Querido Paulo,
Queria fazer uma homenagem por um texto sabido, uma leitura do legado que nos deixou e continua nos possibilitando rever no dia a dia. Acabei por definir um escrito contido de anamneses vividas, registros de heranças registradas num pequeno álbum de imagens vivenciadas por minhas lembranças.
Para escrever as peripécias destas memórias me enrasquei dentro das brumas de minha memória, compartilhei imagens, falas e registros observados pela meditação poética e geométrica dos convívios havidos entre suas obras, você e todos nós arquitetos.
Revi os momentos de 1967 nos quais, ainda desejando entrar na FAU, em visita com vários colegas, conhecemos sua casa, emoção pura daqueles que descobrem a clareza daqueles espaços, carregados de mensuradas geometrias habitáveis, pousadas como que em levitação, sobre o solo do Butantã.
Naquele momento, como um preâmbulo, reconheci o projeto de convívios entre arquitetura e cidade, entre técnica e arte, entre engenho e poesia. Logo após essa lembrança do espanto que sua casa me causou, recordei as palavras de Artigas, na aula inaugural de 1967, sobre “O desenho”. Naquela ocasião ele nos anunciou que:
“O fazer histórico para o homem comporta dois aspectos. De um lado este fazer é dominar a natureza, descobrir os seus segredos, fruir de sua generosidade e interpretar as suas frequentes demonstrações de hostilidade.
Dominar a natureza foi e é criar uma técnica capaz de obrigá-la a dobrar-se às nossas necessidades e desejos. De outro lado, fazer a história é também, como se diz hoje, um dom de amor. É fazer as relações entre os homens, a história como iniciativa humana. Neste dualismo, provisório e didático, que nada tem de misterioso, é que encontra suas origens o conflito entre a técnica e a arte. Uma técnica para apropriação da natureza e o uso desta técnica para a realização do que a mente humana cria dentro de si mesma.
Um conflito que não separa, mas une” (1).
Com brevidade e nitidez, Artigas nos expôs o sentido de projeto de arquitetura que por gênese e incumbência nasce de unir os dois encargos ao mesmo tempo – arte e técnica.
Ao mesmo tempo fui evocando o Flávio Motta que, paralelamente, nos fez ver em “Desenho e emancipação” as heranças nefastas da incompreensão do significado da fusão entre desenho e projeto. Incompreensão ainda atualmente incrustada nesta e em outras escolas de arquitetura. Separar pensamento de ação, desenho de intenção, registro de concepção.
Lidamos com este atavismo, como lembrou o Flávio, ao continuar desassociando “as belas artes dos ofícios fabris, como se a arte se reservasse apenas às esferas do prazer e a dos ofícios à área do saber. Até hoje essa dicotomia perpassa os conflitos da modernidade. Inúmeros são aqueles que preferem ver a arte confinada às condições de deleite pessoal” (2).
Acrescentou ainda que não se trata apenas de enaltecer uma obra de arte apenas pelo seu relacionamento puramente agradável, sem vinculá-la a valores intelectuais, sociais e culturais. Por meio deste modo de ver – reconhecer apenas as qualidades dos traços sensíveis e precisos de Ingres – impossibilitou entender as qualidades estruturais de seus desenhos. Culmina Motta sobre esta visão distorcida:
“Mais do que isso, confundiram a simplicidade dos meios com a própria significação do desenho. Academizaram o mestre. Passaram, assim, a falar em desenho como coisa de lápis e papel. Os propósitos, os desígnios, o conteúdo se separou da forma, na procura de um deleite, de uma confirmação imediata. A forma reduziu sua significação. Foi esse o desvio” (3).
Pelos ensinamentos contidos nestes pequenos e concisos trechos de Artigas e Motta, pude –como muitos de minha geração e das gerações posteriores – compreender as realizações de toda arquitetura, sobretudo a elaborada por você, Paulo.
Tivemos a oportunidade de entender na sutileza e singeleza de suas linhas os carregamentos que comportam. Dar um sentido, avaliar as contribuições sociais, artísticas e culturais que podem ser observadas em suas realizações.
Por estas razões, muitos de nossos projetos de algum modo referenciam-se às suas obras. Por isto, estas referências transbordaram para além de nossos territórios, atingindo outras geografias, outros países, outros arquitetos. Acabam por ter um merecido reconhecimento internacional.
Assim, na minha memória, como na de tantos outros, estão gravadas as sutilezas de planos e geometrias de seus pensamentos, registrados nas obras e desenhos, que nos foram legados e postos à nossa contemplação. Recordemos alguns:
Os despojamentos encontrados nos espaços das casas que projetou.
