possível doação ao povo brasileiro do cume do “seu” monte, para que ali seja edificada uma lembrança, uma recordação do sacrifício de seus “pracinhas”. Falei com amigos, espalhei a ideia ainda em formação, que era somente um desejo... E as ideias caminham.
Um veterano da FEB, que veio um ano visitar os locais de combate, ouve falar que o proprietário do cume do Monte Castelo está disposto a doá-lo ao Brasil; anota o meu endereço e vem a Bolonha me procurar. É um jornalista do Cruzeiro do Sul, de Brasília, Dino Cazzola. Me pergunta se é verdade que eu estava disposto à doação. Sim, respondi, mas não para a glorificação do militarismo. Reitero: antes de chamar-me com o meu nome, antes de ser italiano, antes de tudo, eu sou antifascista, e não quero contribuir, com nada, para exaltar valores como o militarismo ou o nacionalismo.
1964 passou, sei o que aconteceu no Brasil, por isso devo ser claro: a minha doação é feita para honrar os filhos do Brasil “mortos na luta comum contra o nazismo e o fascismo”. Isto deve ser escrito no monumento de Monte Castelo.
A notícia foi levada e publicada no Brasil. Os representantes diplomáticos brasileiros me procuraram e me pediram para não insistir em pretender essas “palavras indiscretas”. Era difícil, ademais, que uma doação feita neste modo e com este fim, fosse acolhida como coisa grata. Enfim, me foi comunicado, cordialmente, que o governo brasileiro não aceitava a doação...
Os governos passam e os montes ficam, digo a mim mesmo. A história nos premia ao longo do seu curso. Não abandonei a ideia. Falo com amigos e intelectuais brasileiros e italianos durante um seminário em Bolonha. Temos a possibilidade de evitar a retórica dos monumentos grandiloquentes e de fazer emergir os valores verdadeiros: é uma ocasião que não se deve perder. Precisa ser uma oportunidade bem usada, concebido como um momento vivo, humano, a ser inventado por completo; um monumento não mistificante, que interprete em termos existenciais aquilo que o Monte Castelo foi para os brasileiros na longa espera da sua conquista; aquilo que significou na guerra contra o nazismo; um monumento como poderia imaginar Oscar Niemeyer, nos dissemos.
É neste momento que a ideia assume os contornos de compromisso a ser realizado... E o que era desejo vira coisa viva, programa de ação.
Devo muito à amizade e à colaboração de homens e mulheres italianos e brasileiros que compreendem a importância de fazer nascer o monumento “de baixo” – e não do alto de um decreto governamental – para lhe conferir valores unificantes, duráveis, autênticos.
Aderem à iniciativa Prestes (3) e Lelio Basso (4); no Rio, falo com Raymundo Faoro (5). Em Bolonha, um grupo de amigos me é solidário. E é da responsabilidade da nossa infatigável amiga que traduz estas linhas em português encontrar a forma correta de fazer você conhecer a nossa inciativa.
Enfim, Kurt Fonseca (5) vem a Bolonha. Vamos visitar o lugar. O enfrentamento dos problemas que são mais próprios do fazer, que do desejar, me convencem que a originária ideia de doar o cume de Monte Castelo para o monumento não é muito prática. Não existem mais estradas que levem ao cume do monte; um monumento erigido lá em cima seria destinado ao abandono e a si mesmo, durante o ano inteiro; dificilmente visitável; substancialmente reservado a poucos, talvez pouquíssimos...
Penso, sobretudo, que Monte Castelo está fixo na memória dos brasileiros que combateram para tomá-lo, na imagem que se tem olhando-o de baixo; de baixo os pracinhas o viram e o suportaram. O cume foi a conquista de um momento, imediatamente encerrado, na pressa de ir além. A imagem do monte, engrandecida pelo temor e pela impaciência, é aquela que os brasileiros viam das trincheiras de Guanella, que acompanhou os seus dias no frio intenso dos buracos cavados na neve. É lá, nas últimas trincheiras de Guanella, defronte ao Monte, que o monumento poderia ser feito. Não existem problemas para o terreno: todos estes campos que foram por meses casa e refúgio dos brasileiros pertencem à minha família. A doação ao povo brasileiro terá por objeto a superfície que for necessária, qualquer que essa seja. Além do mais, Guanella está situada a pouca distância da rodovia nacional, que é acessível através de uma estrada em bom estado; é uma localidade habitada por montanheses que são fieis a lembrança dos brasileiros com os quais conviveram. Fonseca (6) conheceu um, que logo se recordou das “memórias de guerra” e indicou com emoção o “campo dos mortos”, onde viu cair muitos brasileiros sob o fogo alemão. Serão estes homes da montanha, os melhores guardiões do monumento.
Eis, prezado Oscar, aquilo que queremos fazer com você. Quando se trabalha assim, perdem significado até as palavras sobre a amizade entre italianos e brasileiros; quem nota se um homem é italiano ou brasileiro em uma luta comum? Eu sei que a resistência contra o fascismo, da qual participei quando tinha 18 anos, não acabou e hoje é mundial. Sei que estamos juntos e isto é o importante.
Espero ter o prazer de acompanha-lo até Guanella, quando vier a Europa, para ver ao vivo o Monte Castelo que os brasileiros viram, viveram e venceram. Sei que a sua criação falará a língua e os sentimentos daqueles soldados de 35 anos atrás, mas também a nossa língua, dos antifascistas de hoje.
Com cordiais saudações,
Francesco Arnoaldi Berti
notas
1
A carta enviada a Oscar Niemeyer é de aproximadamente 1978, segundo a economista Dulce Rosa de Bacelar Rocque, brasileira exilada na Itália durante o regime militar e responsável pela tradução da mensagem originalmente redigia em italiano para o português, e pelo envio da mesma para o arquiteto brasileiro via Luís Carlos Prestes, na época exilado em Moscou. Ver: ROCQUE, Dulce Rosa de Bacelar. O monumento aos pracinhas. (Que Oscar Niemeyer não fez). Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 116.06, Vitruvius, nov. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.116/6273>.
2
Lugar distante do front, onde os pracinhas iam tomar banho uma vez por mês.
3
Luís Carlos Prestes (Porto Alegre, 3 de janeiro de 1898 – Rio de Janeiro, 7 de março de 1990) foi militar e secretário-geral do Partido Comunista do Brasil.
4
Lelio Basso (Varazze, 25 dezembro 1903 – Roma, 16 dezembro 1978) foi um advogado e político socialista italiano.
5
Raymundo Faoro, jurista, sociólogo, historiador, cientista político e escritor brasileiro, foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, de 1977 a 1979, durante a abertura do regime militar.
6
Kurt Fonseca é o codinome que Marcos Jaimovitch, arquiteto da equipe de Niemeyer, usava durante a ditadura militar.
sobre o autor
Francesco Arnoaldi Berti, advogado italiano já falecido, participou da resistência italiano frente ao nazismo e fascismo. Doou terreno no Monte Castello para que um monumento aos pracinhas brasileiros fosse erguido em seu cume.