A apropriação do território nas implantações que idealizou.
A criação do relevo no terreno e no pouso da cobertura do pavilhão de Osaka.
A permanência de preexistências e a liberdade propiciada pela inversão dos eixos de circulação no projeto de conversão do edifício do Liceu para abrigar a Pinacoteca.
As transparências e reflexos utilizados na Capela de São Pedro, postada entre um magnifico cenário e um edifício neogótico.
A apropriação elementos pré-fabricados na casa Gerassi.
Os encontros da terra com ao mar, desenhados para a baia de Montevidéu e no Cais das Artes, na baia de Vitória.
Nas interlocuções com a cidade, o território e os elementos fundadores da arquitetura no MuBE.
A clareza didática de suas maquetes de papel.
Seria uma lista imensa de lições, ensinamentos e proposituras verificáveis em cheios e vazios construídos por estruturas de concreto, aço, vidros, pilares, lajes e planos dispostos para o aprazimento das vidas de homens nas cidades. Ensinamentos que emergem como poemas nas formas e espaços e como premissas rigorosas para serem utilizadas como figuras habitáveis.
Sua arquitetura mergulha e emerge no território e registra-se em nossas memórias de projeto. Arquitetura rigorosa e dúctil que dirige nossos desejos como a impulsão gerada por um arco sobre uma flecha. Tensão para a concepção de desenhos que vislumbram, provocam propostas de futuro.
Inquirimos estes ensinamentos: Conteriam modelos, repertórios de premissas e prescrições rigorosas? Eles seriam parte de um sistema delimitado de procedimentos? Como perante tais clarezas alçar novos voos? Seria, para isto, suficiente a impulsão de um único arco?
Imersos nestes voos do Paulo cogitamos novos engenhos e contemporâneos projetos. Imersos em seus procedimentos e vocábulos, sabemos por suas lições que definir um projeto exige engenho e arte? Solicitam-se não só a impulsões iniciais, mas desígnios, destinações e ações propositivas?
Parodiando o poeta Manuel de Barros que define seu ofício como – A poesia é voar fora da asa – encontramos em Paulo a manifestação de que – A arquitetura é habitar entre os homens.
Desenhos, projetos obras que poeticamente nos fazem viver com urbanidade. Fazendo as relações entre nós como vívidas e vividas.
Nossos voos como odes do espaço, nossos espaços como poéticas da vida.
Ações humanas para tornar habitável o universo e acolhedoras as relações entre nós.
Como Paulo nos dirige e ensina para a liberdade de nossos projetos, nossa homenagem a ele não se configura, de acordo com da etimologia da palavra, como um juramento de fidelidade, subordinação e respeito do vassalo ao senhor feudal.
Nossa homenagem é pelos impulsos que nos proporciona com suas ações e obras.
Uma homenagem a um Homem que age.
Como não sou Drummond, Gullar, nem João Cabral para inventar poesia, emprestei um poema sobre Bernardo, personagem emblemático descrito pelo poeta Manuel de Barros que, como figura, pode guardar alguns paralelos com Paulo.
Tomo aqui a liberdade de citar:
Bernardo é quase árvore.
Silencio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar nos seus ombros.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 Prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude?) (4)
Numa paráfrase poderíamos dizer:
Paulo consegue ampliar o horizonte com três linhas. O horizonte fica bem ampliado.
Paulo desvela a natureza.
Seu olho aumenta o nascente.
Pode um homem enriquecer nossa incompletude?
A você Paulo, nosso agradecimento por todas suas lições.
notas
NA – Texto lido publicamente durante a cerimônia realizada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para homenagear o arquiteto Paulo Mendes da Rocha por ocasião do reconhecimento internacional de seu trabalho ao receber seus mais recentes prêmios: Premio Leão de Ouro na 15ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza de 2016, Prêmio Imperial de 2016 pela Associação de Arte do Japão e Medalha de Ouro Real 2017 pelo Instituto Real dos Arquitetos Britânicos.
1
ARTIGAS, Vilanova. O desenho – aula inaugural da FAUUSP realizada em 01 de março de 1967. In: Caminhos da arquitetura. São Paulo, Editora LECH, 1981, p. 24.
2
MOTTA, Flávio. Desenho e emancipação. Caderno cultural. Correio Braziliense, Brasília, 16 dez. 1967, s/p.
3
Idem, ibidem.
4
BARROS, Manoel de. Bernardo. In: Livro das Ignorãças. 3a parte. Rio de Janeiro, Record, 2007, p. 97.
sobre o autor
Rafael Antonio Cunha Perrone é arquiteto, livre docente e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.